"A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes" é mais uma boa história da saga "Jogos Vorazes"
Atualizado: 7 de dez. de 2023
Filme focado em Coriolanus Snow e Lucy Gray Baird prende a atenção e cumpre seus objetivos
A História cobra a quem pratica atrocidades? A hipótese de que isso acontecerá é muitas vezes repetida como forma de consolo diante da barbárie praticada por líderes mundiais, terroristas ou outras figuras.
Pelo menos no mundo da ficção de “Jogos Vorazes”, a história cobrou a Coriolanus Snow, ainda que com atraso e muitos juros, como bem sabem todos que já assistiram ou leram a saga original.
Se os três livros (e quatro filmes) originais se dedicaram a mostrar que o povo pode trazer a justiça que a história não trouxe sozinha, “Jogos Vorazes: A Cantiga dos Pássaros e as Serpentes” tem uma motivação diferente.
Como adaptação do livro prequel da saga de Suzanne Collins, o filme mostra como um único ser-humano moldado no orgulho, no trauma e na crença do “nós contra eles” pode causar a ruína de milhares ou até milhões durante várias décadas.
A ocasião faz o ladrão e Snow diz sim a várias oportunidades de passar por cima dos outros em prol de si próprio, em um filme empolgante e bem feito sobre cruzar a linha entre o egoísmo aparentemente inofensivo e a crueldade.
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“O homem é lobo do homem, em guerra de todos contra todos” - Thomas Hobbes
“A Cantiga dos Pássaros e as Serpentes” nos apresenta uma Panem muito diferente daquela presente nos primeiros filmes. A história é situada 64 anos antes da ida de Katniss Everdeen para a Arena, apenas 10 anos após a primeira rebelião dos distritos contra a Capital.
Nesse momento, a tradicional família Snow esconde de todos o estado empobrecido em que se encontra após a guerra. O jovem Coriolanus Snow (Tom Blyth) busca pagar seus estudos universitários e custear a sobrevivência de sua prima Tigris (Hunter Schafer) e da avó de ambos através de seu desempenho na Academia, prestigiada escola da Capital.
É quando diversos alunos, incluindo Snow, são selecionados como mentores dos tributos da 10ª edição dos Jogos Vorazes, em uma tentativa de aumentar a popularidade da carnificina disfarçada de entretenimento.
Snow recebe com decepção a notícia de que foi designado como mentor de Lucy Gray Baird (Rachel Zegler), tributo do Distrito 12 que não possui habilidades notáveis de luta ou sobrevivência, mas chama a atenção de todos ao cantar de forma desafiadora durante a cerimônia da colheita.
O que vimos durante as 2 horas e 37 minutos de filme é a transformação, passo a passo, de Coriolanus Snow no Presidente Snow que ele virá a ser futuramente.
Ainda que, de início, ele ainda cultive empatia e, em outras palavras, tenha coração, pouco a pouco, sua humanidade vai cedendo e sumindo em nome da ambição, do orgulho e do temor por puxadas de tapete.
Esse é um processo interessante de acompanhar, e que começa desde a primeira cena, um flashback sobre a infância empobrecida e caótica de Snow em meio à guerra.
Ele é movido não só pela fome a qual é submetido, mas ao lugar de honra que acredita que deve alcançar por ser da família que é. Gradativamente, seus melhores sentimentos são suplantados pela paranoia e pela crença de que na vida, vale tudo para ficar por cima e que quem não fere será ferido.
O filme não nos apresenta isso como verdade absoluta, mas como algo que, para o personagem, faz total sentido. Essa transformação é bastante validada pela interpretação segura de Tom Blyth no papel.
Trata-se, no fim, de um grande estudo de personagem sobre aquele que iria se tornar o maior carrasco de Panem.
“O homem nasce livre, mas por toda parte encontra-se acorrentado” - Jean Jacques Rousseau
No filme, todos os outros personagens servem como estímulos (ou seriam correntes?), que tentam atrair Snow em direção ao que ele possui de melhor e de pior como pessoa. Em sua maioria, se destacam pela qualidade de seus intérpretes.
