top of page
Foto do escritorMikhaela Araújo

Cinema indígena também é cinema brasileiro: a resistência dos povos originários

Atualizado: 30 de mai. de 2023


Mulher indígena pintada de vermelho olhando para a frente. Ela está no centro da imagem e não usa nenhuma vestimenta, apenas um adereço na cabeça. Ao fundo, uma floresta em preto e branco. A expressão dela é séria.

Quantos cineastas indígenas brasileiros você conhece?


A possibilidade da resposta ter sido "zero", infelizmente, é bem grande. O cinema nacional conhecido hoje tem um perfil e ele é masculino, branco, cisheterossexual e em boa parte sudestino. É brasileiro, mas fala de qual Brasil? Quais narrativas estão sendo contadas e divulgadas? Sob olhar de quem?


Em 2017, a Agência Nacional do Cinema, a ANCINE, divulgou a pesquisa "Diversidade de Gênero e de Raça no Audiovisual: A importância da produção de dados e informações para construção de políticas públicas", onde foi constatado que, em 2016, 75,4% dos longas-metragens brasileiros lançados comercialmente em salas de exibição foram dirigidos por homens brancos. Mulheres brancas assinam a direção de 19,7% dos filmes, enquanto apenas 2,1% foram dirigidos por homens negros. Nenhum filme foi dirigido ou roteirizado por uma mulher negra ou pessoa indígena.


A partir dali, foi criada a 'Comissão de Gênero, Raça e Diversidade' da ANCINE, extinta sem alardes nem sinalizações logo no início do governo Bolsonaro. Já no último sábado (19) foi comemorado o Dia do Cinema Brasileiro. Mas qual cinema comemorar?


O indígena no cinema nacional


Desde meados de 1910, o cinema nacional brasileiro tem o indígena como objeto. Luiz Thomaz Reis, chefe de Fotografia e Cinematografia da Comissão Rondon, responsável pela colonização do oeste do Brasil, dirigiu os documentários 'Os sertões de Mato Grosso' (1912), 'Expedição Roosevelt' (1914) e 'Rituais e Festas Bororo' (1916). E não pararam por aí: filmes com temática indígena existem aos montes, a exemplo de 'Iracema' (1919), 'No rastro do Eldorado' (1925), 'Descobrimento do Brasil' (1937), 'Casei-me com um Xavante' (1955), 'Como era gostoso o meu francês' (1971) e diversos outros.


A extensa filmografia citada anteriormente exprime em suas imagens o olhar de seus realizadores: homens brancos. Em sua maioria, as narrativas partem de uma visão etnocêntrico e universalista, que ajudou a difundir - e continua difundindo - estereótipos sobre indígenas que começaram desde a invasão dos portugueses em 1500. São histórias que trazem uma representatividade falsa de que povos indígenas são primitivos, selvagens, ingênuos, preguiçosos e exóticos.


O clássico longa infanto-juvenil 'Tainá - Uma Aventura na Amazônia' (2000), dirigido por Tânia Lamarca e Sérgio Bloch, apesar de passar uma mensagem de preservação do meio-ambiente e respeito à natureza e ter uma menina indígena no papel principal, também é um grande difusor e reprodutor de estereótipos. Eu, mulher não-indígena, cresci aprendendo na escola e acreditando que os "índios" eram pessoas que só viviam na mata, andavam seminus e não sabiam conjugar o verbo "ser". Essa visão é fruto de toda uma construção de um imaginário sobre o que é o povo indígena, perpetuada por gerações com ajuda da indústria cultural.



De objeto a sujeito


"Eu pensei sobre a forma que eu queria que a minha comunidade fosse vista e eu sentia uma falta disso, de que as pessoas [indígenas] se sentissem representadas de alguma forma" - Olinda Yawar Wanderley

Olinda Wanderley é jornalista, documentarista, cineasta, produtora fonográfica e agricultora. "Sou até mais agricultora que cineasta", disse em entrevista à TAG. 'Yawar' é o nome indígena e artístico de Olinda, que é Tupinambá da TI Tupinambá de Olivença/BA e também Pataxó Hã-hã-hãe, da TI Caramuru-Paraguaçu do Sul da Bahia, onde mora.


O cinema entrou na vida de Olinda quando ela estava ainda na graduação em Jornalismo. Seu primeiro filme foi o seu projeto de Trabalho de Conclusão de Curso, o documentário 'Retomar para Existir' (2015), que conta a história do líder indígena cacique Nailton Pataxó e suas estratégias para conquistar o território do povo Pataxó Hã-hã-hãe.



