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Foto do escritorRayane Domingos

A cultura do cancelamento foi pavimentada por corpos negros

Atualizado: 30 de mai. de 2023


Em 1950, existia uma grande expectativa com a Copa do Mundo, a primeira após os adiamentos causados pela Segunda Guerra Mundial, e tendo como sede o Brasil. A busca pelo primeiro título era cultuada pelo Governo, e pelos brasileiros que acreditavam na qualidade dos atletas. O jogo da final ficou conhecido como ‘’Maracanaço’’, mas se tornou uma grande decepção para o país que tinha a plena certeza do título garantido contra o Uruguai. O resultado do jogo foi pior para uma pessoa em especial, um negro: Moacir Barbosa Nascimento.


O goleiro da Seleção de 50 ‘’falhou’’ nos acréscimos finais da partida e acabou levando o gol que deu o título aos uruguaios em plena inauguração do Maracanã, no Rio de Janeiro. As duras críticas, a desconfiança no seu trabalho e o racismo formaram a tríade do cancelamento que destruiu a carreira de Barbosa dentro da Seleção Brasileira, mas não apenas a dele.



Foram 16 anos para que outro preto ocupasse a titularidade no gol, apesar da "falha" ter sido apenas em um jogo. O pernambucano Manga foi o escolhido para a fase de grupos da Copa do Mundo de 1966, e logo após esse jejum veio outro de 40 anos até a chegada de Dida, um dos maiores atletas que o mundo já viu. O ‘’erro’’ que Barbosa cometeu transformou totalmente a vida dos negros dentro da Seleção, sobretudo na posição que atuava. O seu cancelamento trouxe consequências pessoais e estruturais, onde ele não só conseguiu superar a culpa que lhe foi atribuída, como também afetou a situação de outros goleiros negros, que sumiram das convocações.


Em entrevista concedida ao documentário ‘’O Negro no Futebol Brasileiro’’, Dida conta que desde a divisões de base ele era aconselhado pelos técnicos a evitar tomar gols igual ao que Barbosa levou na Copa de 50. Esse imagético de que todos os negros são iguais e vão cometer os mesmos erros por apenas serem negros só demonstra o quanto, na verdade, o sistema racista vive a expectativa de um deslize para que a condenação seja sentenciada.


Apesar de qualquer um estar suscetível ao cancelamento, a recorrência desse fenômeno com algumas figuras negras no país, seja no futebol como exemplificado, ou na música, como ocorreu com Wilson Simonal e Elza Soares, tem crescido no decorrer dos anos. Porém, ao mesmo tempo essas atitudes têm sido mais contestadas por ativistas do Movimento Negro.


Um simples boicote


Apesar do conceito ‘’cancelamento’’ ter se popularizado recentemente fora da bolha da internet, a prática é mais antiga do que se parece. A tentativa de excluir o outro de um determinado espaço que ele ocupa na sociedade vai além de questões que envolvem opiniões contrárias. Ao longo da história pode-se perceber que o boicote é uma prática recorrente de quem ocupa uma posição mais privilegiada contra o outro. Contudo, a falsa sensação de equidade e livre arbítrio que a internet proporciona alterou ainda mais a maneira que se lida com as diferenças. O conceito da Espiral do Silêncio, proposto pela cientista política Elisabeth Noelle-Neumann, não parece afetar os internautas que fomentam as discussões mais polêmicas do momento e gostam de apontar e ridicularizar perfis na internet.


Justiça social ou justiça com as próprias mãos? Qual é o propósito de quem utiliza esse recurso com objetivo de escantear o indivíduo, grupo ou empresas do seu próprio convívio? Uma coisa é certa: o boicote a marcas, emissoras de TV, artistas ou pessoas comuns são ferramentas utilizadas por quem consome ou convive em determinadas situações e veem nisso uma espécie de protesto contra um determinado produto.


Esse fato corrobora com a consciência de que o indivíduo vem possuindo mais poder sobre o consumo, e como ele está diretamente ligado ao sucesso ou fracasso daquela marca. E, apesar dessa ideia ser algo nebulosa, a concepção do cancelamento advém dessa condição humana de acreditar que parar de consumir é o caminho ideal. No que se refere a uma pessoa, não é tão diferente quanto se imagina, já que ao preferir ignorá-la, em qualquer circunstância, o cancelador está silenciando uma voz, e ao mesmo tempo incentivando outros indivíduos a ter a mesma atitude.


