Crítica: ‘Homem-Aranha: Sem Volta Pra Casa’
Atualizado: 30 de mai. de 2023
O aguardado filme do cabeça-de-teia peca em alguns pontos, mas representa o personagem e sua missão de forma única
O que significa ser um herói? Boa índole? Poderes? Vontade de ajudar os outros? Uma ou mais dessas características tem aparecido em figuras desse tipo na ficção desde sempre, e com o Homem-Aranha, não foi diferente. Stan Lee queria criar um herói que tivesse que lutar tanto com problemas comuns quanto com os inúmeros tipos de vilões. No visual, alguém mais próximo de uma pessoa normal, e não uma montanha de músculos. Por trás da máscara, apenas um jovem. E 59 anos depois, cá estamos nós no ano em que o personagem se torna o maior ícone da cultura pop atual.
O menino do Queens ganhou o mundo, e o mundo parou para ver ‘Homem Aranha: Sem Volta pra Casa’. O terceiro filme do “teioso” na Marvel Studios chega sob uma tempestade de expectativa. Seu roteiro faz um trabalho de malabarista de circo, tentando equilibrar vários objetos em nome do espetáculo, algumas vezes sem sucesso. Mas o longa serve como uma poderosa e honesta reafirmação daqueles que são os maiores símbolos do personagem, mas também seus maiores poderes e fraquezas: a persistência e o altruísmo.
“O futuro deles está arruinado só porque eles me conhecem ” - Peter Parker
ATENÇÃO: A partir daqui, o texto contém spoilers pesados do longa. O Doutor Estranho não existe nesse universo e não pode apagar sua memória, então se ainda não assistiu, feche o texto.
‘Sem Volta pra Casa’ começa exatamente onde o filme anterior, ‘Longe de Casa’, terminou. Peter Parker (Tom Holland) e sua namorada MJ (Zendaya) são pegos de surpresa pela revelação da identidade secreta do herói e pelo vilão Mysterio (Jake Gyllenhaal) tê-lo incriminado por diversos crimes. Nos meses seguintes, Peter, sua família e seus amigos vêem sua vida virar de cabeça pra baixo, ao serem alvos de investigação policial e exposição midiática ferrenha.
Com a ajudinha de um certo advogado chamado Matt Murdock (Charlie Cox), o nome de todos é limpo na justiça, mas Peter, MJ e Ned (Jacob Batalon) são vítimas da polêmica e acabam não sendo aceitos em nenhuma universidade. Essa é a deixa para que Peter recorra a Stephen Strange (Benedict Cumberbatch), o Doutor Estranho, querendo que ele apague de todos a memória de que Peter e o Homem-Aranha são a mesma pessoa, com o objetivo de não prejudicar seus amigos.
O plot de descoberta da identidade, até agora inédito nos cinema, traz um senso de urgência interessante, mas é preciso dizer, que, pelo menos no primeiro ato do filme, ele não é tão bem trabalhado. Em parte, isso é culpa da insistência em adotar uma avalanche de piadas e um tom cômico mesmo quando a situação pede outra coisa. Tom, Zendaya e Jacob são atores talentosos, o que faz com que boa parte das situações seja realmente engraçada, mas não dá pra parar de pensar em como a profundidade das cenas, por diversas vezes, foi trocada em prol de risadas passageiras.
A energia jovial, leve e engraçada que funcionou tão bem no primeiro longa da trilogia, ‘De Volta Ao Lar’, e no segundo, ‘Longe de Casa’, é um ponto forte de Jon Watts como diretor, mas sobreposta a uma história que pede mais drama, soa deslocada. Foi algo que, em menor escala, afetou filmes como ‘Vingadores: Ultimato’, e que talvez esteja acostumando o público mal, vide a recepção morna de ‘Eternos’, um filme que recorreu menos a esse artifício, amargou. No novo filme, personagens mais maduros, como o Doutor Estranho, parecem se encaixar ainda menos no tom inicialmente escolhido.
