BBB 23: A representatividade crespa e cacheada no reality
Atualizado: 30 de mai. de 2023
Historicamente, pessoas negras sempre enfrentaram dificuldades e discriminação ao assumirem seus cabelos naturais. A cultura do alisamento se faz presente na sociedade como uma válvula de inclusão e aceitação desde o início dos anos 1900. Este preconceito parte desde comentários velados em forma de “brincadeiras” até a exclusão na hora de concorrer a uma vaga de emprego.
Não é novidade o poder de influência que a mídia tem sobre esses padrões. Um grande exemplo desse fato é a comédia estadunidense dos anos 2000, "O Diário da Princesa", inspirada no livro homônimo. No clássico, Mia Thermopolis inicia a sua narrativa como uma jovem estudante comum e descobre ser herdeira da Genóvia, um pequeno país europeu. Com a visita de sua avó, a futura princesa precisa aprender a se comportar como tal. Para isso, recebe aulas de etiqueta e uma grande transformação no visual. Mia, que tinha os cabelos naturais ondulados e volumosos, aparece com as madeixas lisas e bem alinhadas.
Diante desta construção, foram longos os anos em que as crianças cresceram vendo a normalização do cabelo liso como o único padrão aceitável, submetendo-se a procedimentos químicos e técnicas para não ter nenhuma curvinha nos fios esticados. Entretanto, a partir de 2009, esse cenário vem se transformando com o movimento de aceitação aos cabelos naturais.
Segundo dados de pesquisa disponibilizados pelo próprio Google em 2020, a busca por “cabelos cacheados” na internet cresceu 232%, conseguindo ultrapassar a procura por “cabelos lisos” no buscador pela primeira vez no Brasil.
Com isso, é notória, mesmo que a passos lentos, a força que esse movimento tem ganhado na sociedade. Novos produtos, com fórmulas específicas para as curvaturas crespas e cacheadas, ganharam espaço no mercado e figuras públicas como atrizes, modelos e cantoras começaram a assumir os cabelos naturais, inspirando meninas e mulheres. E não seria diferente com o maior reality show do país.
Na última terça-feira (07), a edição do Big Brother Brasil 23 preparou um VT ao som de “Psiu”, da cantora Liniker e “A Ordem Natural Das Coisas”, de Emicida, nomeado "Trançando Histórias", com as participantes Aline, Tina, Marvvila, Domitila, Paula e Sarah como personagens principais. As seis mulheres pretas ganharam protagonismo em rede nacional com suas narrativas em forma de representatividade. “Eu queria ser a noiva na quadrilha, mas na escola diziam: ‘Com esse cabelo ruim? Tem que ser loira da pele branca’", contou a pipoca Paula.
Assumindo um elenco diverso, a edição de 2023 traz personalidades que não têm vergonha de assumir suas origens naturais. Sendo a primeira anunciada, Aline Wirley tem mostrado ao longo das semanas a versatilidade e o poder de seu cabelo crespo ao aderir diversos visuais e acessórios, indo desde turbantes e tranças a penteados deveras criativos, não demonstrando nenhuma dificuldade ao lidar com os cuidados ao assumir sua identidade e ancestralidade, visto que as madeixas crespas sempre foram vistas como um “cabelo difícil de lidar” e sem muitas opções.
No Twitter, ao ver as fotos de Aline assumindo seu black no programa ao vivo, uma internauta desabafou: "Isso aqui pra mim é muito importante porque estou tentando desconstruir a ideia que meu cabelo é feio ou não deveria ser solto, porque eu ouvi muito isso na infância. Ver a Aline valorizar o black, sério, é algo que inspira e faz com que eu deixe meus cachos soltos novamente".
Outra participante que não demorou a assumir os cabelos naturais foi a jornalista e modelo Tina Calamba, que entrou com suas box braids longuíssimas. Com a ajuda de Fred Nicácio, Aline, Sarah e Marvvila, a angolana retirou as tranças com apenas dez dias de confinamento e o momento rendeu emoção para quem assistia. Durante o processo, o médico Fred fez questão de deixar elogios a Tina, destacando: “Seu cabelo é lindo, você é linda, seus traços são lindos, você é preciosa, você é amada, a gente te protege”. Tina também cantou na sua língua nativa durante o processo.