Outro ponto a ser compreendido é que, com o avanço das redes sociais, as pessoas adquiriram uma vida pública e privada, e essas duas geralmente não caminham juntas. A diferença, que pode parecer fútil, tem grande valia quando se percebe que o que acontece na web fica preso apenas nela, e não invade o mundo real. A jornalista Eduarda Nunes reflete sobre como se faz necessário diferenciar as duas coisas:

‘’Eu costumo falar que existe cancelamento da internet e da vida real, e que o da internet várias vezes não resulta em nada no plano real. Às vezes você quer cancelar e a pessoa acaba ficando mais famosa, tendo mais engajamento, mais contato com marcas. Já na vida real, o cancelamento, literalmente, pode matar uma pessoa de várias formas, seja na parte física ou com adoecimento mental’’.

Quando se fala sobre pessoas negras só torna o debate ainda mais efusivo, já que além da negação do direito de errar, o cancelamento que o negro atrai entra diretamente no campo do real em muitos casos. Prova disso é a quantidade de críticas e achincalhamento que ativistas do Movimento Negro, como Andreza Delgado e Winnie Bueno, sofrem dentro e fora das redes sociais, o que não acontece com pessoas brancas que costumam se posicionar politicamente. Um exemplo é o da influenciadora Gabriela Pugliesi, uma mulher branca que, no início da pandemia de covid-19 no Brasil, resolveu fazer uma festa dentro do seu apartamento e brindar desmerecendo a vida. Ela foi mais de uma vez cancelada pelos internautas, perdeu alguns patrocínios e seguidores, porém meses depois retornou a sua vida normalmente, mesmo depois de proferir várias opiniões controversas sobre o vírus após o ocorrido.


A virada com o #MeToo


Apesar da prática de cancelamento ser antiga, acredita-se que o momento de virada, com maior repercussão na internet, veio através do Movimento Me Too, que foi uma série de denúncias de assédio e abusos sexuais feita por mulheres que trabalhavam na indústria do cinema contra diretores e produtores de Hollywood, em 2017.


Embora as acusações tenham se iniciado com atrizes e produtoras, o movimento se espalhou para outras áreas e se tornou uma grande rede de apoio contra crimes sexuais no local de trabalho. No Twitter, a hashtag #MeToo ficou em alta durante dias com relatos de mulheres que sofreram esse tipo de violência dentro e fora do sistema laboral.


A partir desse momento houve uma série de represálias contra os abusadores, como o produtor Harvey Weinstein, que foi excluído na indústria cinematográfica, e também nas redes sociais pelos telespectadores. Boicotes contra qualquer trabalho que ele tenha feito foram amplamente divulgados e rechaçados por todos que aderiram ao movimento.


Na internet, o cancelamento é executado de maneira massiva, de acordo com os posicionamentos éticos e morais de um grupo de pessoas, ou uma bolha, contra algum erro que a personalidade faça. Os motivos podem ser diversos, não necessariamente um crime perante a lei, como ocorreu com o Me Too, e muita das vezes basta apenas uma opinião controversa para que alguém seja atacado por pessoas na internet.


Outro caso foi o que aconteceu com a estudante de psicologia Alexandra Cunha, de 22 anos, que, ao reclamar no seu perfil no Twitter dos comentários transfóbicos da escritora J. K. Rowling, autora da saga Harry Potter, ela acabou recebendo uma enxurrada de ataques odiosos dos fãs da saga.

’'Há uns 6 ou 7 anos atrás esse assunto era muito polêmico, eu era fã da saga, e disse que seria melhor a J. K. Rowling deixar Harry Potter para lá, e parar de falar sobre o assunto, porque ela fica desenterrando temas do livro e estraga algo que era lindo na sua infância. Em nenhum momento a chamei de transfóbica, como hoje se fala abertamente sobre. E a partir disso, um perfil muito grande fã da saga postou o meu tweet e, literalmente, incitou a violência contra mim. Teve pessoas me chamando na DM [Mensagem Direta] dizendo para ter cuidado porque iam bater em mim’’.