Também dá pra dizer que se pecou na pressa em contar a história, de início. Todo o processo de exposição pública e investigação criminal é mostrado de forma apressada e rasa. A aguardada aparição do já citado Murdock para livrar Peter e seus amigos das acusações serve tanto como fanservice quanto como um deus ex-machina, uma solução “mágica” para o conflito, usada para que o roteiro possa passar para o que realmente está interessado em contar.
Assim, o filme acaba não se debruçando tanto quanto deveria sobre esse ponto de partida tão interessante, uma falta recorrente nas produções da Marvel. Kevin Feige e equipe parecem muito mais interessados em aumentar o escopo do MCU, explorando novos personagens e “cantinhos” do universo ficcional, do que em aprofundar os componentes humanos e culturais já apresentados. Em “Sem Volta pra Casa”, a polarização da opinião pública sobre a índole do Homem-Aranha poderia ser melhor explorada. Por mais uma obra, continuamos sem saber para além do superficial, o que significa, para as pessoas comuns, viver em um mundo onde heróis, aliens e magos existem.
Entretanto, não vamos ser tão “cri cris”, não é? As piadas em geral foram sim engraçadas (mesmo quando não deviam estar ali), e o plot relacionado ao feitiço é muito mais bem estruturado do que parecia nos trailers. A motivação altruísta para Peter buscar a ajuda mágica para a situação é coerente com o personagem, e a escolha em buscar isso antes de tentar outras soluções, também. Alguns momentos em meio à primeira parte do filme também conseguem refletir bem a energia descontraída dos longas anteriores da trilogia, muito por causa do talento dos intérpretes. E falando em intérpretes…
“Com grandes poderes…” - May Parker
O principal destaque do marketing até o lançamento do filme foi justamente a volta de atores das outras versões do Aranha nos cinemas. E se o estúdio não chegou a confirmar a participação dos antigos heróis a tempo, os vilões foram sendo confirmados aos poucos, desde o primeiro trailer. Dos filmes protagonizados por Tobey Maguire, tivemos os icônicos Doutor Octopus (Alfred Molina), Duende Verde (Willem Dafoe) e Homem-Areia (Michael Hayden Church). Da franquia ‘Espetacular Homem-Aranha’, Electro (Jamie Foxx) e Lagarto (Rhys Ifans) deram as caras.
É realmente refrescante rever esses personagens, em especial Octopus e o Duende, que marcaram a infância de boa parte da geração Z e a adolescência dos millenials. Suas aparições foram os primeiros dos muitos momentos durante o filme em que a audiência foi ao delírio. Willem Dafoe, como sempre, foi um destaque tanto Norman Osborn quanto como seu alter ego Duende Verde. Alfred Molina não fica para trás e Jamie Foxx dá um novo tom, mais coerente, a Electro. Ainda que os outros dois vilões desse “quinteto sinistro” tenham tido participações menores, todos tiveram motivações bem definidas em relação ao plot.
A princípio, de fato, o uso desses personagens é sim nostalgia pura, usada muito mais para extrair uma reação imediata da audiência do que para servir a história. E… não, nem todas as referências e repetições de frases icônicas que são colocadas nas bocas e comportamentos realmente funcionam. Além disso, o CGI do Homem-Areia de alguma forma parece pior que o de sua aparição original, de 2007. Mas no fim de tudo, a inclusão valeu a pena. A presença dos vilões na história gera o conflito ético interessantíssimo que ampara o resto do filme: mandar eles de volta para os seus universos de origem para morrerem, como é o “destino” deles, ou tentar reabilitá-los?
Peter e Doutor Estranho representam duas opiniões diferentes sobre isso (e disputam sobre o assunto na cena mais visualmente impressionante do filme, na dimensão espelhada). O modo como a história aborda o tema nos faz refletir sobre que decisão tomar em relação a isso. À primeira vista, é relativamente fácil concordar com Strange, especialmente sabendo das complicações que mexer na linha do tempo podem trazer ao multiverso, algo já explicado em outras propriedades da Marvel como ‘Vingadores: Ultimato’, ‘Loki’ e ‘What If…?’, mas por fim, o filme faz um apelo pelo contrário.
