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Foto do escritorMikhaela Araújo

"Fúria Primitiva" é imperfeito, mas consegue transmitir o que propõe

Atualizado: 22 de mai.

Filme de Dev Patel aborda política indiana atual numa jornada social e espiritual de seu protagonista


Há muito tempo, uma criança indiana, metade menino e metade macaco, que brincava nas margens de um rio avistou uma fruta que chamou sua atenção como nenhuma outra já havia chamado. Parecia uma manga, grande e suculenta. Decidiu, então, saltar o mais alto que conseguia para pegá-la e comer, descobrindo só depois que a tal manga era, na verdade, o sol.


Essa é uma das histórias sobre Hanuman, o deus-macaco, um dos mais adorados da religião hindu, tanto quanto Ganesha. Hanuman é uma das principais referências para Kid, personagem de Dev Patel em Fúria Primitiva (Monkey Man), filme que marca sua estreia como diretor. A forte analogia hindu com o personagem principal não é por acaso. Fúria Primitiva é uma obra com críticas explícitas a Hindutva, ideologia política de nacionalismo hindu que está numa crescente na Índia há décadas.


Esse foi o motivo, inclusive, do filme ter sido abandonado pela antiga produtora, a Netflix. A empresa de streaming não topou continuar o projeto por conta das "polêmicas" políticas contidas nele. Jordan Peele (Corra) e a Universal Pictures tomaram a frente da produção e, com algumas alterações, decidiu lançar o longa - que estreia no Brasil nesta quinta, dia 23 de maio. Na Índia, deveria ter estreado no dia 19 de abril, a data exata de início das eleições gerais no país, que ocorrem até o dia 4 de junho. Ainda não há nova previsão de estreia.


Fúria Primitiva tem como base do seu enredo a vingança, assim como acontecem em diversos outros filmes de ação, como os da franquia americana John Wick ou de exemplos asiáticos como Oldboy, que são, evidentemente, fontes de onde Patel bebeu para fazer seu longa (John Wick chega a ser diretamente citado em uma das cenas). Os motivos do protagonista, Kid (Patel), não ficam claros no início, sendo desenvolvidos ao decorrer da história através de flashbacks do personagem com sua mãe (Adithi Kalkunte), na infância. Na vida adulta, para conseguir dinheiro, Kid, absorvido das histórias sobre Hanuman que ouvia, decide ser de fato metade homem e metade macaco e luta usando uma máscara do animal em ringues clandestinos.


Até que Kid consegue um emprego no restaurante de Queenie (Ashwini Kalsekar), uma empresária que usa o estabelecimento como fachada para uma grande rede de prostituição e tráfico humano, frequentada pelos homens mais poderosos da Índia e de outros países asiáticos. É assim que Kid vai conseguir acesso ao delegado Rana Singh (Sikandar Kher), seu principal alvo, a quem ele pretende assassinar para se vingar.


A escolha de ir revelando o real motivo das suas ações por meio de cortes para flashbacks faz sentido, já que o personagem precisa passar por uma jornada pessoal de autoconhecimento e reencontro com a própria fé. No entanto, em alguns momentos, se torna repetitiva e um pouco cansativa a constância e velocidade brusca com que eles aparecem.


Outro ponto que se torna repetitivo são os enquadramentos e planos fechados. No início, dão um tom de 'reclusão' de Kid, de que faltam camadas a serem reveladas. Mas, eles continuam durante todo o filme, até em sequências de combate, o que acaba atrapalhando mais do que ajudando, somado aos movimentos de câmera bruscos o tempo inteiro. Apesar disso, as coreografias dos combates são bem orquestradas, com golpes espertos e ótimas lutas corporais.


No entanto, não foi só a ação de Fúria Primitiva que me ganhou. O trunfo aqui vai para o contexto social e político representado no longa-metragem, que é extremamente atual, como já citei anteriormente neste texto.


Fúria Primitiva utiliza o próprio hinduísmo para rebater a Hindutva, o que pode ser contraditório e até polêmico para alguns, mas funciona no filme. Ter um protagonista que cresceu na religião hindu não é algo que está ali por acaso. Dev Patel, além de ter sido criado nesta mesma religião, provavelmente não tinha a intenção de que sua obra fosse vista como anti-hindu. É como se ele quisesse usar o "olho pelo olho". Um resgate do 'verdadeiro hinduísmo' contra os 'falsos profetas' que se utilizam da religião e da fé, somados ao sofrimento do povo, para alcançarem mais riqueza na base da exploração.


