“Aquaman 2” é o melhor que o cinema de heróis tem a oferecer?
Conclusão do DCU repete acertos do primeiro filme, mas com história enfraquecida. É hora dos super-heróis pendurarem a capa?
É um pássaro? É um avião?
Não, era uma figura chamada Superman, que surgia em 1938 voando com a cueca por cima da calça. Ele se tornaria um dos principais exemplos dessas figuras de capa e uniforme que, até hoje, dão o que falar: os super-heróis.
Esses seres voadores, super fortes, ou detentores de quaisquer poder que seja, conquistaram boa parte do público justamente pelo que podia lhes reduzir ao ridículo: eles não são como nós.
Para muitas crianças, ler ou assistir suas histórias era vivenciar naquelas figuras coloridas a possibilidade de escalar paredes, soltar raios ou até voar. Não é à toa que a chave de todo esse gênero seja essa: poder. A verdadeira força do super-herói enquanto figura narrativa é a possibilidade. De fazer aquilo que a gente não pode fazer e de enfrentar aquilo que a gente não pode enfrentar.
É claro que boa parte da literatura, do cinema e da ficção em geral gira em torno justamente da projeção do espectador, que quer vivenciar impulsos que, muitas vezes, não cabem na sua realidade, desde os amorosos até os violentos. Mas, talvez, as produções que ilustrem a riqueza das possibilidades imaginativas de forma mais crua sejam, justamente, as protagonizadas por seres superpoderosos.
Dito tudo isso, Aquaman 2: O Reino Perdido é um exemplo de como o gênero tem dado as costas à riqueza das possibilidades que o tornou possível, mas também mostra como, eventualmente, também pode abraçá-las, se houver vontade (ou permissão) suficiente.
O reinado do bufão
Quando encontramos o protagonista Arthur Curry (Jason Momoa) em Aquaman 2: O Reino Perdido, quatro anos se passaram desde o primeiro filme, e seus desafios agora são outros. Após derrotar seu meio-irmão Orm (Patrick Wilson) no filme anterior, o personagem assumiu o trono do reino submerso de Atlantis, e se divide entre os deveres de rei e a vida familiar na superfície ao lado do filho recém-nascido, da esposa Mera (Amber Heard) e do pai Tom (Temuera Morrison).
Sua vida já não andava tão pacífica, em meio a sete reinos para lidar e infinitas fraldas para trocar, mas se torna ainda mais difícil quando David Kane, o vilão Arraia Negra (Yahya Abdul-Mateen II) ressurge em busca de vingança. Dessa vez, ao invés de contar apenas com seu traje de design… curioso, por assim dizer, David usa um artefato misterioso para atacar o reino e a família de Arthur em sua jornada para vingar a morte do pai. Trata-se do Tridente Negro, ligado diretamente à história do Reino Perdido de Atlantis que dá nome ao filme.
Para derrotar o vilão, o Aquaman precisa recorrer justamente a seu irmão Orm (Patrick Wilson), exilado e aprisionado após os crimes cometidos no primeiro filme.
Se o tom humorístico dos atuais filmes de super-heróis já não fosse tão onipresente e inesperado, ler essa descrição faria alguém imaginar um filme cheio de conflitos pessoais para o herói, que passaria por suas tribulações e seria, assim, transformado para sempre por eles.
Não é bem o caso aqui, pois, ainda que existam resquícios de desenvolvimento, o protagonista serve mais como um gerador automático de piadas. E a verdade é que o tom humorístico, tão desnecessário em outros filmes de super-herói, acaba sendo o elemento que mais chama a atenção positivamente na narrativa do longa.
Isso se deve muito por conta do jeito bufão de Jason Momoa, mas também pela inabilidade do longa de gerar interesse em sua história por si só e nos detalhes dramáticos de forma profunda ou duradoura. Muitas vezes, o que vemos são muitas piadas tentando segurar uma história insossa e genérica, com muito tempo de tela relegado a um vilão raso, que nunca se torna interessante o suficiente.
Crise nas infinitas identidades
Aquaman 2 foi um projeto cercado de complexidades. Quando foi aprovado, a gestão da Warner, estúdio detentor dos direitos da DC Comics, era completamente diferente. Havia a euforia por conta do grande sucesso do primeiro filme e o universo cinematográfico da DC estrelado por Henry Cavill e Gal Gadot ainda era uma realidade.
Agora, não há Cavill, nem Gadot, nem universo cinematográfico, e Aquaman 2 se tornou o último de sua “espécie”. Após essas mudanças criativas e de gestão, inúmeros rumores de refilmagens e cortes nas cenas, o filme, enfim, chega até nós. Mas, afinal, que filme é esse?
O longa até mantém uma coerência geral, mas deixa explícito que teve partes recortadas e coladas algumas vezes. Personagens como Atlanna (Nicole Kidman), mãe de Arthur, são reintroduzidos na história de forma repentina e quase aleatória, talvez na tentativa de contornar a ausência de Williem Dafoe, que não pôde retornar ao papel de Nudis Vulko, mentor do Aquaman, por conta de conflitos de agenda.