Protagonizando um dos momentos mais comentados da edição no jogo da discórdia, Tina recebeu uma plaquinha de bomba após não emprestar suas laces para o participante Cezar Black. A participante foi vista como grossa e egoísta e, na internet, o debate ganhou força ao render memes e críticas, levantando questionamentos e reflexões acerca do assunto.
Muitas das vezes, as laces são vistas apenas como perucas ou um pedaço de cabelo caro para manter o estilo, mas, historicamente, são peças de empoderamento para pessoas pretas. Camilla de Lucas é um exemplo: a influenciadora que participou do BBB 21 conta que recebeu muitas críticas por usar uma lace lisa enquanto estava passando pelo processo de transição capilar. Contudo, rebateu afirmando que “utiliza os fios artificiais como recurso para mudar o visual durante o processo”.
O processo de transição capilar exige paciência, visto o tempo levado até o cabelo natural crescer. Além disso, existe também a dificuldade em lidar com as duas texturas, quando o cabelo começa a ganhar a textura natural, mas ainda há química. Por isso, as laces permitem que as pessoas passem por esse desenvolvimento de maneira mais leve, permitindo que a autoestima seja mantida em momentos difíceis. A busca pela mudança de visual, seja com penteados, tranças, colorações ou adereços como as laces, faz parte da rotina de pessoas negras e mostra a relação de ancestralidade com o cabelo natural e a liberdade capilar ao manter os fios naturais, já que os penteados e tranças também servem como "penteados protetores".
Após treze dias de confinamento, foi a vez da cantora Marvvila mostrar para o Brasil o poder de seu cabelo black power. Com ajuda dos amigos, a pagodeira se despediu das tranças curtas, que aderiu para as primeiras semanas no reality show, e deu as boas vindas para o seu cabelo natural. A internet explodiu em comentários positivos sobre as madeixas da sister e, desde então, os cachos da cantora têm feito sucesso dentro e fora da casa.
Durante uma conversa com o médico Fred Nicácio, Marvvila chegou a desabafar sobre como se sentia em relação ao seu cabelo natural: "Levei anos para entender que o meu cabelo era bonito. Porque, até então, desde criança até adolescente, eu fazia relaxamento no cabelo. Ninguém achava bonito o 'black' [power]. Não existia isso. Eu, realmente, não me achava bonita. Quando crescia um pouquinho da minha raiz, eu ficava desesperada. 'Preciso relaxar, preciso relaxar [o cabelo]'. Aí eu falei: 'Cara, quero conhecer o meu cabelo'”, contou.
O assunto sobre a representatividade dos cabelos naturais está presente nos discursos da pagodeira dentro e fora da casa. Em uma entrevista ao Brito Podcast, Marvvila comentou que já teve vergonha de seu cabelo, por isso, alisava. Entretanto, o atual cenário é outro. Seu cabelo é motivo de orgulho e representatividade.
“Hoje eu posto, tenho meu black. Isso é uma parada muito representativa pra gente porque eu recebo mensagens de mães, de pessoas, de meninas falando: 'Caramba, tô me inspirando em você!', aí manda foto botando um cabelo igual, falando: ‘Graças a você eu estou perdendo a vergonha’. “Vai além da música… eu tô representando meninas, pessoas negras, isso é... peso muito bom!" - Marvvila
O discurso de Marvvila e a imagem diária dela assumindo os cabelos naturais em rede nacional trazem a representatividade para mais de 70% da população brasileira que possui cabelos de ondulados a crespos, segundo pesquisa realizada pelo Instituto Beleza Natural em parceria com a Universidade de Brasília (UNB), em 2022.