Os vilões do Homem-Aranha, pelo menos os apresentados em ‘Sem Volta Pra Casa’, “nasceram” de uma forma muito semelhante ao próprio herói: frutos do acaso (ou seria do destino?). Foram pessoas que, através de acidentes, tiveram as vidas modificadas para sempre. Se voltaram ao mal, não foi diretamente por psicopatia ou ganância desenfreada, mas por se afogarem na mistura perigosa entre seus desejos, necessidades, os novos “poderes” e os fardos que vem com eles.
Ganhar poderes de repente tem a capacidade de mudar alguém, e a separação entre heróis e vilões nesse ponto se dá em como se reage a isso. Essas são as grandes responsabilidades. Cabe ao “poderoso” em questão saber usar suas habilidade de forma egoísta ou altruísta. E o Peter de Tom Holland traz justamente a noção de que, ao invés de jogar o “lixo” pra baixo do tapete, um herói de verdade tem a possibilidade, e o dever, de tentar reabilitar quem enveredou por caminhos mais sombrios. Simplesmente porque isso é possível, e porque é o mais humano a se fazer.
Diferente de tantos outros filmes de super-heróis, o longa levanta a bandeira do antipunitivismo, uma reflexão muito bem destacada pelo artigo recente da jornalista Andreza Delgado para a Ponte Jornalismo. Entretanto, deixa evidente que a jornada da reabilitação é árdua e que as consequências pelo caminho podem ser muitas. Para o Aranha do MCU, a morte de May Parker (Marisa Tomei) é a grande perda que as outras versões dos personagens já enfrentaram, aquela que muda completamente suas trajetórias. Após o filme construir com tanto cuidado o argumento de “lutar” até o fim pela melhora alheia, põe-se essa noção em xeque, ao acabar justamente com aquela que era a principal fonte dos princípios altruístas de Peter. É um momento bem escrito de crise da moralidade. Afinal, porque reabilitar alguém que faz coisas ruins se você não tem nada a ganhar e tudo a perder?
“Peter, é bom ver você, querido rapaz” - Doutor Octopus
Ainda que MJ e Ned tenham sido companheiros incríveis na vida de Peter como Homem-Aranha, apenas outro herói compreenderia sua dor e seus conflitos. Se forem outros Peters Parkers, melhor ainda, não é mesmo? E é para isso que Tobey Maguire e Andrew Garfield aparecem em tela, finalmente pondo fim a uma expectativa (e a um segredo mal escondido) que durou mais de um ano.
Os Homens-Aranhas que aprendemos a amar nos outros filmes surgem em uma cena que consegue ser divertida e catártica na medida certa. Eles pintam no MCU pela primeira vez e o cinema vai à loucura, com toda razão. Nesse momento do cinema, é sempre possível problematizar o “modelo Marvel” de se fazer filmes, mas invalidar as emoções geradas por momentos como esse é invalidar o modo como nos relacionamos com a arte de forma geral. Afeto e nostalgia são sentimentos humanos e válidos, especialmente se aliados a mensagens maiores que deseja-se passar. E esse é o caso aqui.
A participação dos dois “miranhas” originais no filme não soa forçada em nenhum momento - é até mais orgânica que as dos vilões. Suas cenas com Peter são cheias de diálogos preciosos, engraçados, e acima de tudo, sinceros. Apesar de grandes momentos das “variantes” mais antigas, elas conseguem a proeza de se destacar sem tirar o foco de onde ele deve ficar: o desenvolvimento do Aranha do MCU. Ao compartilhar suas experiências de perdas e raiva, os heróis ajudam o Peter-Tom-Holland a seguir seu caminho, após ficar paralizado pela culpa e pela revolta diante da morte de May. Sentimentos que o Peter-Andrew e o Peter-Tobey infelizmente conheceram tão bem.