A já citada Tigris, por exemplo, é a voz da razão para Coriolanus, trazida à vida com o imenso carisma e presença de Hunter Schafer.
No papel no reitor Casca Highbottom, Peter Dinklage representa de forma bastante sólida o complicado legado da família Snow, por ter sido traído pelo melhor amigo, pai de Coriolanus.
Outro destaque é Viola Davis, que tem na Dra. Gaul um raro papel vilanesco em sua carreira. Trata-se de alguém que vê em Coriolanus, com razão, a mesma força impiedosa e implacável que possui.
A caracterização ajuda, mas é o modo sempre impactante e único de Viola pronunciar suas falas que torna a personagem tão impactante.
Entre os personagens, talvez a que possua maior espaço no filme é Lucy Gray Baird. A heroína possui no filme ainda mais destaque do que no livro. A impressão obtida ao fim é a mesma que na obra literária: uma personagem bastante carismática e, de certa forma, um mistério.
No papel, Rachel Zegler entrega uma bela voz, ainda que às vezes carregue demais nas caras e bocas. Na maioria dos momentos, porém, sua interpretação é coerente com a personagem, pois Lucy, por si só, é bastante performática.
Ainda que Coriolanus esteja no centro da história, é por ela que torcemos em diversos momentos da história. Porém, seu romance com Coriolanus é desenvolvido de forma muito mais corrida do que no livro.
Mesmo assim, a maioria das mudanças feitas em relação à obra original, são pontuais e bastante positivas, ajudando a dar mais dinamismo ao longa e deixar a história mais crível. Ainda que seja relativamente longo, o filme sustenta o interesse do público por quase toda sua duração, mesmo que não impacte tanto emocionalmente quanto “Jogos Vorazes” e “Em Chamas”.
A produção é bastante bem-feita e chama a atenção pela qualidade dos cenários de figurinos, mas faltou um tanto de “futurista” na proposta “retrofuturista” da estética do filme, que parece ser bastante inspirada pelos EUA do início do século XX.
Mesmo que o uso de efeitos especiais seja apenas pontual no longa, sua baixa qualidade também incomoda um pouco, sendo, talvez, mais um sintoma dos problemas graves que esse setor tem enfrentado em Hollywood desde a pandemia.
Quanto à narrativa, é apenas na parte final que “A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” perde um pouco da força, quando a história passa a mostrar o que acontece após a 10ª edição dos Jogos Vorazes.
No livro, essa porção da narrativa é de longe a mais fraca e consegue a proeza de parecer longa demais e corrida ao mesmo tempo. Aqui, a impressão é preservada e vemos acontecimentos importantíssimos para os personagens tendo seu impacto diminuído por conta da pressa de contar uma história que, por si só, daria um filme à parte.
Na obra literária original, Lucy Gray fala várias vezes que o show só acaba quando o tordo canta. Pode-se dizer que ele perdeu um pouco da noção do tempo no filme.
“Snow cai como a neve, sempre por cima de tudo”
As correrias da parcela final do filme não atrapalham a coesão e o impacto de seu fim, que termina de posicionar Coriolanus Snow como o monstro que ele é.
“A Cantiga dos Pássaros e das Serpentes” é um filme longo e que passeia por uma grande quantidade de cenários, momentos, tons e personagens. Porém, consegue ter foco o suficiente para atingir com louvor seu objetivo central: contar ao público a ascensão de Coriolanus Snow do ponto de vista político e sua queda, do ponto de vista humano.
Ainda que tenha um final bastante aberto (em especial para Lucy Gray), passa a impressão de uma obra completa e que não precisa de sequências. É um complemento satisfatório à saga de Katniss e ao ponto de vista dos distritos, presente demais obras da saga.
Porém, caso seja desejo do povo, através da bilheteria, essa trama pode ter ainda muitos capítulos. Vamos ver o que a História dirá sobre Coriolanus Snow dessa vez.
Veredito: 4/5
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