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Foto do escritorThallys Rodrigo

“Amarela” representa vivência nipo-brasileira em Cannes 

Diretor André Hayato Saito e protagonista Melissa Uehara falam sobre presença do curta no festival e representatividade



Há quase 116 anos, um navio atracava no porto de Santos.


Para muitos trabalhadores do local e vários outros brasileiros, era só mais uma embarcação, dentre tantas, a aportar em solo nacional. Porém, para os 781 imigrantes japoneses que desembarcavam - e para o país, como um todo - foi um dos primeiros passos de um processo único, que transformou a vida de gerações. 


A chegada do navio Kasato Maru ao Brasil, em 18 de junho de 1908, é amplamente considerada o marco inaugural da imigração japonesa no país, um processo que reverberou pela história. Entre choques de costumes e tantos outros fatores, as famílias que se estabeleceram, assim como seus filhos, netos, e bisnetos, moldaram e foram moldados pelas culturas locais. 


Língua, música, culinária, hábitos. Coração, mente, crença, “ser”. Delícias, e também dores. Mais do que um processo de imigração, o contato em grande escala entre as culturas do Brasil e do Japão em solo brasileiro desenvolveu, em uma jornada de décadas, uma identidade nova e particular: a nipo-brasileira. E como tantos frutos de misturas culturais, trata-se de uma gama de individualidades que é fonte de grande riqueza e também de grande conflito. 


“Sempre me senti japonês demais para se brasileiro e brasileiro demais para ser japonês”, destaca o cineasta nipo-brasileiro André Hayato Saito. “A busca por uma identidade que habita o entrelugar se tornou a parte mais sólida de quem eu sou”.


Foi a partir deste “entrelugar identitário”, como descreve Saito, que surge “Amarela”, produção brasileira que concorre à Palma de Ouro dos curtas-metragem no 77º Festival de Cannes. Único representante do Brasil na competição de curtas, o filme disputa a honraria com outras 10 obras, de países como China, França e Azerbaijão. Os 11 curtas foram selecionados dentre 4420 concorrentes.


Diante da exibição de “Amarela” em Cannes, a TAG entrevistou André Hayato Saito, diretor e co-roteirista da obra, e a protagonista Melissa Uehara, em uma conversa sobre as temáticas do filme, representatividade amarela no audiovisual e o caminho até Cannes. 


Uma forma de “ser” 


Quando o assunto é sucesso internacional, é comum que brasileiros torçam pelo êxito de filmes e artistas brasileiros por meio de uma noção de patriotismo que nos une. Em Cannes, “Amarela” representa não apenas o Brasil, de forma mais geral, mas também dá visibilidade a uma dentre inúmeras formas de “ser” possíveis para indivíduos naturais de nosso território. Dessa vez, os holofotes são voltados à experiência de nipo-brasileiros. 


E é justamente de um elemento cultural tão identificado como “brasileiro” que parte a história de “Amarela”. O curta é ambientado em julho de 1998, na final da Copa do Mundo, entre Brasil e França. Nesse momento decisivo do torneio, a adolescente nipo-brasileira Erika Oguihara (Melissa Uehara), de 14 anos, anseia pela comemoração de um título.



Seguindo o foco na experiência asiática-brasileira, o curta explora a rejeição de Erika aos costumes da família japonesa. Além disso, segundo a sinopse da produção, a jovem sofre uma violência que “parece invisível” em meio à tensão da final da Copa, adentrando em um “mar doloroso de sentimentos”.


“‘Amarela’ é uma ferida aberta não só do povo Nipo-Brasileiro, mas de todos os filhos das diásporas ao redor do globo que se conectam a esse sentimento de serem estrangeiros no próprio país. Erika, a protagonista, representa o desejo de encontrar nosso lugar no mundo”, destaca Saito em press release do filme.


Assim como a própria experiência nipo-brasileira, o curta selecionado para Cannes é mais uma etapa de uma trajetória que atravessa gerações. Trata-se da terceira parte de uma trilogia de curtas de André Hayato Saito produzidos pela MyMama Entertainment. 


“Kokoro to Kokoro”, primeira das três produções, aborda a amizade da avó paterna de Saito com sua melhor amiga japonesa. “Vento Dourado”, o segundo curta, foca na avó materna do cineasta, Haruko Hirata, e em sua relação com sua filha e cuidadora, Sumiko, tratando da relação entre gerações.


“Amarela” é a primeira experiência 100% ficcional da empreitada, e serve como uma espécie de protótipo para um futuro longa-metragem, "Crisântemo Amarelo". “Foi um processo fluido e natural nesse sentido. Virou um estudo e foi muito importante para exercitar a linguagem do filme, testar o casting, arte, locações, cinematografia, etc”, destaca Saito.



