“Ferrari” corre entre a vida e a morte, nas pistas e fora delas
Novo filme de Michael Mann é um retrato completo de quem foi Enzo Ferrari
Não temos certeza do que rege o universo, mas temos certeza da morte. O ponto final da existência humana é um evento aterrorizantemente confirmado para todos, e o que resta é ponderar o quão rápido ou devagar ela pode chegar.
Em “Ferrari” (2023, Michael Mann), filme focado na vida de Enzo Ferrari, fundador da lendária montadora e equipe de corrida italiana, a morte ronda o chefe da marca dentro e fora das pistas, despertando nele ora tristeza, ora frieza.
A possibilidade da morte a cada curva (das corridas e da vida) é um dos principais pontos do filme, que estreia nesta quinta-feira (22/02) nos cinemas brasileiros, após ser esnobado na temporada de premiações. Trata-se de uma reflexão interessante - ainda que instável - sobre custo de tentar ir além do ordinário nas pistas e, acima de tudo, sobre a existência de um homem.
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Um homem, pai, marido e corredor dividido
Ao invés de contar a trajetória de Enzo Ferrari do início ao fim, “Ferrari” tem seu foco em um ano específico - e decisivo - na história do empresário: 1957. Trata-se de um momento em que a marca já tem seu nome bem estabelecido, mas vai mal das pernas nas finanças.
Diante desse cenário, Enzo (Adam Driver) resolve tentar evitar a falência vencendo a famosa corrida Mille Miglia, na Itália, o que ajudaria a impulsionar a venda de carros e salvar a marca. Para isso, ele monta um time de pilotos que inclui o ambicioso Alfonso de Portago (Gabriel Leone) e o experiente Piero Taruffi (Patrick Dempsey).
Se nos negócios a vida de Enzo é cheia de complicações, em casa não é diferente. Ou melhor, seria mais coerente falar em “casas”, pois o empresário se divide entre a vida com sua amante Lina (Shailene Woodley) e uma verdadeira guerra fria com sua esposa Laura (Penélope Cruz).
Há ainda uma terceira “residência” de Enzo no longa (ou quarta, se contarmos a sede de sua marca): o mausoléu que guarda o corpo de seu filho Dino, cuja morte tem um forte impacto na vida do fundador da Ferrari.
Ele visita o local todos os dias, conversando com um túmulo como se falasse com o filho, e tem que conviver com o rancor de Laura, que o culpa por não ter salvado Dino. Tudo se torna ainda mais dramático com o risco de que sua esposa descubra a existência de Piero, filho “bastardo” de Enzo com Lina.
Com esse prato cheio de conflitos, “Ferrari” não é um filme que conta toda a história de Enzo Ferrari, mas de como, em seu momento de maior crise, é possível conhecer toda a sua história. Conhecemos o homem em um contexto de alto conflito pessoal e profissional, e isso é bastante revelador sobre sua personalidade e o modo como ele via a vida.
A Ferrari, as corridas e a adrenalina são parte importante do longa, mas que são apresentadas muito mais sob a ótica de como se relacionam com Enzo. A velocidade, os carros e as vitórias são seu vício e sua maior obra, algo intrínseco a sua personalidade e que, ao mesmo tempo, o aliena do mundo.
Enzo chega a falar em dado momento no longa de como ergueu uma muralha emocional quando pessoas queridas morreram nas corridas, o que, aparentemente, só piorou com a morte do filho Dino. O modo frio como ele reage a outras mortes de pilotos nas pistas deixa isso bastante nítido. Mas, para ele, o que mais importa é continuar correndo.
Trata-se de um homem dividido, fragmentado, não só entre as pistas e a vida real, mas entre duas mulheres e várias vidas. Laura, de certa forma, representa seu passado e a construção da companhia, mas também é alguém que viu o seu pior - desde seu “fracasso pessoal” na tentativa de salvar a vida de Dino até suas já conhecidas traições.
Todo esse drama que ronda a vida de Ferrari é apresentado de forma sólida, especialmente por conta da boa atuação de Adam Driver, que convence com os lados mais frios e também mais emocionais de Enzo.
