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Foto do escritorThallys Rodrigo

"Assassinos da Lua das Flores" é um retrato assombroso da ganância, racismo e cinema

Atualizado: 1 de nov. de 2023

Novo filme de Martin Scorsese arrebata com narrativa poderosa sobre genocídio


O que é cinema?


Essa pergunta aparentemente tão simples tem voltado às mesas virtuais de bar de uns tempos para cá devido a um simpatíssimo senhor ítalo-americano.


Estamos falando de Martin Scorsese, diretor de obras cultuadas como 'Taxi Driver' e 'Gangues de Nova York', que agora retorna às telonas com o aguardado 'Assassinos da Lua das Flores'.


O filme chega em meio a mais declarações do cineasta sobre filmes da Marvel e de super heróis, que causaram polêmica, questionando o status dessas produções como cinema.


Mas afinal: o que é cinema? Para Scorsese, cinema é sobre "revelação - estética, emocional e espiritual". Sobre personagens complexos "pintando" a grande tela em branco das salas com seus conflitos. Amando e machucando uma aos outros.


Talvez "revelação" seja uma palavra bastante coerente para 'Assassinos da Lua das Flores', que estreia nesta quinta (19). A produção mostra, através de uma revoltante história real, o precioso e o desagradável do ser humano, e também do próprio meio artístico pelo qual é contada.


As flores têm cheiro de morte



Baseada no livro de não-ficção 'Assassinos da Lua das Flores: Petróleo, morte e o nascimento do FBI', a produção mostra ao mundo um crime bárbaro, porém, pouco conhecido.


Tratam-se dos assassinatos de indígenas Osage entre as décadas de 1910 e 1930, no Condado de Osage, em Oklahoma, EUA. Período esse também conhecido como Reinado do Terror. Foi nessa época que moradores brancos da região mataram dezenas de indígenas na tentativa de se apropriar de suas terras e riquezas, decorrentes da presença de petróleo do solo do Condado.


'Assassinos da Lua das Flores' é focado na época dos assassinatos a partir da chegada do veterano de guerra Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), sobrinho do rico fazendeiro Willi Hale (Robert Deniro), ao Condado de Osage.


Motivado por sua ganância e pelo tio - uma das grandes mente por trás dos assassinatos - Ernest se aproxima da indígena Mollie (Lily Gladstone) para, morte após morte, chegar até a fortuna dela. O plano segue caminhando até a chegada de agentes federais como Tom White (Jesse Plemons), que começam a investigar aqueles que antes estavam acima de qualquer suspeita.


Em uma narrativa cuidadosamente construída, o longa mostra como, passo a passo, de forma lenta e brutal, os assassinatos se desenrolaram, enquanto os mandates passavam impunes, escondendo-se sob uma fachada de amigos do povo originário local.


Cada um dos muitos tiros e dinamites utilizados para matar golpeiam fortemente o público, provocando tristeza e revolta pelos habitantes originais daquela terra, arrancados dela, pouco a pouco, como flores de um campo.


Muito além dos assassinatos em si, o longa também golpeia o espectador ao mostrar a raiz de tamanha crueldade: ganância e inveja desenfreadas, além do racismo implacável dos personagens brancos como William Hale, que, sob a aparência de "salvador branco", vê os Osage como criaturas fracas e menos humanas.


Martin Scorsese faz do filme uma importante peça de denúncia que, para além de informar, envolve quem assiste de tal modo que as longuíssimas 3 horas do filme praticamente não incomodam em momento algum. Trata-se de uma obra viva e vibrante, seja na delicadeza da retratação de detalhes culturais dos Osage, seja na crueza e brutalidade dos seus assassinatos.


Por mais curta que seja a participação de cada um dos indígenas assassinados no filme, é impossível não sentir a perda de cada um deles, quase como se estivesse acontecendo ali, na nossa frente.



Pontos certeiros e cegos em Oklahoma



Cinema também é sobre escolher bem que história contar e se comprometer com ela, dando peso a cada sequência e um senso de coerência a elas.


Em sua maior parte, 'Assassinos da Lua das Flores' cumpre esses dois últimos fatores com louvor, através de uma direção certeira e das belas tomadas presentes na fotografia de Rodrigo Prieto ('Barbie', 'O Lobo de Wall Street').


Os aspectos técnicos, na verdade, são um show a parte. É bastante nítido que todo o orçamento de US$ 200 milhões, enorme para um drama nos dias de hoje, foi empregado com afinco para fazer o melhor filme possível tecnicamente falando.