O longa critica acontecimentos e personas reais, mesmo que tenha sofrido mudanças para não ser tão óbvio e ficar um pouco mais sutil. Uma das alterações foi a cor do partido do governo ficcional do filme. Foi alterada para vermelho, mas originalmente era um laranja açafrão, mesma cor do Partido Bharatiya Janata (BJP), também conhecido como Partido do Povo Indiano. É o atual partido da presidente do país e também do primeiro-ministro Narendra Modi, que tenta seu terceiro mandato consecutivo.


No poder desde 2014, Modi tem usado de sua posição para suprimir a oposição política, minar a liberdade de imprensa e discriminar o povo muçulmano, que é o principal alvo da Hindutva. Além disso, utiliza de armas midiáticas, como a própria Bollywood, para conquistar mais apoiadores. Não seria uma surpresa se a exibição de Fúria Primitiva fosse vetada na Índia, mesmo com as alterações feitas.


Para quem não está familiarizado com a política indiana, o personagem Baba Shakti (Makarand Deshpande), um dos vilões do filme, parece lembrar uma 'versão falsa' do líder Mahatma Gandhi, já que usa da imagem religiosa e de um discurso pacífico para propagar as ideias nacionalistas de extrema direita. Isso porque Shakti - cujo nome significa "poder" em hindi - parece ser diretamente inspirado em Modi e em outros membros do BJP, como Yogi Adityanath, líder espiritual populista de extrema direita e político, que, assim como Shakti, foi acusado de usar seu poder para destruir comunidades minoritárias.


Todas essas figuras frequentemente referenciam Gandhi para justificar seus atos, o que é contraditório, já que ele era a favor da união entre hindus e muçulmanos - e eles sabem disso. O BJP tenta se colocar como "verdadeiro herdeiro" das ideologias gandhianas. Porém, na verdade, é herdeiro do que o assassinou: um dos principais braços da ideologia Hindutva é o Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), grupo paramilitar voluntário fundado em 1925. Um dos integrantes do RSS, Nathuram Godse, matou Gandhi a tiros em 30 de janeiro de 1948. Hoje, o BJP trabalha externamente no apoio distorcido a Gandhi e, internamente e discretamente, tentam enfraquecer sua imagem e até glorificar seu assassino. Afinal, é praticamente impossível destruir, sem mais nem menos, a importância popular do homem que liberou a Índia dos colonizadores ingleses.


O que acontece no filme é algo que está acontecendo há anos na Índia, como expropriação de terras e assasinatos cometidos pelo Estado juntamente à polícia. Segundo uma matéria do indiano Nazimuddin Siddique para a Al Jazeera, milhares de famílias muçulmanas foram despejadas à força no estado indiano de Assam desde 2021, de terras onde moravam há décadas. Em pelo menos dois casos desde 2016, a polícia atirou e matou manifestantes.


Fúria Primitiva não é nada sutil quando exibe gravações reais em cenas específicas, o que funciona para lembrar ao telespectador que aquela história não é inventada "do nada". Outra indireta (nada indireta) que provavelmente não vai ser entendida de primeira por quem não está inserido no meio político indiano - como eu, antes de assistir -, é uma fala de Baba Shakti em hindi, “Bharat Mata ki jai”, que na tradução diz “Viva a Mãe Índia”, frequentemente usada por líderes do BJP, incluindo Modi.


Um dos problemas do filme é que, em sua maior parte, o ódio de Kid não é direcionado ao sistema total, e sim personalizado na figura de Rana Singh. É compreensível, dado o acontecido na sua infância, mas o enredo também peca em outros aspectos de sua crítica, como por exemplo, não deixando evidente a ideologia de Baba Shakti. Você fica um pouco confuso sobre o peronsagem por conta uma ambiguidade quase forçada sobre o que ele pensa ou quer de verdade.


Um dos pontos mais interessantes de Fúria Primitiva é a presença de pessoas queer, principalmente trans. Na Índia, o terceiro gênero é oficialmente reconhecido e tem, inclusive, um nome próprio: as hijras. São como as travestis aqui na América Latina. Comunidade transgênero mais antiga do país, a existência das hijras é relatada há, pelo menos, quatro mil anos nos livros sagrados do hinduísmo. Porém, como consequência do imperialismo britânico que era completamente binário e cisnormativo, elas enfrentam até hoje diversas dificuldades e muita, mas muita transfobia. Mesmo sendo literalmente sagradas, ainda vivem marginalizadas e precisam se unir entre si para sobreviverem na sociedade. Cerca de 90% delas são garotas de programa. Se não fossem as leis (recentes, assim como a independência do país) e as questões religiosas que as beneficiam, o cenário seria ainda pior.


