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Foto do escritorNycolle de Moraes

Cazuza lutou contra uma doença maior que o HIV: O preconceito da mídia

Atualizado: 9 de jul. de 2023

O artista, que se tornou um símbolo de luta contra a Aids, foi vítima de uma imprensa sensacionalista ao longo de sua trajetória contra a doença


Foi em 1980 que Cazuza ingressou no grupo teatral "Asdrúbal Trouxe o Trombone", no Circo Voador, apresentando-se em público pela primeira vez, na peça “Paraquedas do Coração”. Dali por diante, o artista ficaria marcado na história da música brasileira pelas suas composições e interpretações quase que poéticas ao longo da sua carreira.


Seu espaço no mundo da música logo foi estabelecido, fosse como o integrante do grupo “Barão Vermelho”, que participou durante quatro anos, ou em carreira solo - que o levou diretamente ao sucesso. Mas, sua relevância artística foi jogada de escanteio quando o cantor declarou para o país inteiro, em uma entrevista exclusiva para a Folha de São Paulo, em 1989, que era portador de HIV.


Cazuza foi a primeira personalidade nacional a falar abertamente sobre a doença, assim como também se abriu ao explorar assuntos pessoais, como a depressão que enfrentava, sua bissexualidade e o consumo de drogas e bebidas alcoólicas.


Após declarar ser portador do vírus, o roqueiro buscou engajar-se cada vez mais na causa, levando a pauta sobre a conscientização em relação à Aids e seus efeitos para o grande público. Cazuza não se escondeu e muito menos sentiu vergonha de falar sobre a enfermidade que futuramente lhe tiraria a vida, aos 32 anos. A AIDS foi responsável pela morte de mais de 115 mil pessoas no Brasil entre as décadas de 80 e 90, e carregava grande tabu na sociedade, principalmente por ser ligada a homens homossexuais.


Foi através dessa motivação que a sua jornada na arte não parou e o poeta decidiu continuar seu trabalho enquanto realizava o tratamento de AZT, fármaco utilizado como antiviral, inibidor da transcriptase reversa (inversa), sendo o único medicamento existente na época.É a minha criatividade que me mantém vivo […] Meu médico diz que eu sou um milagre porque eu tenho tanta energia, tanta vontade de criar, e que é isso que me deixa vivo”, declarou certa vez.



Olhares sob Cazuza


Enquanto o roqueiro arrancava suspiros admirados e motivados por sua tremenda coragem ao expor a realidade aos olhos do público, Cazuza também teve que lidar com a abominação e os olhares tortos direcionados quando, drasticamente, saiu de 68 quilos para 40. Foi aí que sua aparência física começou a virar pauta e estampar matérias sensacionalistas, como aconteceu com a edição de abril de 1989, da Revista Veja.


Com o título "Cazuza: Uma vítima da Aids agoniza em praça pública", a revista mostrou como o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros não fazia parte do escopo profissional ao violar inúmeros artigos de ética do Fenaj, entre eles, o Art. 7, onde diz que o jornalista não deve usar o jornalismo para incitar a violência, a intolerância, o arbítrio e o crime. O objetivo da Veja nunca foi esclarecer verdadeiramente sobre a doença do cantor, mas expor o sofrimento à esfera pública quando decretou a morte de Agenor na abertura da matéria:


"O mundo de Cazuza está se acabando com estrondo e sem lamúrias. Primeiro ídolo popular a admitir que está com Aids, a letal síndrome da imunodeficiência adquirida, o roqueiro carioca nascido há 31 anos com o nome de Agenor de Miranda Araújo Neto definha um pouco a cada dia rumo ao fim inexorável" – trecho da revista Veja

No decorrer de oito longas páginas da matéria, a Veja aborda sobre a Aids enquanto doença, mas também mira no extremo sensacionalismo ao usar o estado de saúde de Cazuza de maneira desrespeitosa para chamar atenção dos leitores e, consequentemente, lucrar em cima do sofrimento de uma figura pública que despertava interesse da audiência sem, ao menos, coletar depoimentos de uma fonte oficial médica. Além disso, sua figura também foi retratada como um consumidor assíduo de drogas e de uma vida sexual altamente ativa, quase justificando o motivo de sua doença no modo em que vivia, o que não velava a homofobia enrustida, de forma indireta, com todas as pessoas com HIV.

Alessandro Porro, jornalista que assinou a matéria, articulou ao longo da reportagem que Cazuza não era um gênio da música e que era até discutível se sua obra iria realmente perdurar, já que as canções do compositor ficariam perdidas em algum lugar daquele tempo. "Cazuza não é Noel, não é um gênio. É um grande artista, um homem cheio de qualidades e defeitos que tem a grandeza de alardeá-los em praça pública para chegar a algum tipo de verdade”, escreveu.


Na verdade, Porro faz questão de reforçar que a obra de Cazuza tendia a ser pequena devido à força do destino, no caso, aos oito anos de carreira que construiu, trazendo o comparativo com o sambista Noel Rosa que morreu de tuberculose, em 1937.


