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Foto do escritorThallys Rodrigo

“A Cor Púrpura”: Nadando de braçada para além do mar de lágrimas 

Musical entra em conflito consigo mesmo mas se garante na força da história


O sofrimento é inevitável, mas parece ser ainda mais inevitável para algumas pessoas. Provavelmente é isso que Celie, protagonista de “A Cor Púrpura”, pensou em algum momento de sua trajetória ficcional. Diversas vezes, ela se vê presa em uma sequência aparentemente sem fim de agruras, violência e abandono. 


No desenrolar do filme, a personagem percebe que as feridas do passado nunca sumirão por completo - e que, além disso, novas aparecerão - mas que sofrer não é o único caminho possível e existente. “A Cor Púrpura” é um filme que se equilibra entre a terrível realidade de opressão enfrentada por mulheres negras no início do século XX e a capacidade de cada uma delas de reerguimento e apoio mútuo. 


Longo foi o caminho para que o longa musical de Blitz Bazawule chegasse aos cinemas, sendo a obra baseada em um musical da Broadway que por sua vez, é baseado no famoso best seller de Alice Walker. Obra literária essa que, inclusive, já rendeu outro filme, o aclamado drama de 1985, dirigido por Steven Spielberg. 


Com toda essa bagagem, é natural que o resultado final apresente elementos dos mais variados, como a vibração típica dos musicais mesclada com a pesada realidade de Celie. Isso nem sempre funciona tão bem, mas não dá para negar a qualidade da produção e o sucesso do filme em passar sua mensagem. 



“Parece que eu tive que mover montanhas”*


Em “A Cor Púrpura”, acompanhamos várias décadas da vida de Celie (Fantasia Barrino), da adolescência até a meia-idade, a maior parte disso situada no sul dos EUA, na primeira metade do século XX. A protagonista já começa o filme em um contexto de muito sofrimento, sendo abusada pelo próprio pai e tendo os filhos decorrentes desse abuso sendo tirados dela. 


Sua única companhia é a irmã Nettie (Halle Bailey), de personalidade mais rebelde, curiosa e aventureira que Celie. Porém, logo a vida - leia-se, os homens - trata de se separá-las, com Celie sendo vendida em casamento para o violento e autoritário fazendeiro Mister (Colman Domingo). A personagem principal entra mais uma vez em uma espiral de violência - dessa vez, doméstica - que durará anos, sem enxergar outra possibilidade para sua situação.


Celie começa a despertar e enxergar novas possibilidades para si apenas quando figuras como Sofia (Danielle Brooks), nora de Mister, e Shug (Taraji P. Henson), amante do fazendeiro, entram em sua vida. A partir de então, vemos uma mulher pouco a pouco buscando a libertação de suas amarras e correndo atrás de sua liberdade. 


No contexto geral do filme, a fase inicial, infelizmente, apresenta uma certa estranheza. Há uma dificuldade entre balancear o sofrimento da Celie adolescente, vivida pela atriz Phylicia Pearl Mpasi, com os sentimentos de esperança em dias melhores e expressão de sentimentos reprimidos que estão tão presentes nos números musicais. 


A “energia Broadway” da dança e da música entra em conflito direto com as cenas e contextos de agressões, causando um choque entre dois tons muito opostos, ainda que, provavelmente, tenha sido a intenção. Por vezes, a leveza da parcela musical dá a impressão que as problemáticas não estão sendo levadas a sério o suficiente. E então, na sequência seguinte, há um grande foco nas problemáticas, que acaba não sendo passado com a gravidade, em tese, necessária.



“Ninguém pode me julgar além de mim, eu nasci livre”*


É com a chegada de Celie à vida adulta, agora interpretada por Fantasia Barrino, que o tom da história começa a se equilibrar. É muito gratificante ver a protagonista se empoderando e enxergar o papel de outras personagens nessa caminhada. O maior exemplo disso é a cantora Shug Avery, que desperta a paixão de Celie e incentiva seu amor próprio e sua reconexão com a irmã Nettie. 


