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"Grande Sertão" é uma mistura de potenciais interessantes, mas que azedam juntos

Atualizado: 6 de jun.

Novo filme de Guel Arraes decepciona tanto como adaptação, quanto como obra cinematográfica


[O texto a seguir pode conter spoilers]


Foi animador quando saiu a notícia de que Guel Arraes, o renomado cineasta pernambucano responsável por filmes icônicos do cinema nacional (e mundial) como O Auto da Compadecida (2000) e Lisbela e o Prisioneiro (2003), iria adaptar mais uma obra literária, depois de anos longe da direção nos cinemas.


A escolha ousada surpreendeu: o livro a ser levado para as telonas seria o clássico Grande Sertão: Veredas, o romance modernista escrito por João Guimarães Rosa que foi publicado pela primeira vez em 1956.


A linguagem experimental do livro é, até hoje, difícil de entender para alguns leitores, afastando parte das pessoas, mesmo tendo uma qualidade absurda e sendo uma das maiores obras já feitas na história da literatura. Agora, imagine conseguir traduzir ela para o cinema e agradar tanto quem já leu o livro original quanto quem ainda não leu? Missão difícil. E, infelizmente, a direção de Guel Arraes e o roteiro do próprio ao lado de Jorge Furtado (O Homem Que Copiava; Saneamento Básico, o Filme) não conseguiu cumpri-la em quase nenhum sentido, resultando num longa que provavelmente vai desagradar pessoas de ambos os grupos citados.


Grande Sertão, que estreia nesta quinta-feira (6) nos cinemas, adapta a clássica história da década de 50 para uma realidade urbana num futuro distópico, transformando o sertão rural na periferia de uma grande metrópole. A localização de onde fica o Grande Sertão, como é chamada a comunidade do filme, não é explícita, deixando uma sensação de que pode ser qualquer periferia urbana brasileira (porém, na minha percepção de moradora do Recife, em Pernambuco, parece muito uma realidade do Sudeste, mais especificamente carioca). Provavelmente, a decisão de não deixar clara essa localização foi justamente para gerar esse sentimento de que pode se aplicar a diversos lugares, numa tentativa de gerar identificação do público com a história.


No entanto, é exatamente aqui que mora um dos maiores problemas do longa: é difícil se conectar e se identificar com a história e com os personagens. As causas para isso são diversas. Uma saga que deveria ser empolgante de assistir acaba se tornando chata, entendiante, a um ponto que, depois de meia hora de filme, parece que já se passaram três.


Assim como no livro original, existe um narrador contando os acontecimentos, Riobaldo, interpretado por Caio Blat. Ele lembra, com nostalgia e melancolia, de como entrou e viveu por bastante tempo no bando (ou milícia, neste caso) de Joca Ramiro, vivido por Rodrigo Lombardi. Na época em que Riobaldo se juntou ao grupo, a comunidade do Grande Sertão passava por um período de extrema violência, com os embates entre os traficantes e os policiais liderados por Zé Bebelo (Luis Miranda).


A porta de entrada de Riobaldo para o grupo é um reencontro inusitado com Diadorim (Luisa Arraes), um amigo de infância que faz parte da milícia de Joca Ramiro. Riobaldo, que guarda uma paixão secreta pelo amigo, abandona a vida de professor porque quer combater a ala policial corrupta. Porém, dá de cara com Hermógenes (Eduardo Sterblitch), que está envolvido na corrupção e é um bandido traiçoeiro, arrogante e cruel.


No filme, toda essa história é contada, propositalmente, de forma teatral. Guel Arraes decidiu levar o clássico para o cinema após o espetáculo de Bia Lessa, de 2017, baseado no mesmo livro. Porém, mesmo com o histórico teatral cinematográfico do diretor - como ele fez em Auto da Compadecida -, o artifício não funciona aqui.


Os exageros que acontecem em peças de teatro, tanto em atuações quanto em outros elementos, como figurino, maquiagem e cenário, não funcionam bem no cinema. Existe uma razão para que a atuação de teatro seja diferente da cinematográfica. A manobra de usar um estilo teatral no cinema pode gerar um resultado interessante, como se reflete em algumas (poucas) boas cenas do filme e até em outros exemplos do próprio diretor, mas não é isso que acontece no produto final aqui.


Ao invés de despertar interesse na história e te envolver, Grande Sertão soa caricatíssimo em diversos momentos por conta dessa teatralidade mal executada e mal aplicada. Luísa Arraes, dirigida aqui pelo seu pai pela primeira vez, não consegue convencer em nenhum momento como Diadorim, tanto nos trejeitos, quanto na aparência, muito menos nas complexidades que o personagem exige. É uma personagem que chega a irritar quem está assistindo.