Agora, uma pausa na seriedade dessa review para destacar o óbvio: Andrew Garfield é uma estrela. Em um filme repleto de boas atuações, o ator entrega uma das melhores. Seu carisma invade a tela de uma forma impossível de ignorar, seja no drama ou na comédia. Na cena em que salva MJ como queria ter salvado Gwen (Emma Stone) em ‘O Espetacular Homem-Aranha 2’, protagonizou um dos momentos mais emocionantes de todo o MCU. Além disso, é preciso dizer que é lindo rever Tobey Maguire como o Homem-Aranha. Mesmo que ele não pareça tão à vontade em seu antigo papel quanto Andrew, seu ar calejado e experiente e a doçura de vê-lo falando sobre Mary Jane (Kirsten Dunst) são um verdadeiro presente.
Voltando ao arco principal: apesar de rápida, a batalha final é narrativamente satisfatória e coerente com o ideal do filme. É interessante ver um conflito que busca ao invés de matar ou capturar os vilões, “curá-los” e livrá-los do fardo disfarçado de privilégio que é ter poderes, para que possam ser apenas eles mesmos. A baixa iluminação nas cenas noturnas é um ponto baixo - em alguns momentos, lembra a infame luta final de ‘Mulher-Maravilha 1984’ - mas a qualidade roteirística e os momentos de parceria entre as três “variantes” do Homem-Aranha salvam a trama.
“Quando você ajuda alguém, você ajuda todo mundo” - Epitáfio de May Parker
Em suas cenas finais, o filme tem alguns de seus melhores momentos. O conflito do Peter-Tom entre matar o assassino de sua tia e curá-lo é mostrado com a importância que merece. E assim, com a ajuda dos outros Aranhas, que o entendem tão bem, a nova encarnação do personagem consegue passar por cima da dor em nome de seus princípios. Além disso, a necessidade de apagar Peter da memória de todos é uma decisão corajosa dos roteiristas e produtores, e representa de forma mais literal e ampla a solidão já enfrentada pelos outros Peters em suas respectivas franquias.
Como Strange bem falou a Peter, tudo foi causado por ele tentando viver duas vidas. O que temos no final, é o herói, pelo menos por hora, obrigado a viver apenas uma: a de Homem-Aranha. Daí se seguem as tocantes despedidas de Doutor Estranho, MJ, Ned e os outros Peters. A decisão de não relembrar MJ de quem ele é também é acertada, apesar de previsível. E o que resta agora para o personagem é tanto conhecido quanto desconhecido. Ele está numa situação nova para um Homem-Aranha no cinema, mas mais ligado que nunca aos valores altruístas do cabeça-de-teia.
“Sem Volta Pra Casa” tropeça no caminho até a linha de chegada, e de certa forma seu visual, direção, efeitos especiais e parte do roteiro não saem do feijão-com-arroz Marvel (que já há um tempo, pede um temperinho a mais). Mas as performances, o bom uso do legado do personagem e os novos caminhos a que ele é levado fazem do longa uma boa experiência. Espalhafatosa, sim, mas nem por isso menos válida. E as difíceis decisões tomadas por Peter Parker durante o filme são a maior razão para que o filme valha a pena. Mesmo diante da dor e do risco, ele é alguém que se recusa a desistir de si mesmo e dos outros. Talvez seja isso que signifique ser um herói, afinal.
Antes que eu me esqueça…
Foi um prazer rever Charlie Cox como Demolidor, mesmo que só por uma ceninha. O cara nasceu pra esse papel.
Michelle Jones… Watson, também conhecida como… MJ Watson. Sim, MJ é “oficialmente” a Mary Jane do MCU, só que com nome yassificado.
A falta de interação entre o Homem-Aranha do Tobey e a variante do J. Jonah Jameson (J. K. Simmons) foi uma baita oportunidade perdida.
Nunca assisti aos filmes do Venom (e nem vou), mas o crossover prometido na cena pós-créditos promete.
Qualidade e sucesso do filme a parte, é questionável o quase monopólio do mesmo nas salas de cinema. Outros longas recentes, como “Amor Sublime Amor” e “Marighella”, mereciam mais disponibilidade nos cinemas paralelamente a “Homem-Aranha”.
VEREDITO: 3,5/5
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