Outro destaque da edição é o cabelo da Miss Alemanha 2022, Domitila Barros, que se mostra desprendida aos padrões de cabelo liso e alinhado que muitas modelos mundiais apresentam. A participante coloca os cachos volumosos para jogo, despertando curiosidade dos internautas nas redes sociais sobre sua finalização e elogios sobre a textura de seus cachos. Mais ainda: ela vai além e quebra com a nova "ditadura do cacho perfeito", como é chamado um novo movimento de pessoas que passam pela transição, mas continuam sofrendo pressão estética para terem os cabelos cacheados extremamente definidos e "comportados".
Ainda no pré-confinamento, a ativista e modelo já mostrou sua atitude através de seus cabelos. No primeiro vídeo gravado no hotel, Barros ressaltou o poder de seus cabelos livres ao usar uma trança como headband. Desde então, a participante não se poupou em abusar dos penteados na casa mais vigiada do Brasil, indo desde o Ao Vivo com os cabelos soltos e volumosos, sem medo do frizz, até o uso da chapinha para uma segunda-feira de Jogo da Discórdia.
Em 2021, Domitila chegou a participar de uma música em parceria com o cantor Teeyno, "Girls With Those Curls", uma homenagem feita às mulheres cacheadas. No Twitter, sua equipe contou que "desde sempre Domi enaltece as curvas do cabelo e a beleza de se permitir SER!"
A importância de se falar sobre representatividade
Apesar da busca pela representatividade, o racismo ainda está presente e Bruno Gaga foi vítima de comentários racistas do participante Gabriel Fop, segundo eliminado da edição. O então integrante do BBB disse que o cabelo de Bruno é “duro igual carpete da grama [do programa]”.
Na edição de 2021, o professor João Luiz Pedrosa também foi vítima de preconceito após o cantor Roldoffo, que usava uma peruca de homem das cavernas por conta do Monstro, comentar com seu amigo de confinamento Caio que os dois estavam com o cabelo "quase igual" ao do João. Em conversa com a amiga e influenciadora Camilla de Lucas, Pedrosa desabafou: "Cara, eu não sou um homem das cavernas. Associar uma peruca de homem da cavernas ao meu cabelo foi muito chato".
O cantor logo se posicionou dizendo que não tinha percebido que o seu comentário tinha ofendido o professor. Naquela mesma semana, Ludmilla se posicionou no show que fez dentro do programa, e gritou: "Respeita o nosso funk, respeita a nossa cor, respeita o nosso cabelo." O caso, que ganhou visibilidade nacional, gerando revolta em muitos internautas, fez com que o antigo apresentador Tiago Leifert se posicionasse com os brothers durante o programa ao vivo sobre o ocorrido. Na conversa, Leifert apontou que o cabelo black power não é um penteado e, sim, um símbolo de luta, de resistência.
“Quando a gente faz um comentário sobre o cabelo do João, a gente não tá falando de penteado, que foi o que você achou que estava fazendo e como você encararia, e eu como homem branco também por muitos anos encarei. Você tá falando de um símbolo, do que o João é, do que o João sente, do que ele viveu na pele dele, da história dele, da ancestralidade do João. Tem muito ali”, disse Tiago. “Não é sobre textura e sobre penteado. É sobre o símbolo. O meu cabelo não representa nada do que eu sou, e o seu cabelo não representa nada do que você é, não muda nada na sua vida. Mas para o João muda muito. É um símbolo de resistência do João, é por isso que pega num lugar diferente dele.”, ressaltou o apresentador.
Assim como fizeram anteriormente as participantes Rizia Cerqueira (BBB19), Thelma Assis (BBB20), Camilla de Lucas (BBB21), Linn da Quebrada, Maria, Brunna Gonçalves e Natália Deodato (BBB22), assumir os cabelos naturais em rede nacional vai além da estética, sendo também a busca de representatividade através de suas origens para que outras pessoas com cabelos crespos e cacheados também possam se sentir seguras em todos os espaços.
Pessoas negras assumindo suas madeixas crespas, cacheadas, onduladas com volume e sem medo do frizz, é sobre ir contra o padrão. É sobre empoderamento, é sobre ancestralidade, é sobre aceitação, é sobre inspiração.
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