top of page

Fofinha ou puritana? ‘Heartstopper’ acende debate sobre sexualidade LGBTQIAPN+ nas telas

A série da Netflix reacendeu um debate nos últimos dias: afinal, até onde deve ir a representação da sexualidade LGBTQIAPN+ nas telas?


"Heartstopper" sofreu chuva de acusações desde a estreia da 2ª temporada | Foto: Netflix

Ah, o Twitter… Esse maravilhoso mundo de hot takes, debates e tantas outras coisas inclassificáveis. É comum achar quem pense que há assuntos que só existem por lá, mas afinal, para as gerações Y e Z, existir não é, em parte, estar on-line? Nem todo take ou debate no site do passarinho azul é lá tão relevante, mas alguns ecoam problemáticas muito reais, que valem o debate.


A estreia da 2ª temporada de “Heartstopper” na Netflix em si rendeu um dos assuntos da semana por lá, por conta de tópicos que já são há muito relacionados à série: sexo e LGBTs.


Quem assiste sabe que, desde o início, a série foca muito mais em uma perspectiva romântica do que sexual para abordar os relacionamentos de Charlie, Nick e dos outros personagens, uma escolha herdada, inclusive, de sua origem nos quadrinhos. O tom “apenas fofinho” (e para muitos, dessexualizado) da série gera uma certa polarização entre a própria comunidade LGBTQIAPN+, especialmente entre homens que se relacionam com outros homens.


Houve quem dissesse, por exemplo, que a falta de uma abordagem mais frequente de sexo e sexualidade era irreal e não correspondia à genuína experiência LGBTQIAPN+. Enquanto isso, também há grupos que, em contraponto, negava a necessidade da abordagem do tema na série (e na ficção em geral), atribuindo a representações explícitas de sexualidade e atos sexuais um peso moralmente negativo.


Em meio a esse “campo de batalha”, termos como “fornicação” e “padrões obcecados por droga e banheirão” eram atirados pela ala conservadora, enquanto os críticos massacraram a “Geração D de Damares” e criavam para "Heartstopper" a alcunha de “Novela Carrossel para Gays”. Mas afinal, o buraco é tão embaixo assim? Quem está certo? A Ala Banana Preta do Twitter foi longe demais? Não existem respostas fáceis para isso, e a minha, com certeza, não é a definitiva. Mas talvez dê para começar de algum lugar.


“Cada um” com seu “cada qual”


Em sua 2ª temporada, “Heartstopper” mostra Nick e Charlie em uma nova etapa de seu relacionamento, em meio a dificuldades para assumir a relação, questões familiares e outros tópicos. Um desses assuntos é o sexo e a sexualidade. Em uma troca de carinhos mais acalorada, Nick deixa um “chupão” em Charlie. Em uma conversa franca sobre o tema, fica definido que ambos querem transar, mas Nick não se sente pronto. É uma das expressões mais diretas relacionadas ao tema na série, que, de fato, não costuma tocar no assunto.


Há algumas possíveis razões para que o sexo (e o tesão) não façam parte do universo de forma mais evidente. Um deles é a idade dos personagens, que varia entre 14 a 16 anos. Porém, outras séries da própria Netflix, como “Eu Nunca” e “Sex Education”, ou filmes, como “Hoje Eu Quero Voltar Sozinho”, lidam com personagens de faixas etárias semelhantes, e falam de sexo ou sexualidade de forma muito mais aberta.


Além isso, quando se toca no assunto, é comum citar que a autora dos quadrinhos e roteirista da série, Alice Oseman, é uma pessoa assexual. É natural que o “eu” do autor transpareça, de uma forma ou de outra, na obra, e, pelo menos em parte, é o que, em tese, pode ter acontecido aqui, mesmo que indiretamente, por conta da escassez da abordagem do tema na obra.


Porém, seria muito reducionista pensar que por conta da sua sexualidade, Alice ou outras pessoas assexuais só consigam criar personagens iguais a si. Até porque Alice também é uma pessoa arromântica, e isso não a impediu de abordar romances dos mais diversos em "Heartstopper".


Charlie e Nick, casal principal de "Heartstopper", conversou sobre a sexualidade na nova temporada | Foto: Netflix

No fim, mesmo que não saibamos uma explicação totalmente exata, é assim que a série foi concebida, e isso não parece vir de um desejo de higienizar ou dessexualizar pessoas LGBTs, mas de uma visão artística genuína, ainda que particular, da autora.


