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Foto do escritorThallys Rodrigo

Identidade(s) secreta(s): Spider-Gwen, headcanon e a representação trans na mídia

Atualizado: 11 de ago. de 2023


Era uma vez uma garota com um segredo. Havia uma parte de si que ela mantinha escondida de todo o mundo, incluindo de seu pai, uma das pessoas que mais amava. Esse "viver pela metade" a tornava solitária, por não encontrar no seu convívio quem entendesse de verdade o que ela estava passando. Um dia, seu lado "secreto" é descoberto, e ela tem que sofrer as represálias do mundo, especialmente de quem chamava de família.


Esse é o ponto de partida da história de Gwen Stacy, a Spider-Gwen, em 'Homem-Aranha Através do Aranhaverso', novo filme da aclamada franquia de animação, que estreou neste mês de junho, e se refere à luta de Gwen para conciliar seu lado "civil" e sua identidade secreta como super-heroína. Porém, a descrição poderia ser muito bem a história de vida de uma garota LGBTQIA+ que mora ao seu lado.


É isso que argumentam fãs do mundo todo desde a estreia do filme, reunindo esse e outros indícios para afirmar aquilo que não é explicitamente afirmado, mas é sentido por muitos: Gwen Stacy pode ser uma mulher trans nos filmes. Além da temática do seu arco narrativo, são apontados como pistas um bottom com a bandeira trans, utilizado pelo pai da personagem, e a presença constante das cores da bandeira trans (azul claro, rosa e branco) no universo em que a personagem vive.


A repercussão do filme e da visão do público sobre Gwen pode levar a percepções importantes sobre representatividade e o forte vínculo entre uma história, seus personagens e seus consumidores. Afinal, como isso se constrói? Se ver representado implicitamente é suficiente?


Headcanon: o espectador e seu espelho


Como o fato de Gwen ser transgênero não foi algo explicitamente representado no longa nem confirmado pela equipe criativa até o momento, trata-se de um headcanon.


Mas o que seria isso? Bom, "canon", ou "cânone" é tudo aquilo que é reconhecido oficialmente como parte válida e real de uma história ficcional. Por exemplo, é canon (ou canônico) que Luke e Leia são irmãos em Star Wars, e é canon que Simon de 'Com Amor, Simon' é gay. Tudo aquilo que não é diretamente representado ou confirmado por fontes oficiais está fora do canon/cânone, incluindo fanfics, teorias e especulações.


É aí que entra o headcanon. Trata-se de quando, mesmo quando um personagem não é oficialmente apresentado com determinada característica, para alguns consumidores da obra e sua experiência pessoal faz sentido identificá-lo como tendo essa característica. As formas mais comuns de headcanon consistem em identificar determinados personagens como membros da comunidade LGBTQIAP+ ou como pessoas neuroatípicas (autistas, TDAHs, etc).



Além da já citada Gwen, existem alguns exemplos de personagens cujo headcanon como pessoa transgênero já se popularizou. É o caso, por exemplo, de Mirian, amiga da protagonista Mei Lee, no filme 'Red: Crescer É uma Fera', e Dipper, da série animada 'Gravity Falls'. No caso de Dipper, o personagem é identificado como homem trans (ou como transmasculino) por trazer experiências comuns de pessoas com essas características, como o uso de camisa mesmo dentro da piscina, e uma relação muito particular com a expressão da masculinidade.


Alex Hirsch, criador de 'Gravity Falls', não confirma que Dipper é trans, mas apoia a criação de headcanons por parte do público, de acordo com as vivências de cada um. "Se alguém quer saber o que eu considero canon, é fácil: o que acontece na série (...) Não vou condenar, confirmar ou destruir qualquer headcanon. Não é meu lugar. Sua ideia pertence a você", afirma Hirsch.



O headcanon vai muito além dos personagens citados, e é bastante comum no que se refere a animações. É o caso de Jessie e James, do anime 'Pokémon', Howl, de 'O Castelo Animado', e até mesmo de Hércules, da animação 'Hércules', produzida pela Disney. Todos esses personagens são identificados como transgênero por membros da comunidade, conforme aponta matéria da Mashable.


Além disso, os headcanons estão longe de se limitar a produções animadas. Um dos exemplos mais populares recentemente é a percepção de Gregory Eddie, personagem interpretado por Tyler James Williams na sitcom norte-americana 'Abbott Elementary', como uma pessoa autista.



