Mães de crianças autistas falam sobre representatividade no dorama 'Uma Advogada Extraórdinária'
Atualizado: 30 de mai. de 2023
O dorama sul-coreano ‘Uma Advogada Extraordinária’ (direção de Yoo In-shik), como ficou conhecido no Brasil, é um dos maiores sucessos de audiência da Netflix neste semestre. A produção, que conta com Eun-bin no papel principal, entrou no Top 10 de séries de língua não inglesa mais vistas de todos os tempos na Netflix.
A série de 16 episódios conta a história de Woo Young-Woo (Park Eun-bin), uma mulher de 27 anos que é autista e conseguiu uma vaga de emprego em um grande escritório de advocacia. Diante dos seus mínimos detalhes, a representatividade e os detalhes de cuidado que traz com Young-Woo tem dado um ar de esperança para muitas mães de crianças autistas.
Aos 36 anos, Karly Brito relata, em entrevista à TAG, que desconfiou de alguns comportamentos de seu filho quando percebeu que a regressão de certas habilidades estava se tornando cada vez mais presente na rotina de seu menino. Intuição de mãe não falha e não demorou para que o diagnóstico fosse confirmado. Mãe de primeira viagem, a maranhense se tornou uma "mãe azul", como são chamadas as mães de crianças com Transtorno do Espectro Autista, também conhecido como TEA.
Neste mesmo período, a matriarca, que estava na sua segunda gestação, temeu que o filho que estava gestando, assim como o irmão, fizesse parte do espectro, visto que o preconceito e a exclusão ainda são os maiores desafios enfrentados por essas pessoas. Era tudo muito novo, porém Karly já estava ciente de todos os cuidados. Com dois anos de idade, o mesmo processo se repetiu e o diagnóstico do mais novo foi confirmado: Autista, suporte 1.
Em uma mistura de sentimentos, desde o alívio por descobrir cedo e conseguir obter tratamento precoce até as menores preocupações de mãe, Karly se viu diante de um grande desafio. “Nós, pais, não estamos preparados para o diagnóstico, por mais que você já tenha um na família. Eu digo que não perdi tempo no luto e corri para a luta, pois cada dia importa”, explicou. "Minha preocupação não era por que eles eram autistas, mas sim, o que o mundo poderia fazer com meus filhos, o que eu poderia fazer para eles evoluírem", contou a mãe que sempre teve ajuda e a presença de seu marido.
Foi por meio do cunhado que Karly conheceu o dorama ‘Uma Advogada Extraordinária’, visto que todos em sua família estão sempre em busca de novos conteúdos que possam ajudá-los a entender como as pessoas autistas pensam e, assim, encontrar novas maneiras de ajudá-los da forma mais justa. Britto conta que a personagem principal da obra lhe impactou a cada episódio. Em todos os mínimos detalhes, era possível ver um pouco de sua rotina através da tela, desde as explosões de conhecimento até o fato das relações sentimentais da personagem serem tão desacreditadas.
Entre os acontecimentos no decorrer dos episódios, a mãe dos meninos - que tiveram seus nomes preservados na reportagem - faz algumas observações importantes, como o fato de que nem todas as pessoas com o TEA detém de uma certa genialidade, como aponta a produção. Além disso, ela questiona a necessidade das pessoas autistas sempre precisarem justificar os seus diagnósticos.
Quando o assunto é o romance, Karly logo diz as duas palavras mágicas: “Meu sonho”, desejando que seus filhos encontrem alguém que tente entendê-los, mostrando que é possível amar, tendo sempre o respeito como base.
“A série representa em muitos pontos, pois mostra as dificuldades, a vivência em relações de trabalho, a dificuldade em se permitir questionar amadurecimento, e a baixa valorização de forma explícita de mérito que é da pessoa autista. Quando outros tentam levar os louros, é menosprezar aquele indivíduo autista. Acreditem, meus filhos são crianças e já foram desacreditados inúmeras vezes.”
Karly ainda aconselha o dorama para aqueles que buscam conhecer mais sobre o mundo das pessoas com autismo. "Nesta experiência, tem uma pincelada sobre o olhar e a mente da pessoa no espectro que é funcional, inteligente e, mesmo assim, tem muitas dificuldades”, explicou. Além disso, a maranhense expõe o desejo em relação ao crescimento do número de produções com pessoas autistas. “Que esse assunto se torne cada vez mais falado, para que precisemos explicar menos e vivamos mais e melhores experiências em uma sociedade informada, com empatia e entendedora de algumas limitações”, concluiu.
‘NÃO É COMPLETAMENTE REPRESENTATIVA’
Mesmo que ter personagens principais em papéis de destaque seja um grande passo para a comunidade autista, ainda existem fatores que deixam a desejar nesse tipo de produção. Diante desta carência que segue no cenário midiático quanto à representatividade de pessoas com deficiência, algumas limitações e estereótipos se tornam muito comuns quando se trata de obras que abordam o tema.
Emilly Karolyne foi uma das mães azuis que perceberam essas problemáticas. Aos 14 anos, a jovem não planejava engravidar, mas diante de uma mudança por completo em sua vida, ela se viu diante do seu maior desafio: a maternidade precoce. As provas de matemática ou inglês jamais estariam perto da maior prova da vida, que viria em nove meses: se adaptar ao mundo de um novo alguém que chegaria para fazê-la crescer, lhe dando toda a força para juntos enfrentarem o capacitismo perante a sociedade. Hoje, aos 19, a empreendedora conta que esse desafio tem sido o melhor de sua vida.
