A xenofobia mora na subjetividade: Juliette e o Big Brother Brasil
Atualizado: 30 de mai. de 2023
"Lá na terra dessa pessoa é normal falar assim. Eu sou de Curitiba, que é uma cidade muito reservadinha. Por mais que eu seja artista e rode o mundo, tenho os meus costumes, eu tenho muita educação para falar, não falo pegando nas pessoas”. Essa foi a fala da cantora Karol Conká sobre a advogada paraibana Juliette Freire, com quem está convivendo na casa mais vigiada do Brasil. A vigésima primeira edição do Big Brother Brasil, programa exibido pela Rede Globo, foi ao ar no final de janeiro e já colocou em pauta vários debates sociais. Entre eles, o preconceito sofrido por quem nasce no Nordeste do país.
Assim como vem acontecendo nos últimos anos, não é preciso assistir o BBB todos os dias, assinar o pay-per-view e acompanhar 24h para o assunto chegar nas rodas de conversa ou passar pela sua timeline, principalmente se você usa Twitter. Juliette é uma participante que chama a atenção desde sua primeira aparição, sendo escolhida pelo público junto com mais cinco participantes para ser imunizada do primeiro Paredão antes mesmo de entrar. Por seu jeito expansivo, ela acabou caindo nos assuntos mais comentados aqui fora pelas piadas e flertes com o cantor e ator Fiuk, que também estava entre os seis imunizados - que ficaram separados do resto por quase dois dias.
Juliette fala bastante, é uma característica de sua personalidade. Logo na primeira semana de jogo, na casa com os outros participantes, ela acabou passando tempo demais gravando seu raio-x diário, tarefa que precisa ser feita por todos os jogadores. Isso prejudicou o tempo das pessoas que ainda precisavam gravar e até causou um atrito com Lumena, outra sister do programa.
Apesar de ter cometido pequenos erros e feito algumas brincadeiras com os colegas, não demorou muito para a advogada começar a ser perseguida dentro da casa. Karol Conká, paranaense, falava - e ainda fala - mal de Juliette quase todos os dias, além de estar sempre debochando da forma da paraibana falar, tanto na frente quanto por trás da sister. O rapper paulistano Projota imitou o sotaque de Juliette várias vezes ao lado do amigo Nego Di, comediante gaúcho. O paulista Fiuk também chegou a discutir com ela. O que os quatro têm em comum? Pois é.
Na terça-feira (2), após a eliminação de Kerline, também nordestina, Juliette se sentou no jardim para conversar com todos sobre suas chateações. Ela estava cansada, confusa e sufocada por tantas pessoas se incomodando e se ofendendo apenas com o jeito dela de ser e agir. Mas a conversa não deu muito certo. Quando ela disse, na frente de todos, que estavam imitando o seu sotaque e zombando dela, recebeu em troca acusações de que estava exagerando ou mentindo. Ficou como louca na história.
Não é um caso isolado
É isso que acontece com muitos nordestinos quando passam a morar no Sudeste ou Sul do país ou precisam, por algum motivo, conviver com pessoas dessas regiões. Ser alvo de piadas, deboches e ironias pela forma de falar e, caso isso seja apontado, ser colocado como surtado e exagerado. As violências simbólicas e não simbólicas são inumeráveis, desde as citadas anteriormente até nordestinos serem preferidos em vagas de trabalho em que não é necessário falar muito. É impossível listar todos os relatos.
Segundo o professor e historiador da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Durval Muniz de Albuquerque Júnior, autor do livro ‘A Invenção do Nordeste e outras artes’, xenofobia é “o medo ou rejeição ao estrangeiro, embora esteja sendo comumente usado para falar de toda forma de preconceito em relação a lugar de nascimento”. Na Constituição brasileira, ela é vetada pela Lei Nº 9.459, de 13 de maio de 1997 e pela nova Lei da Migração, vigente desde 2017.
Mas afinal, o que Juliette sofreu no reality pode ser caracterizado como crime de xenofobia? Em entrevista ao portal UOL, Durval Muniz explica que talvez se encaixe mais como preconceito de origem, que também é crime.
“Ridicularizar o sotaque do outro tem a ver com o preconceito porque o sotaque é uma das marcas identitárias mais difíceis de alguém omitir”, disse o professor
Mesmo que o caso de Juliette não seja crime penal de xenofobia, são evidentes os efeitos do preconceito regional com quem mora no Nordeste e no Norte do Brasil. Para quem está “do lado de lá”, as duas regiões são praticamente uma coisa só. Até a nomenclatura ‘nordestino’ pode ser problematizada, visto que não é comum chamar quem é do Sul de ‘sulista’ ou quem é do Sudeste de ‘sudestino’.
As raízes do preconceito
Toda a problemática da xenofobia com nordestinos vem de anos atrás e está diretamente relacionada ao processo de urbanização acelerado e às migrações que aconteceram dentro do Brasil na segunda metade do século 20. Por conta dos problemas sociais sistematicamente mantidos na região, muitas pessoas que moravam no Nordeste do país precisaram se mudar para os estados do Sudeste e Sul, principalmente São Paulo, para tentar condições de vida melhores. Muitas vezes, os trabalhos disponíveis para essas pessoas eram braçais, em setores de serviços e construção civil. No caso das mulheres, as oportunidades se limitavam a trabalhos domésticos. Por conta desse movimento, a imagem do nordestino no Sudeste ficou associada à posições inferiores e à pobreza.
