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Foto do escritorThallys Rodrigo

A exposição da sexualidade de Gugu na imprensa e os limites do interesse público

Atualizado: 30 de mai. de 2023


A TV aberta é um fenômeno interessante. É um meio de comunicação que, além de fazer o espectador “viajar” para outras realidades, também convidou o público a criar novos afetos e se fixar a eles. Nasceram, a partir dele, novos tipos de celebridades, que transcenderam as telas e se tornaram parte do imaginário popular.


A televisão brasileira, especificamente, parece ter sido bastante fértil na criação de figuras do entretenimento que transcendem o limite entre público e programa. Chacrinha, Silvio Santos, Xuxa, Regina Duarte, Chico Anysio: mais do que pessoas, são partes importantes dessa instituição tão insanamente diversa chamada cultura brasileira.


Morto em novembro de 2019 em um acidente doméstico, Antônio Augusto Liberato, o Gugu, foi um desses grandes baluartes televisivos. As informações sobre sua sexualidade reveladas após o acontecido, podem nos levar a questionar um pouco a posição da imprensa em relação à cultura de celebridades televisivas brasileiras e à causa LGBT. Afinal, quem são realmente as pessoas que vemos nas TVs de nossas casas? Como saber quem elas são de verdade? Isso realmente importa?


A novela da vida real


A morte precoce de uma celebridade midiática segue sendo delicada tanto para a população quanto para os veículos que se propõe a noticiar o fato. O caso de Gugu consegue ser ainda mais grave, já que após o ocorrido, diversos acontecimentos bombásticos vieram a público. Desde sua morte em novembro de 2019, sucedeu-se um turbilhão de eventos o envolvendo, como a busca de Rose Miriam Di Matteo, mãe dos filhos dele, pelo reconhecimento da união estável e o aparecimento de Thiago Salvático, apontado como “namorado secreto” do apresentador.



Essa grande quantidade de acontecimentos e a sua natureza rocambolesca pode fazer tudo isso parecer, literalmente, coisa de novela. Sendo Liberato uma das já citadas grandes figuras da televisão brasileira, o “escândalo” ao perceber que há sobre ele mais que os olhos podem ver, se torna maior; assim como a ânsia de saber o que “realmente” aconteceu. É como descobrir segredos de um amigo de longa data que os brasileiros costumavam encontrar todo domingo, sentados no sofá.


Talvez o que seja mais necessário (e desafiador) tanto para os noticiários quanto para o público é justamente encontrar o equilíbrio entre dois ‘Gugus’: a “pessoa privada”, que mesmo depois da morte teve a vida exposta com responsabilidade e a “pessoa pública”, que por conta da visibilidade conquistada em vida, pode ser usada como ponto de partida para debater de forma eficaz questões sociais importantes.


É preciso agir com cautela, e sem espetacularização, mantendo um equilíbrio que respeite a importância de ambas as “personas”. Isso é algo necessário especialmente no que se refere a um dos pontos centrais da narrativa pós-morte do apresentador: as revelações sobre sua suposta homoafetividade. Afinal de contas, apesar da natureza “dramática” do tema, essa história ainda faz parte da vida real.


Armário adentro, armário afora


Era inevitável que os assuntos relacionados ao pós-morte de Gugu não recebessem a atenção do jornalismo. Como citou o colunista Mauricio Stycer em artigo de opinião para o UOL, “No momento em que a situação levou as diferentes partes à Justiça, o trabalho da imprensa é inescapável”. A exposição de aspectos de sua intimidade, especialmente se relacionados a assuntos tidos como “polêmicos”, naturalmente despertaria no público curiosidade. A demanda do espectador e a fama do envolvido são alguns dos chamados “critérios de noticiabilidade”, ou em bom português, motivos que a imprensa considera suficientemente válidos para noticiar um acontecido, e que foram levados em conta nesse caso.


O que é questionável de fato é o modo como aspectos diversos, como a descoberta da suposta homoafetividade do apresentador, são explorados. Ignorar o grande “elefante cor-de-rosa” não é opção, mas como o próprio Stycer afirma no seu já citado texto, a situação foi muitas vezes usada como “isca de audiência”. Alguns grandes veículos, como a Globo, se limitaram a fazer uma cobertura meramente expositiva dos detalhes que surgiam sobre o caso, enquanto colunistas de fofoca se esbaldaram com a exploração do caso.


