Adélia Sampaio, pioneira do cinema negro brasileiro
Atualizado: 9 de nov. de 2023
Cineasta mineira que foi a primeira mulher negra a fazer um longa no Brasil falou com a TAG em entrevista exclusiva
“Quer uma água, minha filha?” Foi a primeira frase que Adélia Sampaio me disse quando entrei dentro do seu quarto de hotel, em Boa Viagem, no Recife. Lembro, até hoje, de quando ouvi falar nela pela primeira vez, numa aula de Cinema na universidade. Período de pandemia de Covid-19, aula online, desmotivação, ansiedade e tudo de pior que o período de 2020 trouxe. Mas descobrir esse nome naquele dia me fez ficar completamente interessada na cadeira que estava pagando. O motivo? Adélia Sampaio foi a primeira mulher negra a dirigir e distribuir um longa metragem no Brasil, chamado “Amor Maldito”, em 1984. Não tinha como não prestar atenção nisso.
E não foi um filme com uma história qualquer. “Amor Maldito” acompanha um casal formado por duas mulheres, Fernanda e Sueli, interprertadas por Monique Lafond e Wilma Dias. Por conta de crises na relação, Sueli se envolve com um homem e engravida, ficando sem apoio e acaba cometendo suicídio. Fernanda vira ré no julgamento, que considerou que Sueli foi levada a se suicidar por alguém - a “amiga” que a colocou no “mau caminho”, de perversão e homossexualidade. Tudo isso em pleno período de Ditadura Militar.
Conversei com Adélia numa sexta-feira pela manhã. Depois de me perguntar se eu queria água, ela corrigiu quando eu a chamei de “senhora”. “Por favor, eu acho melhor você ir em casa, deixar o ‘senhora’ e voltar com ‘você’”, disse, rindo. Ela estava aqui em Recife para a Mostra Sétima Arte Feminina: O Cinema de Adélia Sampaio, que aconteceu na Caixa Cultural. Quatro décadas depois do lançamento de “Amor Maldito”, Adélia vem sendo reconhecida pela sua importância e pioneirismo no cinema, atingindo principalmente as novas gerações. Fenômeno que não aconteceu no início.
Falando em inícios, Adélia lembra até hoje de sua infância e dos seus primeiros passos na vida e na carreira. Nasceu em Belo Horizonte, Minas Gerais, em 1944. Filha de empregada doméstica, conta que percebeu cedo que era uma mulher preta por conta de sua mãe. “Tinha eu e minha irmã, Eliana, que era quatro anos mais velha que eu. [...] Eu adquiri consciência da minha cor quando eu me dei conta que a minha mãe foi escravizada nos anos 50. Ela ficou refém de uma pessoa que se dizia afetuosa, que ia cuidar das filhas, ajudar as filhas. E ela separou essas duas filhas dessa mãe”, explicou. “[...] Então eu adquiri essa coisa de perceber que eu poderia ser emissária das questões da cor, inclusive por estar mexendo com uma coisa elitista, porque o cinema é uma arte elitista.” Adélia foi separada da sua família quando tinha apenas seis anos e colocada em orfanatos até ser buscada vários anos mais tarde, quando já estava com 13 anos, por sua mãe, Guiomar. Ela conta que guardava o par de sapatos do dia que foi separada de Guiomar e Eliana: “[...] Eu guardava o sapatinho porque eu achava que aquele sapato me levava de volta para mamãe, que ele sabia onde encontrar mamãe.”
Ser a primeira mulher negra a dirigir um longa no Brasil é um ato vanguardista, principalmente vindo de uma filha de empregada doméstica, sem muitos recursos próprios. Adélia conheceu o cinema por conta da sua irmã mais velha.
“Um dia, ela [Eliana] disse assim: ‘Ó, você vai conhecer o cinema.’ E eu disse que não, tudo para mim era ‘não’. E ela: ‘Mas você vai, você vai ver um filme.’ Quando eu entrei no Cinema Metro-Passeio, achei um luxo. Ela entrou me puxando, e eu sem querer entrar, aí ela me sentou e ficou do meu lado, me segurando. Quando deu o blackout eu levantei porque eu tinha medo de escuro e ela mandou eu sentar. E eu sentei exatamente no momento em que abriu uma luz na tela, eu olhei aquilo e pensei: ‘Meu Deus, eu vou entrar nesse lugar.’ Foi a primeira coisa que veio à minha cabeça. Eu vi ‘Ivan, O Terrível’, que é um filme belíssimo, e fiquei encantada com aquelas imagens. Quando acabou, ela perguntou o que eu achei, e eu disse: ‘Eu gostei. Eu vou fazer isso.’ E ela me disse para parar: ‘A gente é pobre, cinema é coisa de rico.’ Mas eu continuei e disse que ia fazer.” - Adélia Sampaio
E ela foi lá e fez. Depois de passar por alguns empregos, Adélia respondeu a um anúncio de jornal para uma vaga de telefonista, em 1968, quando tinha 24 anos. O emprego era na Difilmes, uma produtora que reuniu vários cineastas e pensadores do Cinema Novo. Esse movimento do cinema brasileiro se posicionava como inovador e revolucionário, uma alternativa contra o cinema imperialista e dominante de Hollywood, inspirado pela Nouvelle Vague francesa. Essa aproximação de Adélia com os principais nomes do Cinema Novo, como Leon Hirszman e Nelson Pereira dos Santos, foi um dos principais fatores que a levou a fazer cinema.