Mas nada é mais gritante que o tratamento esquisitíssimo dado a Mera no filme. A esposa do protagonista tem seu papel aumentado e diminuído diversas vezes no decorrer do longa, de forma totalmente inconsistente. Em alguns momentos, ela some por completo em sequências onde sua ausência parece ilógica. Depois, aparece como se nada tivesse acontecido. Mesmo que o objetivo fosse, focar na relação entre Arthur e Orm, é estranho como o filme se recusa a construir um arco narrativo para Arthur e sua própria esposa em conjunto.
Aquaman 2 parece confirmar os boatos sobre o corte de cenas de Amber Heard, em meio à tumultuada batalha judicial com Johnny Depp, e a retirada das cenas parece ter sido feita sem muita cautela com a qualidade do filme. O máximo que temos são pequenos vislumbres de uma personagem que se destacou no primeiro filme por ser a rara mulher em um filme protagonizado por um super-herói homem que não se reduzia ao papel de “namorada”.
E, por falar no primeiro filme, a sequência repete muitos de seus erros e acertos, mas em uma versão mais enfraquecida. Um exemplo é a a mistura nem sempre bem-sucedida entre humor boboca (no bom sentido), aventura e até mesmo uma pitada ou outra do suspense tão característico do diretor James Wan (Invocação do Mal).
Também retornam do primeiro longa a trilha sonora com elementos eletrônicos, que orna perfeitamente com o design criativo de Atlantis e outros locais submarinos, trazidos à vida por efeitos que são, em sua maioria, satisfatórios. E, porque não, os trajes belíssimos dados aos personagens principais - até mesmo a curiosa roupa do Arraia Negra, retirada diretamente dos quadrinhos.
Outro lado positivo da herança do Aquaman de 2018 é o senso de espetáculo presente em algumas cenas, como o ataque de várias baleias a uma espaçonave a comando do herói e também alguns planos sequências bastante interessantes em sequências de ação. E não dá para negar que há elementos super legais, como Aquaman montado em um cavalo marinho luminescente. É sobre isso, imaginação!
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Uma pena que essa criatividade não se transmita na maior parte do filme, que sofre com algumas sequências de ação montadas de forma questionável e, o mais importante, não vai além do básico na hora de desenhar a trama e de solucionar o “grande mistério” que envolve o Reino Perdido.
Toda a história que envolve o reino, inclusive, é uma grande decepção, ainda mais diante do modo como o primeiro filme estabeleceu tão bem as distinções entre os outros seis reinos no primeiro longa. Essa tal civilização perdida, envolta em tantos segredos, revela-se um conceito sem graça, com criaturas genéricas e um vilão secundário que fica só na promessa.
Por outro lado, a dinâmica entre os meio-irmãos Aquaman e Orm, tão alardeada por James Wan como elemento central do filme, acaba funcionando, na maior parte do tempo. Isso se deve bastante ao carisma de Momoa e ao talento de Patrick Wilson como Orm, que chega a ser um personagem mais interessante que o irmão.
Os temperamentos opostos dos dois são ponto de partida de muitas das piadas do longa, algumas delas, bem-sucedidas. Seriam os dois irmãos a dupla Ruth e Raquel da DC, com temperamentos opostos, brigando na beira da praia? Seria o polvo ajudante deles um Tonho da Lua animal? A questão entre Arthur e Orm vai além de uma simples diferença de personalidade e isso está muito relacionado ao modo como Orm enxerga o mundo da superfície, que Arthur representa. A trajetória de “redenção” do ex-vilão podia ser melhor trabalhada, mas até que é ok.
No resto do elenco, as limitações dos outros personagens não dão espaço o suficiente para que seus intérpretes brilhem de fato, exceto, talvez, Nicole Kidman, como Atlanna, que impõe sua presença em sequências com seus filhos Aquaman e Orm, mesmo que seja substituída por um boneco de CGI meio borrado em algumas cenas de ação.
É o fim do mundo todo dia da semana
Aquaman 2: O Mundo Perdido oferece indícios de criatividade e humor de qualidade em meio a decisões duvidosas que prejudicam a obra. Após meses de boatos sobre refilmagens, sessões-testes mal-recebidas pelo público e cortes, o resultado final realmente parece transparecer que o caminho do filme até as telas foi tortuoso.
A produção propõe um cenário de ameaça ao planeta que não consegue empolgar, por não se destacar enquanto história, mesmo que tenha atributos visuais e técnicos inegáveis e consiga divertir por diversas vezes. Porém, em um cenário cada vez mais hostil aos filmes de super-herói, é preciso muito mais do que isso para conquistar o público. O fim do mundo não parece lá tão ameaçador se nos é oferecido todo mês em diferentes versões da mesma embalagem no cinema mais próximo.
De certa forma, o filme sofre de um problema semelhante ao de “As Marvels”: achar que basta ser uma história de seres super-poderosos para se destacar, sem se comprometer completamente com o senso de imaginação e possibilidade que esse tipo de história pode oferecer. A vontade está ali, mas os estúdios se acomodaram com o ato de não se permitir.
Nós, espectadores, e eles, super-heróis, deveríamos ser capazes de voar mais alto.
Ou, nesse caso, de nadar mais fundo.
Veredito: 3/5
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