Figurinos e cenografia são, ambos, impecáveis, sempre transportando quem assiste exatamente para a época retratada. Além disso, chama atenção o empenho posto na gravação de cenas bastante complexas, como corridas de cavalos e grandes casamentos, mesmo que sua participação na narrativa seja curta.


Também impecável é o elenco, com DiCaprio e De Niro dominando a tela com as contradições e a dissimulação de seus respectivos personagens. Nomes como Jesse Plemons e Brendan Fraser também cumprem bem o seu papel, apesar de participarem de forma reduzida do filme.


Bastante elogiada desde a premiere do longa em Cannes 2023, Lily Gladstone tem uma atuação bastante contida e naturalista, mas não por isso menos excelente. Sua interpretação como Mollie Burkhart sem dúvidas conquista o carinho, a admiração e a compaixão do público pela das indígena sofrida, enganada e o injustiçada. Porém, é a partir da personagem que surge o aspecto mais questionável do longa.


Ainda que seja parte fundamental do longa, Mollie e sua família poderiam ter um foco maior e mais aprofundado, conforme apontou Christopher Cote, consultor de linguagem Osage do longa.



Ao longo da narrativa, conhecemos um pouco sobre a personagem, sua mãe e suas irmãs, e temos até mesmo algumas cenas sob o ponto de vista dela.


Porém, como apontado por Cote, a narrativa de fato se concentra demasiadamente sob o ponto de vista do papel de DiCaprio, que é exposto de maneira bastante satisfatória, mas que gera um certo "ponto cego" na obra.


Por exemplo, diversas vezes é possível se questionar sobre o porquê de Mollie não desconfiar tanto de seu marido Ernest, mesmo após tantas circunstâncias suspeitas e, mais tarde, de acusações policiais


Ainda que o filme busque responder essas questões, a verdade é que ela são fruto de uma conexão incompleta com a personagem, devido ao espaço secundário fornecido a ela na narrativa.


Como sugere a crítica de cinema Zoe Rose Bryant, seria interessante ver mais da perspectiva e opinião de Mollie sobre os eventos, e não apenas observar sua reação a partir do ponto de vista de Ernest.



Não cabe a mim ou a qualquer pessoa não Osage determinar categoricamente o que o filme deveria fazer ou não para retratar melhor o povo. Ainda assim, fica a sensação de que a obra que celebra e respeita os Osage, mas perde um pouco de sua potencial riqueza ao não envolver mais ativamente Mollie e outros personagens indígenas na narrativa.


O já falado ponto de vista presente no cinema pressupõe que não é possível abordar todos os vieses de um assunto em um filme, tenha ele 3 horas ou não. Portanto é compreensível que Scorsese tenha feito determinados recortes, especialmente por não ser Osage.


Porém, não deixa de ter a sensação de que havia muito mais a ser explorado, ainda que a visão à qual temos acesso se destaque pela solidez e coerência interna. Até por conta disso, alguns assuntos relacionados aos Osage, e que demonstram ser dotados de muita complexidade, são apenas "pincelados" no longa.


Entre eles, a citada tendência de mulheres indígenas continuamente se casarem com homens brancos ou a falta de acesso direto de vários indígenas ao dinheiro que lhes é de direito por conta do petróleo.


Também pelo recorte feito pelo roteiro, não é possível desfrutar mais do talento de artistas indígenas como Cara Jade Myers, encantadora intérprete de Anna Brown, irmã de Mollie.


Eles veem o sol como seu avô e o fogo como seu pai


É assim que os Osage veem esses elementos, como o filme descreve com bastante admiração pela cultura local em uma cena. De modo geral, o senso dos costumes e do povo indígena como algo precioso é o que domina essa e outras sequências do longa.


Também é com um poder fumegante que o filme impacta os espectadores com suas imagens e narrativa, sensibilizando-os e revelando ao mundo esse massacre racista tão grave e infelizmente tão desconhecido do público geral.


Independente de discursos sobre Marvel e filmes de super herói a parte, 'Assassinos da Lua das Flores' é um filme que conquista o público com sua força, solidez e melancolia pela pequenez humana, que insiste em gerar atos como os que são retratados no filme.


Assim como 'Oppenheimer', um de seus principais competidores na atual Corrida ao Oscar™, é uma obra pensada por alguém que sabe o que quer contar e conta como ninguém.


Claro que com defeitos, limitações e pontos cegos, assim como a mente de quem está por trás.


Ponto de vista. Revelação.


Cinema.


Veredito: 4.25/5

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