Presença na tela e nos bastidores


E por falar em questões técnicas, as experiências de pessoas asiáticas estão presentes em “Amarela” para muito além da temática. O elenco e equipe são compostos, em sua maioria, por pessoas amarelas brasileiras, algo que, segundo o diretor, fez toda a diferença no resultado final.


“Trazer asiáticos brasileiros para contarem a história de asiáticos brasileiros possibilita uma miríade de ideias, discussões, detalhes, que só podem vir para tela porque há representatividade atrás das câmeras. Eu nunca antes estive em um set com tantas pessoas que se parecessem comigo. Foi uma experiência profunda e rica”, destacou Saito.

A representatividade à frente e por trás das câmeras também teve um impacto muito positivo para a atriz Melissa Uehara, protagonista de “Amarela”.


“É algo que me deixa extremamente feliz e provavelmente foi o motivo da minha experiência com as gravações serem tão boas! Apesar de ser meu primeiro trabalho no audiovisual, posso afirmar que nunca me senti tão acolhida e à vontade antes, cercada de pessoas que me acolhiam e me ‘faziam pertencer’”, revelou a artista, em entrevista à TAG. 


Trata-se de um cenário ainda raro, tanto a nível internacional quanto nacional. Em diversos mercados mundo afora, a quantidade de produções audiovisuais protagonizadas ou idealizadas por pessoas asiáticas ainda é pequena se comparada a filmes ou séries estrelados, escritos ou dirigidos por brancos. Também é comum que os personagem se façam presentes, mas com uma forte carga de estigmas. 


“Infelizmente, os estereótipos ainda se fazem muito presentes hoje em dia. Já me deparei diversas vezes com personagens criados baseados totalmente em estereótipos. Esses ‘padrões’ acabam impondo rótulos e se tornando clichês. Por isso, ao escolher um papel, não me sinto confortável ao representar algo que não seja ‘verdadeiro’ pra mim”, destaca Melissa. 

“Os estereótipos são extremamente superficiais, portanto não conseguem descrever profundamente as emoções do personagem e, no meu ponto de vista, acabam o deixando menos ‘humano’”.


Tanto Melissa quanto Saito acreditam que tem havido uma melhora na representatividade. O diretor destaca "Vidas Passadas", "Dias Perfeitos" e a série "Treta", da Netflix, como algumas das produções que têm trazido pessoas de origem asiática para uma posição de destaque.


“É animador notar que essas produções estão ampliando suas narrativas para tratar de questões que vão além da etnicidade, alcançando uma profundidade que muitos esperam continuar vendo. No entanto, ainda enfrentamos grandes desafios. Não é raro que personagens asiáticos sejam apresentados nas tramas mais pela sua raça do que por serem simplesmente parte do cotidiano brasileiro, aponta Saito.


As dificuldades para pessoas amarelas no audiovisual brasileiro são exemplificadas por casos como o da atriz Stefany Vaz, que estrelou a novela infantil “Carossel”. Ela relatou ter sofrido xenofobia no meio artístico, além de ter sido orientada em uma agência a não utilizar seu sobrenome asiático, Yamashita, por ser mais difícil obter trabalhos. 



Além disso, em mais de 70 anos de telenovelas no Brasil, apenas duas atrizes asiáticas já foram protagonistas: Rosa Miyake em “Yoshico, um Poema de Amor” (1967), e Ana Hikari, em “Malhação: Viva a Diferença” (2017).


No cinema nacional, há uma baixa representatividade de atores amarelos em papel de destaque, e Saito destaca uma de suas inspirações, a diretora Tizuka Yamasaki, como uma rara presença de mulher asiática em uma área de atuação dominada por homens brancos.


“Com certeza ser amarela em meio a um cenário onde as pessoas são majoritariamente

brancas é um desafio. Não só pela falta de oportunidades, mas pelo sentimento de não

pertencer”, diz Melissa.


“Por isso, ao participar de ‘Amarela’, vi a verdadeira importância em exigir maior representatividade nos meios artísticos. Vou sempre defender essa causa, para que muitos outros projetos brasileiros-asiáticos possam ganhar o reconhecimento que merecem”.


Navegando pelos mares do cinema


A jornada dos imigrantes japoneses no país foi repleta de desafios, que começaram na longa viagem de 52 dias do Kasato Maru para o Brasil. Ao chegar a seu destino, barreiras linguísticas, diferenças culturais e o árduo trabalho ao qual foram destinados também representaram barreiras para o estabelecimento da comunidade no país. 


Guardadas as proporções, no Brasil, o caminho de um filme da mente dos idealizadores até as telas pode ser um processo desafiador, como o caminho das famílias nipônicas que atravessaram o mar a partir de 1908. No processo de produção de “Amarela”, Saito relata desafios que vão desde motivações pessoais até o tempo e o dinheiro disponíveis para dedicação ao curta. 