Como cada experiência e vivência é particular, mesmo tratando de pessoas que possuam características em comum, é possível também encontrar divergências dentro de uma mesma comunidade sobre um headcanon. Foi o caso da série 'Wandinha', que no fim de 2022, gerou um grande debate entre pessoas neuroatípicas sobre a percepção da protagonista como autista por parte desse grupo. Houve quem argumentasse que esse headcanon reforça estereótipos negativos sobre os autistas, e também houve pessoas autistas que se identificaram com as ações e comportamento da personagem.


Um Aranhaverso de possibilidades


Diante de um assunto que pode trazer tantas interpretações, é natural que haja diferentes takes sobre a representação de Gwen em 'Além do Aranhaverso', mesmo entre membros da comunidade em questão. A estudante de cinema e cineasta Victoria Zenith, 23, não se identifica particularmente com a personagem em sua vivência atual, mas consegue ler Gwen como uma pessoa transgênero por causa das temáticas abordadas na história da personagem.


"A Spider-Gwen especificamente tem esses temas mais fortes, até na forma como, depois que o pai dela descobre [sua identidade secreta], ela é "expulsa" de casa e vai morar com pessoas que apoiam ela e como grande parte do conflito interno dela é sobre ter medo de ter que voltar pra sua dimensão, sem ter um lugar lá", destaca Victoria, demonstrando um paralelo claro da personagem com a vivência LGBTQIAP+.

A entrevistada vai além e aponta como o filme como um todo possui um subtexto LGBTQIAP+, e como há uma equivalência temática muito forte entre se declarar um super-herói e se declarar membro da comunidade, incluindo em relação ao protagonista Miles Morales: "A forma como ser aranha é tratado como um segredo, que é guardado não para proteger e sim por medo da não aceitação pelos dois personagens principais [Miles e Gwen] deixa isso muito claro para mim."


Além disso, Victoria também destaca uma "rima" de significados entre o coletivo de Homens-Aranha do filme e ao grupo social queer. "Falas referentes ao 'spiderverso' deixam ele muito próximo à comunidade LGBT, como a Gwen encontra abrigo dentro desse lugar e como o Miles quando está 'saindo do armário' para sua mãe os coloca como pessoas iguais a ele, mas se vendo desiludido com a comunidade, fala que eles não eram como esperava", demonstra a cineasta.


Ela chama atenção ainda para o fato de que o fato de Gwen ser membro da comunidade LGBTQIAP+ não ser explicitado no filme provavelmente não é um caso de queerbaiting - que é a sugestão de que determinado(s) personagem(ns) de uma obra são queer apenas para gerar engajamento de membros desse grupo social, sem qualquer intenção de representá-los de fato como parte da sigla. A razão principal seria o conservadorismo social e a falta de apoio do estúdio, especialmente em relação a um filme com amplo alcance midiático como o do 'Aranhaverso'.



Algo semelhante pode ser enxergado, por exemplo, em outro filme da Sony Pictures, 'A Família Mitchell e a Rebelião das Máquinas'. No longa, a personagem Katie só é identificada como sáfica (uma mulher que se relacionada com outras mulheres) de forma discreta, ainda que por fim haja confirmação.


Também membro da comunidade trans, Caio Souto, 24, estudante de museologia, enxerga a possibilidade de Gwen ser transgênero, avaliando a teoria/headcanon como positiva, por representar a ocupação de espaços importantes com a presença de alguém com essas características. Há uma forte identificação por parte dele e de outras pessoas trans com os conflitos da personagem. Identificação essa que continuaria, mesmo se fosse confirmado que Gwen, na verdade, é uma mulher cis.


"Eu nunca tinha pensado nessa possibilidade, dessa narrativa de trazer uma personagem ou um personagem trans porque a gente bebe tanto dessa fonte heteronormativa, tão estrutural, que a gente não pensa - principalmente nós mesmos, dentro da comunidade - a gente acha que não temos direito a esses espaços, que não há essa possibilidade", destaca Caio.


Além disso, Caio também chama a atenção para outras possibilidades e teorias apontadas, como a de que Gwen não é uma pessoa transgênero, mas que as referências à bandeira trans - incluindo a presença de uma bandeira com inscrição "proteja crianças trans" no quarto da personagem - sejam uma forma de demonstrar apoio às pessoas com que seja identificação, em meio aos recentes ataques sociais e políticos massivos a essa minoria social.