Aparentemente, “Heartstopper” fala pouco de sexo porque está no DNA da produção, não puramente por conservadorismo ou pela idade dos personagens. A escassez de discussões ou representações do tema não parece forçada. Na vida real, é perfeitamente normal que algumas pessoas LGBTQIAPN+ com a idade dos personagens não se sintam prontas para transar ou falar sobre o assunto.


Por outro lado, especialmente na 2ª temporada, o tema não deixa de estar presente, tanto nas conversas entre Charlie e Nick, e até nas cenas mais íntimas entre ambos, que estabelecem que o que os une não é apenar amor, mas uma forte atração física.


É normal que abordagem da série frustre uma parte da comunidade, que sente falta de uma abordagem mais frequente e, porque não, mais aberta da sexualidade, algo tão inerente às pessoas de modo geral. O incômodo pode se dar, inclusive, pois é muito comum que representações de sexualidade LGBTIA+ sejam tolhidas em filmes, séries, novelas e outros tipos de produção. Então, por que, afinal, “esconder” o assunto uma vez mais?


Ainda que o questionamento seja válido, a série, por outro lado, não deixa de causar identificação em uma parcela considerável da sigla, justamente pelo fato de que LGBTQIAPN+, pasmem, são plurais. Parte dos erros nas discussões sobre “Heartstopper”, tanto por parte de críticos quanto apoiadores da série na comunidade LGBTQIAPN+ é considerar que suas experiências e preferências são universais.



“Heartstopper” é uma das milhões de histórias válidas e possíveis que podem ser contadas sobre personagens gays, bissexuais, lésbicas e trans. Como vivemos uma comunidade diversa, é normal que nem todos os membros não se identifiquem e sintam que, de fato, “faltou algo”, até pelo fato dos personagens serem adolescentes e a série ter como plot points coisas como… castigo e trabalho de história. Porém, isso não tira a validade do recorte que foi apresentado, até porque de fato é comum achar pessoas mais velhas que conseguem gostar do conteúdo da produção.


Nenhuma obra que aborde personagens queer deve ser vista como algo que consegue gerar identificação a um público alvo universal, pois, na comunidade, esse público não existe, ainda que haja muitas experiências compartilhadas. Como aponta o tweet abaixo, é comum que produções focadas em LGBTQIAPN+ e/ou mulheres sofram uma cobrança para serem representativas para todos os integrantes da minoria em questão. Na verdade, isso se aplica a obras representativas de qualquer minoria social.



Isso provavelmente se deve à relativa escassez de histórias do tipo, em uma indústria que segue privilegiando tramas centradas em homens heterossexuais e cisgêneros. Assim, cada produção que foge desse padrão acaba pressionada a “fazer o trabalho” sozinha. É algo impossível e injusto. Afinal, cada filme é um filme, cada série é uma série, e cada obra possui um recorte específico, influenciada pelas características específicas das pessoas por trás das câmeras (e à frente delas).


Dito isso, será que devemos queimar “Heartstopper” na fogueira por apresentar um recorte específico? Ou colocá-la na cadeirinha da vergonha, talvez? Eu, particularmente, acho que isso é muito reducionista.


Santa Caretice


Por outro lado, existe outro excesso causado pelo público em relação a "Heartstopper": o de colocá-la em um pedestal, como um grande exemplo a ser seguido, justamente por não abordar sexo e sexualidade de forma tão profunda. Inclusive, uma porção considerável do incômodo com a série parece ser motivada pelos absurdos proferidos por uma parcela barulhenta de fãs revestida de superioridade moral.


Esse fenômeno parece ser um sintoma do conservadorismo que vem tomando conta de uma quantidade considerável de adolescentes. A geração D de Damares realmente existe.



Estamos falando de uma quantidade considerável de pessoas de 12 até a casa dos 20 anos com ojeriza a tópicos como presença de vários parceiros na vida sexual, cenas de sexo na ficção, não-monogamia e identidade de gênero não-binária. É fundamental que os tópicos citados gerem diálogo nas redes, até para que o nível de informação circulando seja maior. O que não dá é para um séquito jovem censurar tanto outros jovens, adotando uma atitude altiva e contraproducente.


Por trás dessa atitude conservadora, pode haver uma vontade de “ser diferente” da “juventude perdida” que se apresenta. A questão é que esse discurso já é velho conhecido da comunidade LGBTQIAPN+.