Velocidade, a destruidora de mundos
Além de falar sobre Enzo como pessoa, “Ferrari” faz um comentário mais geral sobre a devoção dos homens locais - desde pequenos - pelos carros e pela velocidade. Uma cena no início do filme, em que Enzo e alguns de seus companheiros atendem uma missa ao mesmo tempo que cronometram, à distância, o tempo da volta de um piloto na pista, ilustra isso muito bem. É quase como se correr fosse uma religião para quem é do local.
“Ferrari” evita dar um ar apenas de glamour ou apenas de tragédia às corridas, misturando esses dois lados para contar uma história de obsessão pela velocidade e pelas linhas de chegada. De certa forma, como “Oppenheimer”, é uma história sobre homens que, em sua empolgação na busca de algo tão além do trivial, flertam com a morte e com a destruição dos que estão ao redor.
Além de Enzo e sua desconexão emocional causada pelas corridas, isso também é nítido no que se refere a Alfonso de Portago, que representa alguém muito mais empolgado com a vida fora das pistas que Enzo, mas que é ainda mais capaz de romper limites, custe o que custar, nas corridas. Afonso, inclusive, é um atestado do carisma e talento do brasileiro Gabriel Leone nas telas.
O filme é bastante eficiente em mostrar seus temas, ainda que, em alguns pontos, peque por apresentar a mesma desconexão emocional do seu personagem central. Cenas de colisões, mortes ou até mesmo das próprias corridas acabam por ter seu impacto emocional diluído, e suas consequências acabam por não ser tratadas com a gravidade que, em tese, deveriam ter.
Isso inclui, inclusive, uma das cenas do filme que mais repercutiu internacionalmente: uma colisão bastante sangrenta e drástica na Mille Miglia de 1957. A sequência tem seu impacto no momento - assim como grande parte do terceiro ato, que é focado na corrida e injeta uma energia muito bem-vinda no filme - mas ele acaba dissipado logo depois.
Invocando mais uma vez outro filme da atual temporada de premiações, “Ferrari” também acaba por sofrer de um problema também apresentado em “Assassinos da Lua das Flores”: a caracterização insuficiente da principal personagem feminina. Se no filme de Scorsese era difícil entender porque Mollie confiava tão cegamente no marido Ernest, aqui as ações de Laura Ferrari são um tanto quanto mal estruturadas.
Ao mesmo tempo que rechaça, critica e confronta Enzo por sua infidelidade, sua imprudência e pela morte de Dino, Laura é bastante permissiva quando o marido pede sua ajuda para salvar a fábrica, e até mesmo, sem nem mesmo que ele peça, para ajudá-lo a mudar a opinião pública a seu favor.
Penélope Cruz tem, em alguns momentos, uma atuação um tanto caricata, mas brilha em sequências como o momento em que Laura visita o túmulo do filho. Porém, é um tanto difícil abraçar as ações contraditórias de sua personagem - não porque personagens femininas não possam ter contradições, obviamente - mas porque não há foco ou contextualização suficiente da personagem para que, de fato, entendamos quem ela é.
É bastante natural que isso ocorra, pois, afinal, o foco de uma cinebiografia sempre será, desproporcionalmente, no dono da história. Porém, a permissividade de Laura com Enzo acaba sendo um ponto cego que nunca é resolvido.
Pode-se afirmar que é totalmente possível que ela aja baseada na lealdade construída durante anos de casamento e na dedicação dela própria à empresa, mas falta substância textual no longa para que isso se torne totalmente orgânico.
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Ultrapassagem na última curva
“Ferrari” trata de vida, de morte, de passado, e de futuro de forma bem-sucedida com um recorte de tempo interessante e eficaz. Ao fim da experiência, é possível ter um desenho completo dos conflitos de Enzo Ferrari como pai, marido, empresário, chefe de equipe, e pessoa, de modo geral.
Ainda que, às vezes, de forma emocionalmente desinteressada, a devoção às corridas e à vitória é abordada de forma cativante e bastante particular. Porém, são os detalhes e o impacto emocional um tanto insuficiente do filme que talvez tenham gerado sua esnobada no Oscar e em outras premiações.
Às vezes, o desempenho na pista é muito bom, porém bastam um ou dois deslizes para ficar de fora do pódio. Porém, quem estava na arquibancada confirma: a corrida valeu o ingresso.
Veredito: 4/5
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