Antes de dirigir seus próprios filmes, ela foi maquiadora, continuísta, câmera, montadora e produtora. “Eu comecei a pedir para os assistentes de câmera guardarem para mim as ‘pontas’ dos filmes que sobravam. Eu enrolava num pano preto e punha na geladeira, e comecei a juntar pontas de filmes para fazer meu primeiro curta.” “Denúncia Vazia” é o nome do primeiro curta-metragem de Adélia Sampaio, lançado em 1979. Ela fez também “Adulto Não Brinca” em 1980, ambos disponíveis no seu próprio canal do YouTube, de forma completamente gratuita, assim como todos os seus outros filmes. Ambos também nasceram de casos reais, como é o caso de “Amor Maldito” e de outras produções da cineasta.
Conversando com Adélia em outro momento, logo após a sessão do seu longa pioneiro na Mostra Sétima Arte Feminina em Recife, perguntei o motivo dela fazer filmes baseados diretamente na realidade. Ela respondeu que a fonte de inspiração para sua arte é o ser humano: “Coisas que toquem minha alma”, explicou. “[...] Meus filmes são todos buscando o discurso da humanística. Eu não acredito em outra coisa que não seja isso.” É o cinema como ferramenta de denúncia, como aconteceu também no documentário "AI-5 – O Dia Que Não Existiu", de 2001, em codireção com o jornalista Paulo Markun, que relata momentos históricos vividos no Congresso Nacional em 1968.
Adélia conta, com brilho no olhar, que, na época do lançamento de “Amor Maldito”, numa exibição do filme, uma mulher disse para ela que via uma conhecida, lésbica, com outra visão, uma mais positiva, depois de ter assistido ao filme. Para ela, foi como uma sensação de dever cumprido.
Apesar dos seus filmes serem disponibilizados atualmente de forma fácil e gratuita na internet, Adélia enfrentou diversas dificuldades para lançar e distribuir “Amor Maldito”. Se hoje já é complicado para um filme nacional entrar no circuito, imagine há décadas atrás. Na época, todos os filmes precisavam do aval do governo formado pelos ditadores militares para serem filmados e para circularem. É possível imaginar o que foi dito sobre um longa que abordava o romance, o afeto entre duas mulheres. Mesmo assim, ela se desdobrou e conseguiu gravar o filme de forma cooperativa, com ajuda de vários amigos e amigas da área. Segundo ela, até o "rapaz do café" recebeu uma parte do dinheiro que o filme gerou - e que não foi nada fácil de conseguir.
“Eu acho que o cinema não é a arte do isolado, é a arte do todo. Quanto mais pessoas estiverem anexadas ao seu projeto melhor, porque o filme acaba tendo uma latência de quem está participando.” - Adélia Sampaio
Para “Amor Maldito” ser distribuído, foi preciso que fosse vendido como um filme pornô, mesmo sendo uma obra com uma grande carga dramática e séria. Foi assim que ele ganhou duas salas para exibição em São Paulo. Na segunda semana em cartaz, o renomado crítico de cinema Leon Cakoff foi assistir ao filme e estampou no jornal uma crítica falando que era um absurdo o filme ser visto como pornô, por ser muito mais que isso. Depois disso, o filme vingou e ganhou mais salas em outros locais.
Na nossa conversa, Adélia pontua sobre a sensação que sente ao ver que, quase 40 anos depois, o filme sobrevive ao tempo, sendo ainda nos dias de hoje uma história atual e que capta a atenção do público mais jovem. “É muito importante para mim que, de repente, uma galera jovem se desloca de casa e vai assistir um filme que a maioria dos atores inclusive já morreram”, diz.
A cineasta mineira e seu pioneirismo — que ela diz ter sido circunstancial — são exemplo para a novas geração de cineastas pretas. Adélia conta que, certa vez, estava em Juiz de Fora (MG) para uma exibição e debate sobre “Amor Maldito”.
“Levantou uma menina magrinha e ela disse que não queria perguntar nada. E ela disse: ‘A vida inteira eu procurei um espelho para me olhar. Acabei de descobrir que a senhora é meu espelho.’ Na hora, falei para ela levar o ‘senhora’ para casa e voltar com o ‘você’ e todo mundo caiu na gargalhada, mas aquilo mexeu tanto comigo que chorei depois”, narra. A jovem, negra, estava em ano de prestar vestibular e queria cursar Cinema.
Adélia finalizou nosso bate-papo naquele quarto de hotel em Boa Viagem desabafando sobre uma situação de racismo que vivenciou num aeroporto em Porto Alegre (RS), já mais velha. Falou que, para fazer cinema, é preciso coragem. “Diante do medo, coragem”, como dizia sua mãe Guiomar. E completou: “Se você é ‘de cor’, você tem que se impor. Não deixe que as pessoas te destratem, embora eu tenha sofrido, e ainda sofro. [...] Temos que mostrar a nossa importância. [...] Não abandonem seus sonhos, eles valem mais que qualquer coisa. Sonhar é fundamental.” Que continuem florescendo mais Adélias, que, diante do medo, têm coragem.
"[...] Não abandonem seus sonhos, eles valem mais que qualquer coisa. Sonhar é fundamental." - Adélia Sampaio