Outro fator que contribuiu para essa falsa noção do nordestino foi o imaginário da seca e da miséria que ficou impregnado na figura da região. Tudo isso sempre relacionado também a uma visão de inferioridade do ponto de vista intelectual - que aciona exatamente o ponto que Juliette sofreu: ser aquele que não sabe se expressar, fala errado e usa incorretamente a língua portuguesa.
Além desses e outros fatores, é importante lembrar de uma questão crucial: a racialização dos migrantes internos. Uma grande parcela dos nordestinos que precisaram se mudar para o Sudeste e Sul do país para procurar um trabalho era composta por não brancos. Em contraste, essas duas regiões receberam durante os séculos 19 e 20 uma quantidade significativa de imigrantes europeus, fazendo com que sua população se tornasse majoritariamente branca. Ou seja, há uma interligação entre preconceitos de origem, raça e classe social.
“A certeza de que o rápido desenvolvimento do Sul, notadamente de São Paulo, se explicava por sua superioridade de clima e de raça, por ser um Estado de clima temperado e raça branca, levava a que não se tivesse dúvidas do destino desta área, “puxar o trem descarrilhado de uma nação tropical e mestiça””. Durval Muniz de Albuquerque Júnior em ‘A Invenção do Nordeste e outras artes’, 2011.
A falta de conhecimento sobre a região que acaba resultando na xenofobia também não é algo que acontece por acaso, é sistemático e proposital. A representação do Nordeste na mídia tradicional falha. Os principais telejornais brasileiros, por exemplo, estão localizados na região Sudeste, fazendo com que o sotaque dessa região seja considerado ‘normal’ e os de outras regiões sejam os 'diferentes'.
Por se apresentar em formas de microviolências muitas vezes subjetivas, a xenofobia acaba sendo difícil de identificar até mesmo por quem a sofre, porque o padrão já está tão enraizado na sociedade brasileira que se torna quase uma regra.
Outros nordestinos no BBB
Em conversa com o economista Gilberto Nogueira, que é pernambucano e participa do BBB21, Juliette disse que só ele conseguia entendê-la. Gilberto também teve seu jeito e sotaque imitados pelos sudestinos e sulistas dessa edição do programa. Vale destacar que Pernambuco é um estado vizinho da Paraíba, com muitas expressões em comum e similaridades na forma de falar. Gil, além de ser nordestino, também é gay e afeminado, o que vem causando reações negativas por parte de alguns dos participantes, mas essa questão já é pauta para outra história.
Lumena Aleluia, também participante do reality, é baiana. Kerline, que foi eliminada, é cearense. Pelo fato da região ser composta por nove estados, acabam existindo vários ‘nordestes’, o que pode ter influenciado no fato delas não terem percebido as agressões psicológicas cometidas contra Juliette dentro da casa. Aqui no Nordeste não existe apenas um sotaque e uma cultura, pelo contrário. São muito plurais e estão espalhados por todos os estados e cidades da região.
Flayslane, ex participante do BBB20 e também paraibana, se pronunciou sobre o ocorrido com Juliette no seu Twitter, demonstrando apoio à conterrânea.
O que fazer?
O preconceito regional e a xenofobia não existem apenas dentro da casa do Big Brother. Mas qual o nosso papel aqui fora, afinal? Talvez seja ingenuidade ou esperança demais, mas ainda é possível acreditar no poder da educação, desde o espaço escolar até correções e apontamentos diários.
Juliette vem recebendo bastante apoio, sendo uma das participantes mais queridas pelo público aqui fora. Mas isso talvez não estivesse acontecendo se o preconceito pela sua origem não tivesse sido evidenciado nas falas de Karol Conká. A assessoria de Juliette publicou em seu Instagram um vídeo exemplificando e explicando algumas expressões paraibanas usadas por ela no reality, para o público se familiarizar e entender melhor.
A jornalista, atriz e influencer recifense Ademara Barros, conhecida como Ademaravilha, que mora no Rio de Janeiro, faz um trabalho interessante de apontamento da xenofobia com seus vídeos, levantando a pauta através do humor. A personagem “Laura Tampurini”, criada pela atriz, é uma repórter sudestina e xenófoba. Por meio dela, Ademara denuncia os preconceitos que sofreu e sofre sendo uma nordestina que mora no Sudeste.
É importante sempre estarmos atentos e percebermos esses tipos de violência, tanto as televisionadas quanto as do nosso dia a dia. O caminho nunca será o silêncio. Precisamos nos impor e apontar sempre as violências que são cometidas, em todas as esferas, por mais simbólicas e subjetivas que elas sejam. Afinal, esse tipo de preconceito é uma forma de ódio que qualquer pessoa está suscetível a cometer e a sofrer. E que Juliette continue levantando a cabeça dentro do BBB e aqui fora também.
Fonte: Livro 'A Invenção do Nordeste e outras artes', de Durval Muniz (2011).
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