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“Incompatível com a Vida” ressignifica luto gestacional e desfaz lugares-comuns sobre o aborto

Partindo de sua própria vivência, Eliza Capai comunica as singularidades de mulheres que enfrentaram a perda gestacional no Brasil


por Heloise Barreiros, especial para a TAG Revista

“Incompatível com a Vida” não é essencialmente um filme sobre aborto, mas sobre o direito de fazer escolhas. No documentário, a diretora Eliza Capai transforma o próprio luto gestacional em instrumento para acessar as dores de mulheres plurais com experiências que ressoam a sua própria, amarrando uma obra íntima e política que cria um canal potente para complexificar o cenário de interrupção da gravidez e ampliar o debate sobre o tema no Brasil.


Registros pessoais da gravidez da diretora durante a pandemia da Covid-19 iniciam o filme, até que ela recebe o diagnóstico de que o filho desejado é incompatível com a vida - termo médico usado para dizer que a criança não sobreviveria fora do útero ou morreria ainda na gestação.


Na época, Eliza morava em Portugal e optou por interromper a gravidez, prática legal no país desde 2007: “Não queria colocar no mundo um filho só para ele conhecer o sofrimento, sem nenhuma chance de sentir felicidade, amor ou alegria”. Com a interrupção legalizada, o país europeu erradicou a morte de mulheres por aborto, que já chegou a ser a terceira maior causa de mortalidade entre portuguesas em décadas anteriores.


Tomada por luto e solidão, a diretora nos conta que também sentiu raiva e injustiça por saber que, no Brasil, isso não seria uma opção para ela e tantas outras mulheres. É nesse momento que o registro pessoal vira público; que uma dor tão íntima é acionada de forma a transmitir empatia, informação e ensaiar uma possível cura coletiva.


Mobilizada por esses sentimentos, Eliza conta como virou a câmera para si:

“Eu não conseguia me imaginar registrando outra mulher naquele momento de tanta solidão e tristeza. Como documentarista, me senti em uma obrigação ética de me colocar enquanto corpo para essa dor que é de tantas mulheres”.

Jornalista e documentarista, Capai assina a direção e roteiro de outras obras relacionadas a ativismos e gênero, como Espero Tua (Re)volta (2019) e Tão Longe É Aqui (2013). Mas é na obra mais recente que a diretora entrega toda sua presença e subjetividade, revirando o próprio interior ao descortinar fragmentos íntimos do luto, seja de forma literal - como nas cenas em hospitais - ou por meio das metáforas visuais da água e oceano, sinônimos de incerteza e solidão; mas também de passagem.


Até agora, o filme foi ganhador do festival "Tudo É Verdade” e está qualificado para o Oscar de 2024.


Todo aborto é uma incompatibilidade com a vida de alguém


Para acessar realidades distintas, o longa traz o relato de seis personagens de regiões diferentes do Brasil. E volto à frase que inicia esse texto: o filme não é sobre aborto, é sobre o direito de escolha. Metade das mulheres entrevistadas interrompeu a gravidez, e a outra metade optou por não interromper.



Os relatos singulares trabalhados de forma cuidadosa dissolvem diversos estereótipos sobre o aborto, arrancando a mulher do lugar-comum de má ou insensível e mostrando que a face da gravidez interrompida não é só uma, mas várias. E que essa escolha nunca vai ser fácil.


No filme, há uma cena muito forte de Eliza segurando seu bebê nas mãos após realizar o procedimento de interrupção da gravidez - o espelhamento de uma cena que já vimos antes em campanha contra o aborto. Quem tem o direito de segurar o feto nas mãos? Essa é uma das disputas simbólicas que o documentário retrata.


Os casos escolhidos tratam a incompatibilidade com a vida do feto, mas o filme não deixa passar que no Brasil, todo aborto é incompatível com a vida de alguém - seja da mulher ou do feto.


Quando falta registro e sobra violência


O registro é um locus de memória. Ao falarmos de um tema tão basilar quanto saúde pública, é nos documentos formais que nos sustentamos.


"Incompatível com a Vida" envolve inúmeras pesquisas; criou-se uma rede com profissionais de saúde e mulheres de todo Brasil a fim de encontrar vivências diversas da gestação de fetos com má formação. Contudo, enquanto assistia ao filme não pude deixar de perceber que a maioria das personagens eram mulheres cis e brancas. Uma inconsistência quando os dados apontam que mulheres negras têm 46% mais chances de fazer um aborto no Brasil (Pesquisa Nacional de Aborto) e estão ainda mais expostas aos riscos de morte por método inseguros.


Ouvindo a fala da diretora após a exibição do longa, ficou nítido que ferida é mais profunda e expõe mais uma camada da política cruel do aborto no Brasil - o racismo. No processo de investigação, surge a dificuldade em localizar mulheres pretas e pardas que gestaram fetos incompatíveis com a vida. Essas mulheres existem, mas onde estão? Boa parte delas não chegam sequer a ter um pré-natal adequado, não acessam um ultrassom de qualidade que permita esse diagnóstico com antecedência. Nesses casos, explica Eliza, elas têm uma perda gestacional espontânea ou dão à luz a um bebê que não vai sobreviver.


À mulher negra, foi negado o direito de escolher e de se preparar para o luto.


Cinema como ferramenta de cura


No Recife, a pré-estreia do filme “Incompatível com a Vida” aconteceu no Cinema do Porto, no Bairro do Recife, no sábado dia 17 de novembro, seguida por um diálogo com o tema “Práticas hospitalares na interrupção da gravidez”.


Quando o evento terminou, já depois das 22h e com o cinema prestes a fechar, nem a ameaça de ter que descer 16 andares de escada impediu que dezenas de mulheres se aproximassem de Eliza e pacientemente esperassem sua vez de trocar abraços, lágrimas, sorrisos e palavras de afeto e gratidão.


Fiquei observando e refletindo sobre esse duplo movimento de cura que o filme proporcionou e se fez muito nítido diante de mim; cada mulher em estágios distintos de luto trocando vivências rumo a uma restauração possível, juntas.


O filme está disponível para que qualquer pessoa promova uma sessão independente no espaço que quiser, em casa, no cinema popular, na escola, no trabalho. Basta preencher esse formulário e aguardar o contato.


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