'Batidão Tropical' é um grito de reafirmação dos LGBTs do Norte e Nordeste
Atualizado: 30 de mai. de 2023
Banda tocando, luzes por todos os lados, dançarinos no palco. "É o furacão do Brasil!" exclama uma voz feminina, que logo revela a quem pertence para o público histérico numa entrada marcante - pendurada, caindo 'do céu' num bungee jump, dando saltos e usando um figurino digno de Britney Spears no auge de sua carreira. Ela é Mylla Karvalho e é assim a abertura do show 'Companhia do Calypso: Ao Vivo em Recife', um dos tantos que marcaram uma geração inteira de fãs das melodias do calipso e do forró paraense.
É essa uma das principais referências que Pabllo Vittar usa em 'Batidão Tropical', seu novo álbum de estúdio, lançado na quinta-feira (24). Com músicas originais e regravações de clássicos do brega e do forró eletrônico, Pabllo resgata ritmos que fizeram parte da sua infância e adolescência. Nascido em São Luís, no Maranhão, o cantor foi uma das muitas crianças gays afeminadas do Norte e Nordeste do Brasil que cresceram vendo em Mylla uma inspiração, uma verdadeira diva - tanto quanto ou até mais que Madonna. Quantas decoraram todas as coreografias de Companhia do Calypso, Magníficos e Aviões do Forró para dançar em frente ao espelho se imaginando num palco gigante? Não é segredo para ninguém que as cantoras de forró e brega dos anos 2000 fizeram e fazem um sucesso enorme entre a comunidade LGBTQIA+, e Pabllo fez questão de reafirmar isso em seu último projeto.
"É como se eu pegasse o Norte e Nordeste, colocasse em um pedestal e mostrasse para o Brasil e o mundo verem o tanto que é rico e plural" - Pabllo Vittar
Composto por nove faixas, 'Batidão Tropical' tem três autorais e seis regravações, que dão uma nova roupagem mesclada com o pop à ritmos clássicos brasileiros, extremamente marcantes nas regiões Norte e Nordeste do Brasil.
As divas do Norte e Nordeste
As influências do tecnobrega e forró sempre foram facilmente reconhecidas na discografia e performances de Pabllo Vittar, consequência direta do que consumiu enquanto crescia.
Hoje com 27 anos, Phabullo Rodrigues passou a infância e adolescência no interior do Maranhão e do Pará em meados dos anos 2000, época em que a banda Companhia do Calypso vivia seu auge. Se você também já era nascido e mora no Norte ou no Nordeste, provavelmente lembra e até se identifica com Pabllo. Em qualquer esquina você ouvia a voz de Mylla Karvalho cantando "Estou apaixonada, querendo amar você!" - e todo mundo sabia a letra de cor.
'Batidão Tropical' é o ápice de algo que vem sendo construído e demonstrado há anos. Desde o começo da sua carreira, essas referências eram evidentes na sonoridade de Pabllo. 'Corpo Sensual', do primeiro álbum, 'Vai Passar Mal', é um exemplo inicial, mas também é possível citar a 'Seu Crime' (do álbum 'Não Para Não') e ainda mais forte na versão deluxe no álbum '111', com o forró 'Eu Vou'.
As performances da artista evidenciam isso há bastante tempo. O famoso "YUKÊ?", bordão usado pela cantora em shows, era originalmente usado por Mylla. Um outro meme que se popularizou por conta de Pabllo foi o "SEGURANÇA! SEGURANÇA!", também usado pela vocalista de Companhia do Calypso. Em diversos stories e entrevistas, a drag também cantava músicas antigas de forró, citando músicas de 'Companhia do Calypso' como suas favoritas, a exemplo de 'Thic Bum'.
Pabllo Vittar é, atualmente, uma diva do pop brasileiro, assim como eram - e ainda são - Mylla Carvalho, Joelma, Michelle Melo, Paulinha e muitas outras. Não à toa que Michelle, por exemplo, carrega o título de 'Madonna do Brega'. Toda essa geração de cantoras representa o encontro do que era considerado "brega" com o que já era enaltecido globalmente: o pop. Elas se inspiravam em divas internacionais, Pabllo se inspira nelas e os jovens de hoje se inspiram em Pabllo, como uma coroa que vai passando de rainha para rainha.
Mylla Karvalho ou Britney Spears?
Uma homenagem às raízes
Antes do álbum ser lançado, o produtor da artista já havia deixado avisado que ele seria o "mais brasileiro" de todos e a promessa se cumpriu da melhor forma. Das nove faixas de 'Batidão Tropical', as três autorais são 'Ama, Sofre e Chora', 'Triste com T' e 'A Lua'. Já as regravações são de músicas de Companhia do Calypso, Banda Ravelly e Batidão. Em coletiva de imprensa do álbum, Pabllo Vittar disse que escuta até hoje tanto essas quanto as outras bandas que usa de referência, como TecnoShow, banda Kassikó, Mastruz com Leite, Magníficos, Desejo de Menina e Aviões do Forró.
Pabllo é uma artista nacionalmente conhecida, mas que está cada vez mais crescendo em sua carreira internacional. Fazer um álbum como 'Batidão Tropical' é um movimento de exaltação às suas raízes, de onde a artista nasceu; é a partir desse disco que muita gente vai ouvir grandes hits pela primeira vez, como 'Ânsia', da banda recifense Brega.com na voz de Eliza Mell, regravada por Companhia do Calypso.