Inclusive, a tentativa de colocar uma pauta trans/não-binária em Diadorim, provavelmente para atualizar a história, é um tiro que sai pela culatra. Parece que, a qualquer momento, uma transfobia vai ser cometida (isso se um certo take focado numa certa genitália não for problemático o suficiente). Para quem não conhece a história, no livro de Guimarães Rosa, Diadorim é uma pessoa que nasceu mulher, mas que, para poder se juntar ao bando de Joca Ramiro, se passa por homem. Um pouco parecido com a princesa Mulan, que precisa se fingir de soldado para conseguir entrar no exército. No filme, isso também acontece, mas o desenvolvimento de Diadorim se dá de uma forma diferente - que poderia ter dado muito certo, mas não dá, assim como quase tudo que compõe o filme.


As atuações são alguns dos maiores problemas de Grande Sertão. Caio Blat, em sua narração, tenta forçar uma fala cantada como um cordel, mas o seu sotaque não consegue transmitir a mensagem como um sotaque do Nordeste conseguiria. O texto fica excessivamente caricato e isso atrapalha o longa, já que a narração está presente durante toda sua duração.


Rodrigo Lombardi está diferente e pode ser que agrade a algumas pessoas por conseguir fazer uma atuação levemente mais sóbria que os demais, mas, infelizmente, também entra no time das caricatices. Todos entram, na verdade, mas alguns conseguem se aproveitar disso: Eduardo Sterblitch (que atua com o corpo, sempre absurdo!) e Luis Miranda parecem ter entendido a proposta raiz de Guel melhor do que os outros, assim como a novata Luellen de Castro, que interpreta Nhorinhá (se vocês soubessem o quanto foi difícil entender que os personagens estavam falando este nome... alguém paga uma aula de dicção para o elenco ou melhora a captação de som, urgentemente). Porém, Luellen, uma das únicas mulheres negras presentes no filme, é também a mais sexualizada dele, o que te coloca para refletir, mais uma vez, que papel a mulher preta ainda empenha no nosso cinema.


Seria quase criminoso não elogiar a excelente Mariana Nunes, que, nos primeiros minutos, entrega uma cena tão bem feita que te faz pensar que o restante de Grande Sertão vai se manter em alto nível. Infelizmente, uma falsa esperança, que é massacrada nas longas e maçantes horas seguintes.


A direção cinematográfica de Guel, que estava fora de prática desde 2011 quando o cineasta fez O Bem-Amado, peca em vários pontos. Para a tristeza de quem gosta de seus filmes antigos, aqui, o conjunto não causa impacto algum. Os momentos mais marcantes da história de Guimarães Rosa são traduzidos para as telas de forma que você não sente nada assistindo.


As cenas de confronto, que formam boa parte do filme, são filmadas de um jeito que não te envolve, o que só piora quando isso é somado às péssimas coreografias de luta. Uma cena que mostra um dos maiores embates, com uma guerra literal acontecendo na frente das câmeras, é, com certeza, uma das piores cenas de guerra do cinema - com a culpa da direção e coreografias sendo compartilhada com a dupla dinâmica de humor Caio Blat e Luisa Arraes.


As únicas partes que merecem mérito de verdade nas sequências filmadas são as que vão para a fotografia, assinada por Gustavo Hadba, que coloca um pouco de originalidade. Porém, o filme inteiro soa falso, com quase zero naturalidade, querendo parecer épico o tempo todo - mas nunca conseguindo.


O roteiro de Guel e Jorge tenta seguir fielmente a obra original, tendo trechos do livro colocados de forma completa nas falas dos personagens (alô, Romeu e Julieta de Baz Luhrmann). Mas não fica legal. O texto de 1956 não funciona com a tentativa de modernização da história. Por sinal, a culpa de muitas atuações terem soado tão ruins está exatamente nisso. É difícil convencer o público na base do seu estudo como ator quando suas falas são quase sempre péssimas.


A direção de arte, feita por Valdy Lopes Ferreira, também tinha potencial, mas, no fim, dá uma estética meio "série nacional Netflix distópica" no pior sentido possível da expressão e não casa bem com o restante da obra. Outra caricatura da periferia.


Visto de uma forma geral, é como se Grande Sertão fosse um grande conjunto de elementos que, separados, funcionam, mas, quando montados juntos, viram uma grande bagunça que não convence, não diverte, não emociona, não instiga e não consegue entreter nem como um polêmico "ruim-bom". Uma pena, já que tudo poderia ser diferente se não fossem as péssimas escolhas de quem fez o filme. O que nos resta é esperar que Guimarães Rosa não esteja se revirando no túmulo - ele merece um descanso tranquilo.


Veredito: 0,5/5

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