"Eu imaginei que o documentário seria uma forma deles [os Pataxós] poderem acessar esse trabalho. [...] A gente já tinha um histórico de pessoas vindo para a comunidade fazer trabalhos como monografias, mas o povo não tinha retorno, não sabiam o que estava sendo falado sobre eles", explica.


O indígena como objeto observado por pessoas não-indígenas é algo recorrente até os dias atuais. Muitas vezes, esses povos são filmados como se estivessem presos no passado, como se não pudessem se atualizar e acompanhar a modernidade. São filmados por olhares brancos, não pelos próprios olhares.


Obstáculos enraizados no sistema


Uma das maiores dificuldades de ser uma cineasta indígena, segundo Olinda, é a falta de recursos. Se não são ofertados equipamentos, aulas, oficinas, não se pode esperar que os povos indígenas consigam fazer super produções equiparadas aos produtos audiovisuais de quem recebeu esse tipo de conhecimento e oportunidade a vida inteira.


Esse contexto não é de agora. Durante toda a história, pessoas indígenas foram privadas de ter acesso à diversas áreas do mercado de trabalho e o cinema é uma delas. "Ninguém te ensina nada", conta Olinda, explicando que quanto mais ela entrou no 'mundo' do audiovisual, mais foi descobrindo dificuldades em ser uma mulher indígena cineasta.



Os obstáculos aumentam para cineastas indígenas do Nordeste. Olinda conta que sua experiência como diretora indígena baiana acaba adicionando mais uma camada de empecilho. Os projetos de oficinas cinematográficas são voltados principalmente para os povos que vivem no Norte do país, na Amazônia, deixando os povos que moram no Nordeste do Brasil esquecidos.


Divulgação e distribuição


A presença de filmes feitos por indígenas ainda é escassa em mostras de cinema nacionais. Ter curadores indígenas em festivais e mostras tem se mostrado cada vez mais urgente e importante. "Normalmente, nossos filmes são avaliados por pessoas que não são indígenas e elas não estão interessadas em saber qual o processo que os povos indígenas viveram", explica Olinda. Ela continua, dizendo que é preciso levar em conta diversos outros fatores não-técnicos no momento de colocar um filme indígena para ser distribuído num festival: a falta de acesso desses cineastas à oficinas de audiovisual e equipamentos de boa qualidade é um deles.


Se um filme não é divulgado e bem distribuído, ele não vai chegar para a população, os cineastas não se tornarão conhecidos e não terão retorno financeiro. É quase como se o sistema branco e capitalista não quisesse tornar essas produções conhecidas, não é mesmo? (contém ironia). Afinal, boa parte dos filmes feitos por realizadores indígenas são produtos audiovisuais de denúncia e registro, que além da função artística, também funcionam como preservação da memória e da história desses povos, gritando para o resto do país e do mundo os problemas pelas quais as comunidades passaram e passam. É um cinema revolucionário que afronta o sistema apenas por existir.


O registro de culturas através do audiovisual é político. É resistência, principalmente num momento social de avanço do conservadorismo e ameaça da sociedade hegemônica contra as terras indígenas - e sua própria existência. Como disse o diretor Alberto Álvares, realizador da etnia Guarani Ñadeva, em seu TCC:


"A mídia, na maioria das vezes, nos projeta de forma estereotipada e romantizada. Porém, quando invertemos o ponto de vista da câmera e produzimos nosso próprio registro, transmitimos ao mundo nosso olhar. Deixamos de ser ‘caça’, e nos tornamos caçadores" - Alberto Álvares, cineasta do povo Guarani

'Representatividades' contraproducentes


Em fevereiro de 2021, foi lançada na Netflix a série brasileira 'Cidade Invisível', criada por Carlos Saldanha. Baseada numa história desenvolvida pelos roteiristas e romancistas Raphael Draccon e Carolina Munhóz, a história acompanha Eric (Marco Pigossi), um policial ambiental que acaba descobrindo um 'mundo oculto' de entidades presentes no folclore brasileiro enquanto investiga a morte da sua esposa.


Logo que saiu o trailer do seriado, foi vendida na divulgação uma imagem de que ele iria abordar elementos presentes na cultura indígena, que seria uma valorização do Brasil e dessas narrativas. No entanto, não foi o que aconteceu. Sem nenhum indígena na produção, a série foi um desastre no que se propôs. "Pareceu que eles só queriam retratar o que era interessante para eles. Isso ficou bem evidente na forma que as entidades foram retratadas", conta Fabrício Titiah, ativista, estudante e escritor Pataxó Hã-hã-hãe.


É grave e sintomático que uma série do porte de 'Cidade Invisível' trate a cultura e rituais indígenas com tanto descaso. Apesar das diversas denúncias e problematizações feitas por indígenas acerca do seriado, ele foi um sucesso na plataforma de streaming, tanto nacional quanto mundialmente. Os criadores não se pronunciaram sobre os apontamentos feitos e 'Cidade Invísivel' está com uma segunda temporada em produção.