O estudante aponta que costuma identificar determinados personagens como membros da sigla LGBTQIAP+ ao notar semelhanças entre o que vivem e o que está na tela, mesmo que seja explicitado que os personagens em questão não são queer, formando um "laço de pertencimento".


"Mesmo que talvez não tenha nada explícito, mas [algo] que a gente vê, se identifica e fala 'olha a nossa vivência, coincide muito com isso', então eu acho que aquele personagem é [LGBT] sabe? Mesmo que ele não seja, mas a gente se sente identificado e não tem como a gente negar isso", declara Caio.

Porém, o entrevistado também destaca que, mesmo que seja válido se identificar com personagens que não são explicitamente queer, a demonstração aberta da sexualidade e/ou identidade de gênero de pessoas queer em obras de ficção é uma importante "movimentação sociopolítica", para que os conflitos e dificuldades enfrentados pelas pessoas da comunidade sejam melhor entendidos por pessoas de fora dela.


"Quando a indústria cinematográfica traz abertamente essa pauta, é um ponto para todas as pessoas que estão assistindo pararem e refletirem sobre, porque ser uma pessoa LGBT é uma interseccionalidade muito grande. São diversos pontos dentro de uma sociedade que talvez não sejam enxergados se a gente não pontuar e enfatizar que aquela personagem é uma personagem LGBT", afirma Caio.


"Quando a gente dá essa ênfase da pessoa pautada dentro da comunidade LGBT, damos possibilidade de margem para as outras pessoas terem uma interpretação melhor e combater a LGBTfobia, compreender melhor o que é esse espaço queer que a gente está inserido. Eu acredito que quando trazemos abertamente isso, trabalhamos melhor", completa.


Uma longa teia a percorrer


Diante das falas e dos tantos headcanons discutidos online, o certo é que a pluralidade dentro de comunidades minoritárias é um fato, e pede uma representação que seja mais "ampla e com mais variedade de personas", como destaca Victoria, que não se sente representada por personagens trans em obras atuais de modo geral. "É impossível que um único personagem represente a totalidade da amplitude de diversidade de um grupo tão complexo", aponta. A presença de mais personagens trans (e LGBTQIAP+ de modo geral) certamente poderia gerar pluralidade representativa e contribuir para que mais pessoas se identifiquem no que consomem.


Além disso, o fenômeno da identificação, como já destacado, vai muito além de se ver em um personagem que explicitamente faz parte do mesmo grupo social. Para a estudante de cinema, se sentir representada tem tudo a ver com enxergar seus "medos e anseios" ilustrados, mesmo que eles tenham a ver com sua identidade de gênero e o personagem em questão não compartilhe da mesma identificação.


"Anos atrás escrevi um texto sobre como, por exemplo, um filme como 'O Homem Elefante' de David Lynch representava para mim a disforia de imagem de maneira tão bonita e como isso se traduziria para a disforia de gênero que eu sentia. Vejo que no caso a forma como a Gwen é expulsa de sua casa, a dor de não ser aceita pelo próprio pai e o refúgio que ela encontra em outras pessoas que são como ela pode ser um espelho para muitas meninas trans, mas já passou minha idade de ter esses anseios e medos", afirma a entrevistada.



Além disso, Caio também destaca que a representação que é feita de forma explícita também precisa melhorar. Ele cita que se identifica com diversos detalhes da trajetória do personagem Nico, da série 'Elite', como a ocorrência de episódios de transfobia no ambiente escolar e experiências de vida. Porém, a série também peca em outros pontos. "Eu detesto o estereótipo de ele possuir um relacionamento com uma mulher que ignora e negligencia e o fato dele ser um homem trans", aponta Caio.


É certo que a representação de pessoas transgênero e de outras minorias sociais ainda tem muito a melhorar. Paralelamente a isso, pessoas seguem assistindo e se identificando com os mais diversos personagens ao verem seus conflitos e lutas representadas, seja de forma direta ou indireta. Ainda que haja um longo caminho a ser percorrido, Gwens, Dippers, Nicos e muitos outros personagens pavimentam o caminho, gerando debates dentro das comunidades minoritárias e também na sociedade em geral. Que venham muito mais. Afinal, o que não faltam são histórias de todas as cores para contar.

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