Especulações sobre a orientação sexual de Liberato já existiam entre os brasileiros antes de sua morte, mas não recebiam foco nas notícias. Até então, as informações sobre sua vida pessoal eram limitadas às capas de revista expondo seu relacionamento com Rose Mirian e os filhos dos dois. O famoso “jornalista de fofocas” Léo Dias foi o primeiro a publicar a grande “bomba”: o suposto relacionamento entre Gugu e o chef Thiago Salvático, revelando, inclusive, fotos de viagens feitas pelos dois.

Após a repercussão, Léo se pronunciou em texto para o UOL justificando sua atitude de expor abertamente a sexualidade de um famoso. Tal fato, segundo ele, era importante para que o Brasil pudesse saber a “verdade” sobre toda a questão relacionada à vida conjugal do falecido e à sua suposta união estável com Rose. No mesmo texto, Dias acusou ainda a imprensa de ter medo de afirmar categoricamente que Liberato era gay e que isso era sustentar uma mentira por conta da homofobia presente no país.


É importante destacar que a existência do relacionamento com Salvático por si só não contradiz a narrativa de que Gugu e Rose possuíam uma união estável, uma vez que poderia ser fruto de uma relação extraconjugal ou de um casamento aberto. Também não torna o apresentador gay por si só, afinal, existem pessoas bissexuais. Ambos esses fatos põem em cheque a justificativa para divulgação do relacionamento e revelam a real razão para a divulgação: a busca por visibilidade.


Diante de um mercado cada vez mais competitivo, veículos de imprensa buscam noticiar informações “bombásticas”, “em primeira mão”, para se destacar em meio ao mar de informações virtuais disponíveis para o usuário. Essa é uma característica que, inclusive, põe as notícias sobre celebridades em um local privilegiado no cenário virtual. Cavar informações privadas de famosos em um contexto onde o público está tão imerso vida dessas pessoas dá views. Muitos views.


No mundo capitalista e midiatizado em que vivemos, é impossível exterminar a busca por atenção dos produtores e veiculadores de conteúdo, mas é preciso reforçar alguns limites éticos, impedindo que o direito à privacidade do indivíduo seja violado. A orientação sexual de uma pessoa, por si só, não é assunto de interesse público, diferente do que Léo Dias afirmou, e não deve publicizar essa revelação sem confirmação direta e espontânea da própria pessoa, ou em caso de falecimento, de algum cônjuge ou pessoa próxima.


Durante séculos, pessoas LGBTs têm tido o controle sobre suas narrativas roubadas. É extremamente importante que a imprensa, um dos maiores elementos formadores de opinião pública, respeite “se”, “quando”, e “como” alguém quer se assumir. Durante muitos anos, jornalistas especializados em famosos têm produzido insinuações indiretas sobre a sexualidade de celebridades, em uma prática sensacionalista e antiética que, mesmo que desperte o interesse e curiosidade de uma quantia significativa do público, não contribui com os valores que o jornalismo se propõe a defender. A mídia mais tradicional também já cometeu deslizes, especialmente na falta de visibilidade dada às reivindicações de direitos por parte dessa parcela da população, muito por conta da heteronormatividade tão presente no país.


Olhando para trás, seguindo em frente


Durante os anos 80 e 90, quando Gugu surgiu e posteriormente se consolidou como apresentador, era impensável que pudesse existir uma figura abertamente LGBT em plena TV aberta brasileira em uma posição de visibilidade e prestígio. A não-heterossexualidade e a não-cisgeneridade estavam confinadas, quando muito, à invisibilização ou à presença em programas humorísticos. Havia pouquíssima possibilidade de alguém com essas características fosse aceito em outros papéis midiáticos em posição de destaque.



A escassez de LGBTs em lugares de prestígio na televisão é um exemplo da forte heteronormatividade presente na cultura brasileira. Não dá pra saber se, mesmo em meio a um contexto mais tolerante, Gugu ainda optaria em esconder sua sexualidade, mas é preciso criar um ambiente social onde fazer isso não seja necessário para se manter na mídia, mas sim uma escolha. Nenhuma pessoa, famosa ou não, deveria ter que optar entre a liberdade de expor sua sexualidade e poder realizar o trabalho que gosta. Por isso, é fundamental que o assunto sirva como “porta de entrada” para discutir o tema, representando uma autocrítica, por exemplo, das próprias emissoras.