"É uma banalização. É como se eles pegassem tudo o que aprendemos desde que somos crianças sobre respeito às nossas entidades e dissessem que não é importante, como se não significasse nada" - Fabrício Titiah

São usados elementos da cultura indígena, misturados com a religiosidade de matriz africana - como por exemplo, a figura da Iara parecida com a de Iemanjá - e jogados no liquidificador para se tornar um produto comercial sem significado. "É uma violação da nossa história. Você chega, conta aquilo que você quer contar e ignora o conhecimento do povo", explica Fabrício. Uma das piores consequências de produções como essa é que é gerada uma falsa noção de representatividade indígena que acaba chegando para pessoas não-indígenas, atrapalhando ainda mais a luta desses povos contra a estereotipização e exotificação.


Vídeo nas Aldeias


Diretor do elogiado documentário 'Martírio' (2016), Vincent Carelli é o criador do projeto Vídeo nas Aldeias (VNA). O VNA surgiu após um longo período extenso trabalho de campo e de ida aos arquivos dos museus feito pelo antropólogo, fotógrafo e cineasta franco-brasileiro. “Percebi que esses registros e acervos faziam parte de um processo de expropriação. [...] Era um movimento de mão única. Raramente retornavam às aldeias os produtos e registros destes trabalhos. Então, eu sentia isso da perspectiva da aldeia e todo o meu movimento seria o de inverter essa direção. As coisas tinham que voltar”, relata Carelli à Revista Eco Pós da Escola de Comunicação da UFRJ.


O Vídeo nas Aldeias começou em 1986, disponibilizando imagens coletadas na pesquisa de Carelli, que logo depois adquiriu uma câmara VHS e um monitor de TV. Ele perguntava à aldeia o que eles gostariam que fosse filmado, reunindo todos para assistir às imagens imediatamente após as gravações.


Cerca de uma década depois, no final dos anos 90, o VNA deu início à formação de cineastas, com cursos de elaboração de roteiro, captação de imagens e edição. Foi um marco para o cinema indígena, porque eles foram conquistando autonomia e podendo passar de objeto para sujeito, contando suas próprias histórias.


Foi em uma das oficinas do VNA, na aldeia Kuikuro, em 2004, que o filme 'O Dia em que a Lua Menstruou' foi filmado. O curta foi vencedor de vários prêmios, como o de Melhor Vídeo (II Festival de Jovens Realizadores de Audiovisual do Mercosul) e de Melhor Documentário (Associação Brasileira de Documentaristas).


Ocupando espaços


Em contrapartida ao que aconteceu em 'Cidade Invisível', a produção da TV Globo 'Falas da Terra', exibida em abril de 2021, representa um passo importantíssimo para o audiovisual indígena no Brasil. O especial contou com vários realizadores indígenas na sua produção e fala sobre a pluralidade dos povos originários espalhados em mais de 300 etnias pelo país.



Olinda Yawar foi uma dessas realizadoras. "Os povos indígenas estavam precisando se ver representados dessa forma, na televisão, numa emissora desse tamanho", conta. Entre outros nomes, também participaram de 'Falas da Terra' Ailton Krenak, líder do Movimento Socioambiental de Defesa dos Direitos Indígenas; Ziel Karapató, artista e ativista; Graciela Guarani, cineasta e Alberto Alvarez, cineasta.


Além de trazer pautas coletivas, o especial também fala sobre as individualidades das pessoas indígenas, combatendo uma falsa noção de que o ser indígena é um só, que os povos são todos iguais. 'Falas da Terra' é resultado de uma luta incessante e diária pela ocupação de espaços.


É um cinema que está crescendo - lentamente, mas está - porque as pessoas estão 'dando a cara à tapa'. Mesmo sem recursos, indígenas estão brigando e lutando por seus espaços, produzindo seus filmes da forma que acham que devem ser feitos, mesmo que não se encaixem no que o branco espera que o cinema indígena se encaixe.


Num contexto em que o cinema brasileiro passa por tantas dificuldades, a resistência do cinema indígena se torna ainda mais fundamental para a preservação da memória do nosso país. "O cinema indígena tá aí porque as pessoas não estão se intimidando", declara Olinda Yawar. O cinema indígena é cinema brasileiro, é tesouro e registro nacional. É obrigação de qualquer amante da sétima arte - e também dos que não são - dar voz à quem está lutando para ser visto e ouvido há centenas de anos; que está saindo da posição de caça para ser caçador.


Últimos textos

bottom of page