O efeito sobre as palavras foi deveras negativo para o artista, amigos e familiares. No livro “Cazuza: Só as mães são felizes”, Lucinha Araújo, autora e mãe do poeta, conta que os olhos do cantor encheram-se de lágrimas após ler a reportagem, declarando que só não os perdoava por terem posto em dúvida a qualidade de seu trabalho.


Meu filho não aguentou. As lágrimas tristes se transformaram em choro convulsivo. A pressão baixou quase a zero. Não conseguimos controlar a crise em Petrópolis e decidimos levá-lo imediatamente para o Rio. Na estrada, com a enfermeira e Zélia, nossa caseira de Petrópolis, ao lado, Cazuza passou por momentos críticos. Meu desespero era tanto que temi por sua vida, imaginando que ele não resistisse às curvas da Rio-Petrópolis. Era uma hora da madrugada quando meu filho, já internado e medicado na Clínica São Vicente, saiu da crise e a pressão foi estabilizada”, contou Araújo.


Preconceito disfarçado de informação


A Veja tomou a posição de mediador usando de um tom levemente sarcástico ao discurso médico, colocando-se como fonte exclusiva, visto que o assunto pouco era debatido na época e a revista tinha um grande poder de credibilidade, o que levou muitos leitores a sentenciar o cantor após a circulação da matéria.



A falta de responsabilidade ética e moral da Veja com sua fonte reforçou o preconceito contra pessoas soropositivas, ignorando o ponto de vista médico e científico ao longo da reportagem, não expondo o fato de que a Aids também contaminava pessoas heterossexuais de qualquer gênero e idade. Cazuza teve sua morte exposta como um espetáculo de horror, sem direito a respeito como ser humano.


Em 2020, o cantor Dinho Ouro Preto, do grupo Capital Inicial, se pronunciou sobre a polêmica capa Veja em um vídeo em sua conta oficial no Youtube. Em um dos trechos, ele destaca que "aquilo foi uma bofetada, uma faca no coração de todo mundo. Todos ficaram profundamente ofendidos com a revista parecer querer tirar proveito do sofrimento alheio. Amplificar a dor dele e da família para vender revista. Essa é a impressão generalizada. Aquilo foi inaceitável aos olhos da classe artística".


O vocalista ainda complementou dizendo que todos levantaram a voz para a situação insensível da equipe responsável. “Na época, não tinha rede social, não tinha como todos se mobilizarem de uma forma mais contundente. A revista podia ter tido empatia e compreensão e não aquele sensacionalismo barato. Lembro que os artistas se mobilizaram e foram chamados dois diretores da Veja para um programa na Bandeirantes para que eles se explicassem. Houve uma reação. Não sei bem o motivo, mas coube a mim o papel de ir lá representar os artistas e peitar esses diretores da Veja. Por que eles fizeram isso? Rolou um clima de que não era nada disso, não foi a intenção. No entanto, o Brasil inteiro viu o que eles tinham tentado fazer, que era aproveitar o sofrimento para vender".


Poeta e legado eternos


Cazuza morreu em julho de 1990, um ano e dois meses após a publicação. Foi, então, em outubro do mesmo ano que seus pais fundaram a ONG 'Viva Cazuza', que atuou por mais de trinta anos na Zona Sul do Rio de Janeiro. O instituto tinha como objetivo direcionar as vendas do cantor em recursos para proporcionar uma vida de qualidade para crianças e adolescentes soropositivos por meio de assistência à saúde, educação e lazer. Mais de 320 crianças tiveram assistência da ONG.


As atividades foram encerradas em 2020 e a motivação foi o avanço no tratamento da Aids e os baixos índices atuais de transmissão do vírus, segundo a mãe do artista. “Crianças não nascem mais com HIV como antigamente e, principalmente, minha idade avançada", explicou Lucinha, fundadora e responsável pela instituição. Ela ainda reforçou que continuaria com o trabalho de oferecer remédios e cestas básicas para adultos portadores do HIV.


Foi inaugurado em 24 de fevereiro de 2021 oEspaço Cazuza’, nas Laranjeiras, Zona Sul do Rio de Janeiro. A visa dar assistência social a crianças menores de 8 anos de idade em situação de vulnerabilidade socioeconômica. O legado de Agenor de Miranda Araújo Neto, o eterno Cazuza, está presente em causas sociais, tributos e até bloco de carnaval mesmo após 32 anos de sua morte.


O texto de Alessandro Porro, da Revista Veja, nos traz a reflexão de uma mídia que retratava e reforçava padrões, estereótipos, preconceito através de uma grande espetacularização de um artista muito além de uma doença como Cazuza foi. Além disso, também nos mostra que as palavras de Porro estavam completamente erradas ao insinuar que as obras do artista cairiam no esquecimento ao longo do tempo.


Cazuza fez música, Cazuza fez poesia, Cazuza fez rock. Cazuza fez, e continua fazendo, gerações se declararem apaixonadas ao som de 'Exagerado' ou declararem suas revoltas políticas ao som de 'Brasil', que escrita em 1985, deu voz a muitos nos últimos anos em meio a entraves políticos. Cazuza fez seu nome ser eternizado para além de um vírus que o levou e jamais deve ser esquecido pelo legado que deixou.

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