"Eu lembro que a maioria dessas músicas, eu estava me descobrindo, me conhecendo, e como criança viada me sentia muito empoderada com o tecnobrega, a potência da música, o empoderamento" - Pabllo Vittar
Considerada pela Forbes como a "drag queen mais popular do mundo", Pabllo Vittar deixa bem claro com esse álbum que quer levar esses hits que fizeram parte da sua vida e de tantas outras pessoas para o resto do planeta.
Mesmo com o sucesso, o forró, o tecnobrega e o calypso ainda carregam marcas regionais fortes para o resto do Brasil - e não de um jeito positivo. Não é 'brasileiro', é 'nordestino', como se as coisas se anulassem. "É por isso que esse álbum é um apogeu do Norte e Nordeste. Quero exaltar essas regiões, bater no meu peito e dizer que não é só cultura regional, é um patrimônio brasileiro. É muito louco a desvalorização do que é nosso enquanto importamos cultura. É muito legal escutar coisas de fora, eu adoro uma Beyoncé, uma Madonna, adoro um K-pop, mas o que estamos ouvindo de música nacional? As mesmas canções, os mesmos artistas e os mesmos ritmos. A gente tem que quebrar a hegemonia das músicas que tocam nas rádios e trazer novidade, principalmente daqui, do Brasil", disse a artista em coletiva de divulgação.
Apesar de não estar podendo fazer shows no momento por conta da pandemia, a cantora foi confirmada na edição de 2022 do Primavera Sound, festival que acontece em Barcelona e em Porto. "Vou me tremer inteira quando chegar no Primavera Sound e mandar uma [música da] Companhia do Calypso, da banda Ravelly", contou.
Novas músicas
Mesmo inéditas e autorais, fruto tanto das influências do forró e do tecnobrega quanto de outras, 'Ama Sofre Chora', 'Triste com T' e 'A Lua' funcionam muito bem com o resto do álbum. A composição das duas primeiras são creditadas aos produtores da Brabo Music, que trabalham com Pabllo desde o início de sua carreira. Na coletiva de imprensa de 'Batidão Tropical', ela disse que viu Paulinha de Calcinha Preta cantando quando ouviu 'Triste com T', que ganhou clipe com uma coreografia cheia de passos característicos do forró eletrônico.
Além das influências brasileiras, o vídeo também carrega referências de K-pop, que também estão presentes em outros materiais audiovisuais da drag - o clipe de sua parceria com Pocah, 'Bandida', é um deles. Assumidamente fã do gênero, Pabllo também revelou que adicionou à regravação de 'Ultra Som', da banda Ravelly, sonoridades do pop sul coreano: "Me inspirei muito em 'So Bad', do STAYC. Achei que [o ritmo drumn'bass] ia ser a junção perfeita para o tecnomelody".
A terceira faixa autoral, 'A Lua', tem Pabllo e Alice Caymmi juntas como compositoras - a parceria também acontece em 'Problema Seu', do seu segundo álbum, o 'Não Para Não'. Fortemente inspirada por Calcinha Preta, é quase impossível ficar parado ao ouvir a melodia da faixa: "Ninguém vai pegar / Ninguém vai roubar / A lua me deu / Me dê-e-eu / Seu amor".
O álbum é coeso, bem construído e produzido, mas poderia ser mais longo. É uma característica comum nas produções da cantora ter músicas e álbuns curtos, mas talvez funcionasse ainda melhor se durasse um pouco mais. Pabllo pretende lançar um segundo volume de 'Batidão Tropical', que pode vir para suprir um pouco dessa falta sentida.
Como não vai poder fazer um megashow ao vivo e presencialmente para comemorar o lançamento de 'Batidão Tropical', Pabllo Vittar anunciou que vai fazer uma apresentação virtual em comemoração aos cinco anos de carreira. Ainda sem data, o evento promete ter até troca de palcos e figurinos.
Reivindicação de espaço
O forró e o brega sempre foram gêneros musicais onde a heteronormatividade prevaleceu, inclusive até os dias atuais. Os dançarinos são compostos por casais formados por um homem e uma mulher, as letras também reforçam isso. Uma ironia, visto que tanto para Pabllo quanto para vários outros jovens gays a estética dos shows dessas bandas foi uma das coisas que influenciaram na performance da 'feminilidade'. "O que sempre me chamou a atenção eram as mulheres das bandas, como elas cantavam com aquelas vozes potentes, a Mylla Karvalho, por exemplo, ex-vocalista da Companhia do Calypso, que era um furacão no palco. Eu pensava: ‘Quero ser ela!’, ela não tem medo de nada, grita, joga o cabelo no palco...", lembra a drag queen, que ganhava o primeiro DVD de Companhia do Calypso há 20 anos como presente da sua mãe.
Ter uma artista queer lançando um álbum nesses ritmos é, além de um ode ao Norte e ao Nordeste, a reivindicação de um lugar que muitas vezes foi negado e até rejeitado. É um grito de afirmação de existência - ainda mais significativo no Mês do Orgulho LGBTQIA+. Fica a esperança que esses espaços continuem sendo ocupados, tanto por Pabllo Vittar quanto por outros artistas por todo o brasil. “Imagina a gay lá do Pará me ouvindo cantar uma música da Companhia do Calypso que eu ouvia na infância? Eu queria ser essa gay, mona. Queria ser essa gay vendo outra gay cantar uma música da minha terra”, disse a drag na coletiva de divulgação, emocionada. Ela se tornou referência e esse cenário hoje é realidade por conta dela.
Nota: 4,8/5
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