Os jornais, revistas e sites, precisam, acima de tudo, abordar a questão LGBT mostrando não o que sociedade “quer”, mas sim, o que ela “precisa”, e ela precisa de menos intolerância. Segundo a Hipótese do Agendamento, introduzida pelos professores norte americanos Donald L. Shaw e Maxwell McCombs em 1972, os meios de comunicação de massa possuem uma grande capacidade de ajudar a definir os assuntos que o público acha relevantes. Mesmo que outros fatores também ajudem a determinar os temas que são valorizados pelo coletivo, a mídia, e consequentemente a imprensa, aparecem como um importante agente nesse processo, e por isso não devem recorrer a abordagens rasas.


Dessa forma, os grandes veículos poderiam abordar os aspectos sistêmicos e estruturais ligados às revelações citadas. Ainda que isso não seja abertamente confirmado por pessoas próximas, já é possível concluir que a não-heterossexualidade de Liberato é um fato, seja pela relação com Salvático (não desmentida pela família do apresentador), ou pela natureza não-romântica entre ele e Rose Miriam, exposta, inclusive, em documentos revelados publicamente. Mesmo que essa revelação não tenha sido feita de forma ética, uma vez exposto o assunto, é preciso usá-lo de uma forma realmente benéfica, aproveitando a visibilidade como estudo de caso para analisar e questionar a LGBTfobia.


As diferenças hoje notadas entre o Gugu “público” e o Gugu “privado” são fruto de decisões pessoais, mas poderiam não existir, se a população e o meio televiso brasileiros fossem mais tolerantes. Dado o modo como sua heterossexualidade, antes tida como fato contrasta com as atuais revelações e a real natureza de seu relacionamento com Rose, conclui-se que a imagem do apresentador era algo construído, desconectado do seu verdadeiro eu. E isso muito provavelmente se deve ao meio em que vivia.


Não é possível saber, de forma exata, como ele se sentia sobre sua orientação e sobre sua imagem, mas a forma hostil com a qual a sociedade brasileira aborda a homoafetividade não é segredo pra ninguém. Logicamente, a forma como Rose Miriam foi “usada” para supostamente manter a “imagem de família tradicional brasileira”, é no mínimo, moralmente questionável, mas é possível que toda essa situação não tivesse ocorrido se não estivéssemos inseridos numa cultura extremamente LGBTfóbica, que respinga no jornalismo.


A importância da representatividade também deve se tornar pauta. A presença de pessoas declaradamente LGBT em posições de visibilidade na TV permite que essa parcela da população se sinta representada em pé de igualdade com a heteronormatividade e a cisgeneridade. Além disso, também colabora com a familiarização do público hétero e cisgênero com esse grupo social. É importante que a grande imprensa saibam reconhecer isso, indo além da exposição pela exposição, e do mero uso da história como entretenimento, demonstrando a importância de criar um espaço seguro para a presença dessa comunidade em destaque na TV aberta.


Em uma sociedade hoje altamente fragmentada, e com a atenção dividida, é possível encontrar LGBTs em diversos nichos, em especial na internet. Porém, a maioria ainda enfrenta resistência ou desinteresse do público mainstream. Falar sobre esse assunto no jornalismo pode ampliar as possibilidades, permitindo que a mídia e os espectadores de meio como a TV possam entender e questionar a realidade atual do tema. Hoje, já existem pessoas assumidas em papéis de destaque no entretenimento, como as atrizes globais Nanda Costa e Bruna Linzmeyer e a apresentadora Fernanda Gentil, mas a representatividade desse grupo social no entretenimento ainda engatinha, e a discussão do “porquê” disso em rede nacional é um passo importante para mudar a situação.


Não dá pra dizer que estaremos criando um mundo mais tolerante para o “próximo Gugu”, pois o seu legado é insubstituível e o formato de TV que o popularizou há algumas décadas atrás praticamente já não existe. Mas é possível, sim, ampliar o leque das figuras televisivas marcantes do país para fora do armário.



 

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