No filme, as hijras são celebradas e são interpretadas por um elenco de pessoas trans, algo que, apesar de ser 'básico', precisa ser destacado e reconhecido como um ponto positivo de representatividade. Inclusive, as cenas com as hijras são algumas das melhores do filme, tanto no sentido dramático, sentimental e espiritual, quanto no de combate e ação direta.


A violência sexual contra mulheres também é pontuada por Patel e seus co-roteiristas, John Collee (Atentado ao Hotel Taj Mahal) e Paul Angunawela, chamando atenção para uma questão existente há tempos, mas que vem ficando cada vez mais grave na Índia. Segundo estimativas oficiais, ocorrem três estupros a cada hora e um estupro coletivo a cada quatro horas no país.


“Tendo passado a maior parte da minha carreira viajando dentro e fora da Índia, filmando filmes, é difícil ignorar algumas das histórias que enchem as colunas dos jornais de lá [da Índia]”, disse Dev Patel em uma entrevista à BBC.

“Eu queria abordar um pouco disso e talvez alcançar um público que normalmente nunca acessaria esses tópicos.” Funcionou, não dá para negar.


Mesmo com seus problemas, é notável a coragem de Patel em fazer um filme com críticas contundentes dessa forma e admirável o manejo (tanto dele quanto dos produtores) para colocar a obra em circulação, num feito talvez inédito neste contexto indiano. Isso porque, como já dito antes, a censura com a mídia é gigante na Índia. Afinal, a arte é uma das primeiras a serem destroçadas por fascistas, historicamente - aqui no Brasil, por exemplo, não foi diferente.


A censura cinematográfica silenciosa no país piorou piorou nos últimos anos, atingindo principalmente obras de streamings. De acordo com o The Washington Post, executivos de empresas como Netflix e Prime Video, em parceria com o governo, solicitam mudanças nas tramas políticas e exigem a retirada de referências que possam ofender a Hindutva ou o BJP. Além disso, projetos apresentados que abordam os conflitos políticos são "educadamente recusados" ou até abandonados no meio da produção, como foi o caso de Fúria Primitiva com a Netflix.


Como obra cinematográfica, Fúria Primitiva entrega uma estreia de um diretor que ainda está descobrindo seu estilo e tropeçando nele mesmo um pouco. Também foi claramente influenciado pelos filmes que fez na sua carreira como ator. Inclusive, aqui, Dev Patel cumpre com excelência o papel protagonista, transmitindo seus conflitos internos, raivas individuais e coletivas e espiritualidade, conectando o telespectador com a história do personagem.


Alguns planos são visualmente interessantes e outros até cuidadosos com temas delicados. Mesmo sendo um filme bastante violento e gráfico, Patel sabe escolher o que mostrar, o que não mostrar e como mostrar quando é necessário, principalmente numa das cenas mais fortes.


Vários clichês de ação estão presentes aqui, o que dá a impressão de que é um filme "mais do mesmo", mas sua diferença está justamente nos seus temas mais subjetivos. E, mesmo com os clichês, funciona. Um exemplo é uma das sequências de treinamento do protagonista, que é instigante, além de 'brincar' com a percussão indiana de maneira divertida (a apelação para o físico de Patel é só um plus!). Falando em percussão, a trilha sonora com músicas indianas em cenas de luta formam uma ótima combinação.


A "exploração" da pobreza, citada por alguns como "fetichista", não chega a ser um grande problema, na minha visão. Não há uma glorificação nem romantização, mesmo que, visualmente, lembre outras caracterizações cinematográficas do sul global (o verde, amarelo e vermelho estão fortemente presentes). Ela é, sim, mostrada, porque realmente existe, apesar de ter algumas cenas que poderiam ser filmadas de outras maneiras, afim de tornar a situação um pouco menos "caricata". Se você assistir, vai saber do que estou falando aqui.

Embora imperfeito, o primeiro longa de Dev Patel merece seu devido reconhecimento por tocar nessas feridas, que precisam ser tocadas, levando esses temas a serem mais mundialmente conhecidos, principalmente no ocidente. Particularmente, não sou grande entusiasta da ideia de que "filmes precisam ter importância" ou um papel político sempre, nem devem ser julgados apenas em cima disso. Porém, é necessário reconhecer quando eles têm algo a dizer.


Veredito: 3,8

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