A mãe azul conta que descobriu o dorama através de uma indicação da mãe, que sempre procura conteúdos que informam sobre o autismo, buscando entender mais sobre o assunto, já que possui um neto autista. A jovem aponta que a trama lhe impactou de maneira intensa, principalmente ao se emocionar com a cena em que o pai da personagem a vê falando pela primeira vez.
Entretanto, quando se trata de trazer para a vida real, Emilly acaba se dividindo quanto à produção da Netflix. “Acredito que há detalhes bem parecidos, mas não é completamente representativa porque, mais uma vez, aborda autista como um gênio, e isso não é uma regra. Além disso, apresentar as dificuldades de forma negativa para o próprio autista, onde em certas falas ela diz ‘eu sou autista mas amo minha profissão’ ao invés de simplesmente dizer ‘eu sou autista e amo a minha profissão’, porque afinal ser autista não te faz inferior ou excluído”, declarou para a TAG.
O PODER DE CONHECIMENTO ATRAVÉS DA ARTE
A psicopedagoga Luciana Belém conta que a arte é um meio de transmitir conhecimentos, mostrar as dificuldades enfrentadas pelas pessoas que têm TEA e também apresentar alguns mecanismos para as famílias envolvidas que lutam diariamente para ajudar o indivíduo a vencer as suas limitações na área social, na comunicação e nas questões sensoriais.
Por outro lado, a profissional alerta que não é possível generalizar este transtorno, visto que cada indivíduo responde de uma maneira diferente, dentro de seus níveis de funcionalidade.
“Quando digo generalizar é não dar rótulos, tanto negativo quanto positivo, pois muitos que não tem conhecimento suficiente sobre o TEA acabam achando que todos são parecidos, que todos são gênios, que não têm capacidade de demonstrar afeto, que são insensíveis, que são apáticos, agressivos... pelo contrário, muitos deles são carinhosos, afetuosos.”, explicou.
De acordo com o DSM 5ª (Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais), o que diferencia os níveis do TEA é o grau de funcionalidade do indivíduo e o nível de suporte que ele necessita. Variando entre o nível 1, considerado mais leve, até o nível 3, sendo considerado o mais severo.
A psicopedagoga explica que no nível 1, por exemplo, o indivíduo encontra algumas dificuldades para se comunicar socialmente, iniciar uma interação, além da reduzida vontade de socializar, também possuindo uma leve fixação em seus interesses restritos. No nível 2, apresenta-se uma dificuldade na comunicação verbal e não verbal, necessitando de um suporte maior para interagir e responder ao ambiente. Já no nível 3, há um déficit mais severo de comunicação e uma interação mais limitada, podendo grave reação às mudanças, com presença de automutilação, agressividade com o outro, irritação rigorosa e tendência a isolamento completo
Diante disso, a psicopedagoga aponta que é possível tirar bom proveito destas grandes produções para o tratamento diário, tanto para os envolvidos quanto parentescos, amigos ou pessoas próximas. “Eles apresentam o hiperfoco, que são interesses intensos e altamente focado em assuntos de sua preferência e costumam a se aprofundar e viram grandes especialistas nos temas. Podemos aproveitar essas habilidades para a aprendizagem, para desenvolver outras áreas que estejam prejudicadas, fazendo links com os assuntos de seu interesse”, informou.
Luciana, que também é uma mãe azul, conta que descobrir o TEA de seu filho mais velho foi um grande desafio em sua vida, visto que não sabia nada sobre o assunto. A partir disso, a carioca não demorou muito para se afundar em informações sobre o assunto através de livros e artigos para dar o passo inicial no tratamento de João Pedro. O que começou, inicialmente, começou em algo particular em sua vida, acabou virando uma especialização profissional, onde conseguiu se encontrar na área da psicopedagogia e nos transtornos do neurodesenvolvimento.
TRABALHANDO COM REPRESENTATIVIDADE REAL
Em uma entrevista para a Revista Allure Korea, Park Eun-bin, atriz que dá vida à personagem Woo Young-Woo em ‘Uma Advogada Extraordinária’, disse que recusou o papel por algumas vezes porque acreditava que não seria capaz de interpretar bem. “Na verdade, me ofereceram esse papel junto a um papel no drama ‘O Rei de Porcelana’. Eu realmente pensei que esse era um bom projeto, mas não estava confiante se me sairia bem. Então eu contemplei por um tempo e rejeitei o papel algumas vezes”, contou.
Mesmo recebendo elogios a sua atuação, a atriz Park Eun-bin, que já estrelou outros doramas de sucesso como 'O Rei de Porcelana' e 'Do You Like Brahms?', não é uma pessoa autista.
Por outro lado e ainda em passos lentos, o cenário de representatividade está mudando, com pessoas autistas ocupando esses papéis. Neste mês, a Netflix lançou o reboot da série jovem 'Heartbreak High', série que conta com a atriz e autora neurodiversa Chloé Hayden, que vive o papel de "Quinni" Gallagher-Jones.
A adaptação da série original de 1994 traz a diversidade e inclusão em seu enredo. Na trama, Quinni possui um papel de espírito livre, ingênuo e ilimitadamente otimista no início. Quinni tem Transtorno do Espectro Autista (TEA) e à medida que os episódios vão se desenvolvendo, é possível entender e aprender como isso a impacta, desde sua rotina até seus relacionamentos mais íntimos.
Transbordando felicidade pelo papel conquistado, a atriz que dá vida à personagem, fez uma publicação em sua conta oficial no Instagram agradecendo ao carinho e sua importância ao ocupar as telas. “A cada humano que tem gritado por representatividade, que cresceu tendo que lidar com falsos estereótipos que invalidam nossas mentes mágicas, belas e completas, que pensaram que suas mentes, identidades e neurotipos valem menos porque cresceram sem vê-los, obrigado você por ter Quinni como sua”, escreveu.