Parte do fandom de "Heartstopper" vê a série como um exemplo a ser seguido | Foto: Samuel Dore/Netflix

Essa parcela da sociedade é constantemente associada a “promiscuidade” e “degeneração moral” há décadas, se não séculos, especialmente no caso de homens gays, pessoas trans e bissexuais em geral. Não existe nada de novo ou de produtivo em se juntar a esse discurso, sejam os “jovens conservadores” parte da comunidade ou não.



Tentar “dessexualizar” representações queer a todo custo é negar a exploração de um aspecto importante de quem elas são como pessoas (e aqui, incluo também pessoas assexuais). Séries como “Heartstopper” não são piores ou melhores que produções como “Sex Education”, que representam adolescentes da sigla falando abertamente sobre o assunto.


Não sei se parte do público jovem conservador que é LGBTQIAPN+ espera isso, mas falar menos de sexo ou sexualidade, ou gostar apenas de produções “fofinhas” como Heartstopper não torna pessoas LGBTQIAPN+ realmente mais "palatáveis" para a sociedade.


De fato, é “exigido” socialmente que referências ao assunto sejam evitadas perto de pessoas que não sejam da comunidade, mas para quem é queer, o estigma sempre vai permanecer, independente de quão movimentada é sua vida sexual ou do quão abertamente você fala dela. O mesmo vale para como isso é visto na TV e no cinema. “Heartstopper” não vai mudar a perspectiva de heterossexuais e cisgêneos sobre quem é queer só porque não retrata o sexo.


Boa parte desse público, inclusive mais velho, se recusará a ver a série simplesmente por ela retratar essa minoria social. Inclusive, um dos argumentos usados para defender “Heartstopper” como um exemplo a ser seguido é que a série é “adequada” para uma faixa etária mais nova.


Mas com que frequência será que essa faixa etária pode assistir à série livremente com o aval dos pais no país, sem enfrentar estigma ou até coisas piores?


Ser LGBTQIAPN+ continua sendo um tabu para parte considerável da população, que "até respeita, mas não aceita". Ou até aceita, mas “torcer por isso é um pouco demais, né?”.


O sexo está longe de ser o ponto de partida do tabu sobre LGBTQIAPN+ em produções ficcionais. A TV aberta, por exemplo, pode até ter sido abandonada por parte dos jovens brasileiros, mas ainda é massivamente no país, e tem tudo para sobreviver ainda por diversas gerações. É consumida parte por um público mais velho, parte por um público mais jovem que ou não se interessa ou não tem acesso ao streaming por questões financeiras e/ou sociais.


Por lá, um simples beijo ainda é vitória, a qual é frequentemente negada, conforme pudemos ver nos recentes cortes realizados nas cenas de beijo sáfico do casal Clara e Helena na novela “Vai na Fé” e na exibição da série “Aruanas”.


Para um país homofóbico, “Heartstopper”, a série feita para "dar calor no coração e não em outras partes do corpo", como disse um dos jovens conservadores no Twitter, já está além das linhas inimigas.



No fim, é sobre pontos de vista


É isso. A “verdadeira experiência queer nunca será totalmente contemplada por nenhuma obra de ficção, simplesmente porque ela não existe.


A comunidade é plural e diversa demais por si só. Por isso, o ideal é que cineastas e roteiristas que sejam pertencentes a ela, ou busquem retratá-la, recebam espaço para contar suas histórias sob seus pontos de vistas, com suas particularidades.


Ser puritano e preciosista não ajudará ninguém ter avanço nenhum. Esperar que todas as obras abracem todas as vivências particulares, também não. Ainda que o audiovisual não seja o meio mais receptivo, há tantas opções de TV e cinema LGBTQIAPN+, tão diferentes entre si. Elas vão desde “clássicos” como “Queer as Folk” e ”The L World” até filmes como “Moonlight”, “Reino de Deus”, o cinema queer de diretores como Gregg Araki e Gus Van Sant e séries recentes como "Pose". Isso sem falar em produções nacionais, que por si só possuem uma diversidade espalhada da irreverência de “Tatuagem” até as confusões de “As Five”.


"Tatuagem", filme de 2013 dirigido por Hilton Lacerda | Foto: Reprodução

Cada um com seus atrativos e problemáticas. Afinal, assim como as pessoas que os produziram, não são perfeitos.


Agora, cada um que trate de assistir o que está afim e vamos circulando que, no site se Elon Musk, pauta já rendeu demais e logo, logo, terá passado do ponto, se é que já não passou.


Até a próxima controvérsia!

 

271 visualizações0 comentário

Últimos textos

bottom of page