Em 2019, o Dicionário Macquarie elegeu o termo "Cultura do Cancelamento" como o principal do ano, uma consequência direta dessa nova forma de agir dentro das redes sociais em que a prioridade é criar uma espécie de régua moral, um limite a certas atitudes problemáticas de outras pessoas. A cultura do cancelamento pode abarcar a todos, porém o que diferencia os acusados são os possíveis delitos que eles cometem dentro ou fora da internet. Um envolvimento em um crime, como estupro e morte, em geral, são julgados de maneira rigorosa pelos internautas que cancela sem receio o acusado. Deixar de seguir nas redes sociais, denunciar as contas para as plataformas, subir hashtag para viralizar mais o caso; todas essas ferramentas são utilizadas para que o cancelamento seja feito de maneira efetiva.


No que se diz respeito ao negro dentro desse contexto, assim como outras pessoas que fazem parte de uma minoria social, essa cultura se torna ainda mais suscetível e muitas vezes cruel. Segundo o jornalista e pesquisador Maik Santos, quem vive à margem da sociedade são um alvo mais fácil por estarem buscando ainda ter voz ativa na sociedade, ‘’as minorias estão mais suscetíveis, porque elas já estão marginalizadas, são uma minoria política, não tem muito poder social e político para se defenderem do cancelamento’’. Para além dos erros cometidos pelos indivíduos, se observa traços de racismo fortemente na maioria dos ataques. A maioria dos casos qualquer espécie de defesa ou pedido de desculpas é transformado em arma contra a própria pessoa, além disso, paira sobre o negro a ideia de que ele não pode errar, e isso é ainda mais explorado dentro desse sistema que não dá oportunidade de mudança.



As verdadeiras vítimas


Não é a primeira vez que participantes do Big Brother Brasil, programa da Rede Globo, sofrem com o cancelamento de maneira descabida, e trazer o programa para o debate é mais que necessário. Pois além de ser o principal reality show do país, a repercussão e a audiência que ele tem dentro da emissora e na vida dos brasileiros é gigantesca. É importante refletir que a dinâmica proposta tem como objetivo levar todos os participantes ao extremo, explorando seus incômodos e buscando até teatralizar ‘’a vida real’’ - trazendo a figura do mocinho, vilão e casal.


Aline Cristina, do BBB 5, foi uma das primeiras que sofreu com o cancelamento de maneira mais cruel fora do programa. Apelidada de X9 pelos participantes e a edição, ela foi eliminada com 95% dos votos, com recorde de rejeição por alguns anos. Ela foi humilhada após sair do reality pelo público que a hostilizava nas ruas, perdeu o emprego e teve a sua casa pichada na época.


Já a cantora Karol Conká, do BBB21, também sofreu uma imensa rejeição dentro e fora do programa, e hoje detém o novo recorde, com 99,17% dos votos. Além disso, a rapper perdeu diversas parcerias musicais, publicidade de marcas, e até mesmo a própria equipe foi demitida pelo corte de gastos que ocorreu pela falta de condições financeiras.


O que essas duas mulheres têm em comum? São negras. A grande diferença entre elas foi a época que se passaram as edições: a Conká sendo atacada na vida real e virtual, já a Aline apenas na vida real. Porém, para além desse fato, o apoio da Globo foi bastante importante na tentativa de reverter a imagem da cantora, o que não aconteceu com Aline, porque o próprio programa ajudou a inflamar as situações que ela estava envolvida. A então estudante, inclusive, conseguiu vencer um processo não só contra a emissora, como também do site EGO e outros portais. Ela ganhou a ação que obrigava todas as empresas citadas a apagarem o conteúdo que a envolvia, e impediu que informações sobre a sua vida fossem divulgadas.


No caso de Karol Conká, a imagem da cantora não foi totalmente revertida e ainda há pessoas na internet que não acreditam na mudança de postura dentro e fora do programa. Desde o seu anúncio no programa que histórias sobre o quanto ela era uma pessoa tóxica e arrogante com outros artistas e fãs surgiram na timeline do Twitter, o que demonstra que antes mesmo de entrar no programa Karol já era uma figura controversa. Como dito, a emissora tentou a qualquer custo amenizar o ódio das pessoas contra a cantora, e inclusive, lançou o documentário ‘‘A Vida Depois do Tombo’’, em que narrava sobre a vida pós reality e suas questões familiares com o pai, por exemplo.


