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Foto do escritorThallys Rodrigo

“Carlota Joaquina: Princesa do Brazil”: A retomada do Cinema Nacional

Atualizado: 30 de mai. de 2023

Em 1995, um filme satírico sobre o passado do país marcava a volta do cinema nacional. Os problemas que fizeram o setor parar não mudaram tanto assim



Quando o pulso tornou a pulsar


Em 26 de abril de 1821, a então rainha consorte Carlota Joaquina deixava o Brasil com a satisfação de alguém que não tinha apreço por essa terra. Mais de 150 anos depois, em 1990, o cinema também partia do nosso território. Diferente da monarca, a contragosto.


Em 90, Fernando Collor de Mello extinguiu a Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes Sociedade Anônima), empresa estatal que desde 1966 fomentava o cinema nacional. Dois anos depois, o quantitativo de em média 80 filmes nacionais produzidos por ano, na década de 80, havia sido reduzido a apenas 3.


No início da década de 1990, o audiovisual brasileiro mantinha um pulso ainda tímido, em sua maior parte, com curtas-metragens e produções eróticas. Mas em janeiro de 1995, o longa-metragem brasileiro é fortalecido novamente através de uma história com ares de conto de fadas às avessas, sobre uma princesa “bigoduda” em um casamento sem amor com um príncipe glutão.


Não era um conto de fadas, mas sim a mera história de um país que, há alguns anos, abandonava seu cinema. Assim como Carlota Joaquina um dia abandonou esse mesmo Brasil.


De repente, o pulso pulsava mais forte.


Mares revoltos, destino tranquilo


Com a derrubada de Collor e o início do Governo Itamar Franco, em 1993 era promulgada a Lei do Audiovisual, que voltava a permitir em maior escala a produção de filmes nacionais. Através dessa e de outras iniciativas, há um boom no número de projetos nacionais realizados.


Carlota Joaquina: Princesa do Brazil”, dirigido por Carla Camurati, foi o primeiro desses projetos, mas engana-se quem pensa que essa nau portuguesa de coração brasileiro navegou por mares tranquilos até o porto.


O orçamento final foi bastante limitado (R$ 600 mil) e as filmagens chegaram a ser paralisadas por semanas enquanto a produção buscava arrecadar recursos. Locais como Espanha e Portugal foram retratados em São Luís do Maranhão e Niterói, e no meio da produção, o dinheiro simplesmente acabou: recursos pessoais tiveram que ser utilizados.



Também eram escassos os recursos para divulgação, e convencer as salas a passarem o filme foi uma tarefa difícil. Muitos cinemas não estavam interessados na exibição, por conta do cenário de estagnação das produções nacionais e da falta de interesse por elas.



Tudo mudou quando o filme começou a lotar as poucas salas onde era exibido. Gradativamente, “Carlota Joaquina” se tornava, então, não só o primeiro filme da retomada do Cinema Nacional, mas também o primeiro sucesso da nova era.


“A gente lançava o filme como se fosse uma peça na cidade: a gente ficava alguns dias para poder comparecer em todos os programas, então foi trabalhoso”, afirmou a diretora do longa em entrevista ao Papo de Cinema, em 2020.


“Mas ‘Carlota Joaquina’ batia na tela sem erro. A empatia com o espectador, no sentido do humor e do senso crítico, funcionava, criando uma cumplicidade muito grande”, completou a cineasta.

A história que sua pátria mãe não contou


Para escrever o roteiro, Carla Camurati e Melanie Dimantas realizaram uma extensa pesquisa histórica sobre a família real portuguesa e do Brasil Império. O resultado foi uma obra com os pés fincados na realidade, mas com um forte tom de sátira.


“O filme é uma comédia, quase uma comédia deslavada. Então os personagens têm um tom caricato. Mas a história não foi distorcida: tudo aquilo aconteceu. Apenas os temperamentos nos permitiram brincar um pouco mais”, afirmou Marco Nanini, o D. João VI do longa, também em entrevista ao Papo de Cinema.


No roteiro, o que se via era a vida de Carlota e dos nobres locais representada sem pompa. Em um momento, a princesa espanhola de dez anos era entregue em um casamento arranjado e ia morar em uma corte desagradável. Anos depois, a nobreza portuguesa se escondia de Napoleão no subterrâneo em meio aos ratos, e chegava ao Brasil fugida e esfarrapada.



E a honestidade com toques de caricatura não parava por aí: Carlota era representada com seu comportamento superior e casos extraconjugais; Dom João VI, com sua preguiça e má higiene; e a rainha D. Maria I, com seus problemas mentais.



A escolha por contar a história de forma mais próxima do que ela foi, sem “enfeites”, era evidente nas aparências e no comportamento dos personagens, como conta Marieta Severo, a Carlota do longa, em entrevista ao Fantástico na época das filmagens:


“[Quando] a gente fala em princesa a gente já tem um ideal, uma imagem na cabeça, e Carlota era o oposto disso. Ela era coxa, tinha um distúrbio hormonal nos trópicos, ela ficou cheia de pelos no rosto. Ela não tinha nenhuma ligação com essa terra, ela tinha um comportamento na corte completamente desrespeitoso”, atestou a atriz.

Essa representação visual e temática despida de idealização é justamente o oposto do tom adotado pela Ditadura Militar em relação à história do Brasil, marcado por uma celebração exagerada do passado. Com o fim da censura, agora era possível contar histórias (e contar a História) com mais liberdade.


Houve quem torcesse o nariz para a visão apresentada, em especial sobre o modo como D. João VI foi retratado. “Segundo os especialistas, ele era um estadista e não deveríamos lembrá-lo com deboche”, destaca o cineasta Daniel Bydlowski em artigo para o blog Aventuras na História.