“Escrevemos o roteiro em março e filmamos no final de julho, tudo aconteceu muito rápido pois eu senti um chamado que precisava fazer este filme acontecer antes do nascimento do meu filho, em setembro”. 



Tirar um filme do papel envolve inúmeros necessidades, que, de forma desafiadora, foram cumpridas, pavimentando o caminho para a produção que agora leva o Brasil e os nipo-brasileiros ao Festival de Cannes. 


“Ninguém faz cinema sozinho, então em um prazo que parecia impossível, tive que reunir toda equipe, majoritariamente asiática, todo o financiamento, além da definição de linguagem, arte, história. Foi como trocar a roda do carro com ele andando”, relata Saito.


O debate sobre produção cinematográfica no Brasil comumente atravessa discussões sobre o papel dos investimentos e ações do poder público no ramo. Recentemente, especialistas em cinema comemoraram a restauração das cotas para exibição em salas de cinema até 2033, medida que ajuda a aumentar a representação nacional nas sessões.


Em 2023, quando as cotas não estavam em vigor, as produções nacionais representaram 37,5% de todas as estreias cinematográficas. Porém, ocuparam apenas 7% das sessões. “A cota de tela é um mecanismo usado por mercados consolidados”, destaca Saito. “A longo prazo isso cria um mercado forte e que traz dinheiro pro país”. 


O diretor de “Amarela" aponta ainda a importância geral das vias públicas para fomentar a indústria audiovisual local.


“Políticas públicas fomentam a identidade do cinema nacional, sem a pressão de atender exclusivamente a um objetivo comercial. Alimenta narrativas autênticas e debates necessários para a sociedade, além de aquecer uma indústria que gera muitos empregos”.


Cruzando o mar até a Croisette


A imigração japonesa no Brasil rendeu frutos culturais dos mais diversos, e agora um deles, “Amarela”, segue para o Festival de Cannes 2024 em uma caminhada que é de muita felicidade e também de muita dedicação. O caminho até a Promenade de la Croisette, icônica avenida onde acontece o festival, tem sido movimentado. 


“Assim que recebemos a ligação de Cannes (sim, eles telefonam!) a sala da minha casa parece uma redação de jornal. É tudo muito intenso, são muitos pedidos do festival, textos e mais textos, entrevistas, fotos, novos contatos, propostas... Estão sendo dias bem corridos, mas muito gratificantes. Entrar na Competição e concorrer à Palma de Ouro é um sonho”, revela Saito. 

Além disso, para o diretor, a importância de um filme como "Amarela", protagonizado e produzido por artistas amarelos, competir no festival, vai além da esfera individual. “Colocar personagens asiáticos no centro das histórias em filmes e séries é super importante para derrubar velhos estereótipos e mostrar que também temos direito a nos ver dentro do que chamamos de identidade brasileira”, aponta.

 

“Essa mudança nas narrativas não só faz as histórias mais complexas e verdadeiras, mas também ajuda a sociedade a humanizar pessoas de diferentes origens”, completa Saito, que também comemora a presença de seu outro curta-metragem, “Vento Dourado” no 46º Festival Internacional de Cinema de Moscou, em abril, e no 31º Sheffield Doc Festival, em junho.


Para Melissa Uehara, estrela de “Amarela”, a finalidade de integrar o curta e a jornada da produção até Cannes também possui um viés coletivo. “O meu único objetivo com a minha participação no curta é poder mostrar a história de muitos nipo-brasileiros que cresceram com a sensação de não pertencimento, assim como a [personagem] Erika. Deslocados onde fossem, sem ninguém com que se identificassem ou fossem representados”.



Melissa destaca a importância de “Amarela” estar em uma vitrine cinematográfica com tamanho alcance. “Sei que o Festival de Cannes vai servir como a oportunidade perfeita para transmitirmos essa mensagem tão importante e que deve ser ouvida”, aponta 


A Palma de Ouro de Curta-Metragem será entregue em 25 de maio, durante a cerimônia de encerramento do 77º Festival de Cannes. Independentemente do resultado, “Amarela” entra para a história como um retrato da potência artística de profissionais amarelos e de uma perspectiva nipo-brasileira tão invisibilizada, mas que pode e deve ser enxergada, como uma das muitas nuances, dos vários “Brasis” existentes em nosso território. 


É mais um passo de um caminhar que começou há 116 anos, em um navio cuja chegada passou despercebida para muitos, com indivíduos sempre moldados pelo passado enquanto desbravam o futuro.  



Fontes adicionais do texto: Câmara | Istoé | Galileu | Alesp | Superinteressante | UOL

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