Shug é interpretada de forma encantadora por Taraji P. Henson. Quando a personagem entra no filme, tudo se transforma, os números musicais ganham ainda mais energia e isso não parece mais conflitante com a história apresentada. Outra injeção de qualidade no filme é a Sofia de Danielle Brooks, com sua personalidade indomável e irreverente. Ambas as mulheres têm espaço para brilhar, mesmo sem protagonizar, e são fundamentais na jornada de Celie.


Tanto no individual quanto no coletivo, as três sintetizam bem as temáticas de “A Cor Púrpura”, que incluem a importância da solidariedade entre mulheres em uma sociedade desigual e as diversas faces da opressão masculina e, em alguns casos, racial. 


Shug paga o preço da rejeição da própria família cristã por ter escolhido uma vida tida como imoral para uma mulher. Sofia luta com todas as forças contra a opressão dos homens com que se relaciona, mas é atingida brutalmente pelo racismo dos brancos. E Celie vive aprisionada por um sentimento de impotência, após assimilar, diante de toda a sua trajetória, que todas as suas escolhas, liberdade e integridade serão roubadas pelos homens ao seu redor.


E, mesmo assim, o filme se recusa a reduzir essas mulheres ao sofrimento. Pelo contrário, se compromete firmemente em mostrar como a fé - seja ela em alguma divindade, em nós mesmos ou nos outros - pode contribuir para uma existência plena. E é por meio desse instrumento, a fé - e de muito apoio - que Celie consegue se tornar dona de seu destino. 


A jornada mostrada em “A Cor Púrpura” é bonita de se ver, mesmo que, por alguns momentos, seja afetada pela estranheza entre a mistura de drama e musical ou por uma narrativa corrida. Alguns detalhes ficam pelo caminho, como por exemplo, a relação entre Shug e Celie, que poderia ser melhor desenvolvida. O romance acaba servindo muito mais como um catalisador para o despertar da protagonista do que como uma relação em seus próprios termos. 


Porém, o saldo positivo se mantém por diversos fatores. Sejam eles a potência da história, presente já no livro original, ou o comprometimento do elenco. Todos os intérpretes dos papéis principais brilham em suas atuações e também com suas vozes, sejam as já citadas Taraji e Danielle ou Fantasia e Colman Domingo. 


Além disso, a estranheza causada pelo balanço entre drama e musical no início aos poucos se desvanece e as sequências se tornam mais orgânicas. O que também ajuda nesse sentido é o nítido cuidado tido com a produção, que vai desde os belíssimos cenários e figurinos até as coreografias. 


Quem diria que filmes com grandes ideais merecem orçamentos à altura para realizá-los, não é mesmo? Ponto para a Warner por ter investido US$ 100 milhões na visão do diretor. Cada centavo parece ter sido convertido em qualidade na produção.



“Finalmente estou do outro lado, finalmente encontrei vontade de sorrir”*


“A Cor Púrpura” não é o filme que vai convencer todos os que torcem o nariz para musicais a gostarem do gênero, ou que vai agradar a todo o público. Porém, sua história, sua produção e seu elenco têm força o suficiente para conquistar várias pessoas. 


Não tenho vivência direta das opressões retratadas no filme, e, portanto, minha perspectiva sobre a qualidade da abordagem da experiência feminina e/ou negra é bastante limitada. Porém, acredito que as perspectivas sobre o assunto são bastante diversas, e que bom que pelo menos algumas delas cheguem até o público nos cinemas - tenha ele vivência ou não - através de produções como “A Cor Púrpura”. 


Mesmo com seus percalços iniciais, trata-se de um filme bem-sucedido em mostrar que as lágrimas tem um grande peso, mas que quem as derrama não se resume a elas.


Veredito: 3,8/5


*O título e os subtítulos foram diretamente retirados ou inspirados na letra de "Church Girl", de Beyoncé.



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