Porém, o misto de franqueza e acidez do filme conquistou o público, e o sucesso emergiu juntamente com a retomada do cinema, os bigodes de Carlota e as coxas de frango nos bolsos de João: o longa acumulou por volta de 1,3 milhão de espectadores em todo o país.


Frutos da Retomada


“Carlota Joaquina: Princesa do Brasil” foi apenas o primeiro capítulo da história do chamado Cinema de Retomada. Esse foi um período de restabelecimento tanto da quantidade quanto da qualidade dos filmes nacionais, que viu nascer a carreira de diversos cineastas de sucesso.


Os temas abordados na Retomada foram diversos, uma vez que ela é considerada mais um período histórico do que um movimento artístico de visão unificada. Por exemplo, a ausência da censura permitia agora abordar a ditadura militar de forma crítica, sob diferentes pontos de vista, como em “Lamarca” (1995), de Sérgio Rezende.


Também houve espaço para temas como a saúde mental, em “Bicho de Sete Cabeças” (2001), de Laís Bodanzky, e para a abordagem de outros momentos históricos do Brasil, em “Guerra de Canudos” (1997). O documentário também ganha espaço, com “Santo Forte” (1999), de Eduardo Coutinho, como exemplo.


Entre os maiores destaques do período estão “O Quatrilho” (1995), de Fábio Barreto, “O Que é Isso, Companheiro?” (1997), de Bruno Barreto, e “Central do Brasil" (1998), de Walter Salles, clássicos do cinema nacional. Todos, inclusive, alcançaram indicações ao Oscar de Melhor Filme.


“Central do Brasil", "O Que é Isso, Companheiro?” e “O Quatrilho” são clássicos do período da Retomada, indicados ao Oscar de Melhor Filme Internacional (Fotos: Reprodução)


Segundo o crítico Luiz Fernando Zanin Oricchio, o ponto de encerramento do período de Retomada é outro clássico: “Cidade de Deus” (2002), de Fernando Meirelles, indicado a 4 Oscars e vencedor do BAFTA de Melhor Edição.


É preciso destacar, no entanto, que a riqueza e diversidade artística desse momento, frequentemente não se traduziram em grandes sucessos de público. Entre 1995 e 2002, período da Retomada, os únicos filmes que tiveram mais de 2 milhões de espectadores no país estavam ligados à Globo Filmes, como o já citado “Cidade de Deus”, “O Auto da Compadecida” e “Xuxa Requebra”. LEIA TAMBÉM: O autismo no cinema e na TV: problemas de representatividade


Em 2003, os filmes da empresa originada da Globo correspondiam a 90% das receitas de bilheteria do cinema do país. Números como esses demonstram a dificuldade para fazer cinema no país de forma desvinculada da Globo Filmes, mesmo com os mecanismos de incentivo governamentais.


Um dos principais problemas apontados quanto ao cenário do cinema de Retomada é justamente a falta de mecanismos para divulgação dos filmes, mesmo que haja suporte para a produção. Segundo a Enciclopédia Itaú Cultural, não existia um circuito de divulgação, exibição ou distribuição para os filmes produzidos. Assim, muitos filmes eram feitos mas poucos eram vistos.


Eu vejo o futuro repetir o passado?


Mesmo com seus percalços, a Retomada pavimentou a volta do cinema brasileiro com inúmeras obras de qualidade, reconhecidas a nível internacional.


Graças ao incentivo estatal - mesmo que passível de críticas - que vem sendo dado desde essa época, foi possível restabelecer a indústria que hoje nos entrega desde sucessos de crítica como "Bacurau" (2019), de Kleber Mendonça Filho, até filmes mais populares, como a franquia “Minha Mãe É Uma Peça” (2013-2019).


O apoio governamental ao cinema não é um mero gasto, mas sim um investimento. Permite o desenvolvimento de visões artísticas valiosas, o fortalecimento do Brasil como um país valorizador da cultura e garante o sustento de uma cadeia de milhões de trabalhadores. Cinema gera ganho cultural, humanístico e de renda.



Por isso, é bastante estarrecedor que o governo de Jair Bolsonaro busque destruir os avanços conquistados. Ataques à Lei de Incentivo à Cultura, extinção do Ministério da Cultura, enfraquecimento da Agência Nacional de Cinema (Ancine) e descaso pelo acervo da Cinemateca Brasileira são só alguns exemplos do cenário que é desenhado.


A situação é bastante semelhante à do Governo Collor, que à época acabou com o Ministério da Cultura, o Conselho Nacional de Cinema (Concine), a Fundação do Cinema Brasileiro, a já citada Embrafilme e com as leis que regulamentavam e incentivaram a produção cinematográfica, efetivamente freando todo o cinema nacional. É preciso mais do que nunca combater políticas tão prejudiciais à arte e à cultura brasileira.


"Então existe erro na Ancine? Vamos corrigir. Existia erro na Embrafilme? Vamos corrigir. Mas essa política de sempre arrasar o que o governo anterior fez... Isso é um vício da cultura política brasileira que é catastrófico", destacou Marieta Severo em entrevista ao programa “Cinejornal”, do Canal Brasil.

"Eu tenho essa honra suprema de ‘Carlota Joaquina’ ter virado símbolo da retomada. Graças à Carla Camurati. A arte, a ficção, a cultura, sempre, sempre, renasce", afirmou ainda a eterna Carlota.


Filmes da Retomada citados no texto que estão disponíveis em streamings


 

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