Maik Santos pontua que essa tentativa da Globo não foi bem sucedida, e nem conseguiu reverter a situação:

‘’Para as pessoas que conheceram a Karol no BBB, o documentário não serviu de quase nada, pelo contrário. O lançamento há pouco mais de um mês da saída dela, foi em todos os programas da casa se desculpar, o público não comprou e a atitude da Globo nesse caso foi terrível. No documentário as entrevistas pareceu montado, artificial, você percebia ali que era uma estratégia de marketing, acho que se saísse tanto tempo após o programa, ou hoje, até poderia ter um efeito melhor, mas assim, eu sinto que dentro da bolha ela já conseguiu reverter com uma parte do público, mas fora dele pareceu tudo forçado’’.

A saúde mental dos negros no Brasil


Os estilhaços do cancelamento não ficam apenas alojados na parte física e superficial, onde todos possam ver, e sim exerce uma grande influência no lado emocional. Evidente que existem diferenças entre indivíduos com mais poder aquisitivo, que podem pagar profissionais de saúde para ajudar nesses casos, e os que não possuem e dependem de serviços públicos ou voluntários a assistência necessária. Porém, independente dessas situações, o fato é que os recortes sociais, seja ele racial ou de gênero, em relação a saúde mental, acompanhamentos e até mesmo preconceito com o tema precisa ser feito e mais debatido na sociedade.


Segundo o Ministério da Saúde, em 2016, o jovem negro do sexo masculino, entre 10 a 29 anos, tem a mais chance de falecer por suicídio, cerca de 45% maior do que entre os brancos. Os dados ainda mostram que essa causa mortis é a terceira principal, em caso externo, do extermínio dessa população no Brasil. Ainda sobre a pesquisa, ela afirma que as quatro principais causas são: o 'não lugar', ausência de sentimento de pertencimento e o sentimento de inferioridade e a rejeição. ‘’O estigma em torno do suicídio, aliados a elementos estruturantes como o racismo estão relacionados e contribuem para o silenciamento em torno da questão, além das dificuldades de se falar abertamente sobre o assunto’’, diz o órgão no estudo publicado.


É nesse contexto que o negro está inserido dentro da grande caixa que é o cancelamento, porque na maioria dos casos o racismo é a forma mais comum e cruel de demonstrar a insatisfação com a atitude controversa do outro. Inconsciente ou não, o racista utiliza a estrutura que o Estado e Sociedade, como um todo, dispõe para humilhar, destratar, e sobretudo, contribuir ainda mais ao genocídio do povo negro. O adoecimento psicológico junto à falta de uma ampla discussão sobre a importância de tratamento são aliados perfeitos para perpetuar ainda mais os números vistos acima.


Afinal, é caso de justiça social ou com as próprias mãos?


Muito se fala nas redes sobre as intenções do cancelamento, e por qual motivo os indivíduos optam por essa atitude contra quem cometeu algum erro ou crime. Ter um senso de justiça mais aflorado ou apenas querer tomar o lugar da justiça comum? É uma dúvida que paira e irá continuar pairando por razões simples: o mundo não é feito de uma dicotomia como a maioria acredita. O ato de cancelar é particular de cada um, e apesar de todo tipo de ataque ser encarado como uma forma de cancelamento, é necessário diferenciar sobre o que as pessoas estão sendo criticadas.


Maik Santos, inclusive, afirma que um fator não necessariamente exclui o outro, e que cada cancelamento precisa ser entendido de maneira diferente, ‘’ Existem cancelamentos e cancelamentos, o Me Too, por exemplo, que eram casos de mulheres que sofreram abusos sexuais e psicológicos, o abusador tem que passar por um julgamento real dentro das leis, porque ele cometeu um crime, mas isso não impede que as pessoas tomem atitudes, como indivíduo comum, para não consumir mais nada feito por essa pessoa, e isso é fazer justiça com as próprias mãos’’, explica.


O fato é que essa cultura não será superada pelos usuários das redes sociais, que fomentam esse tipo de comportamento. Ofender e excluir ainda mais as minorias sociais, que são as maiores prejudicadas por essas políticas, é só mais um braço do sistema que seguirá oprimindo em todas as oportunidades. O que começou em busca de justiça, protesto e ampliar a voz de mulheres vítimas de abuso, se tornou, de maneira generalizada, mais um instrumento de opressão.


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