KNOTFEST: Um dos maiores eventos de heavy metal deixa um sabor agridoce no Brasil
Depois de rodar em vários continentes, o festival chega em solo brasileiro, trazendo um line-up de peso, mas deixa a desejar na produção
Por Letícia Craveiro, em especial para TAG Revista
A banda de Des Moines volta ao país após 2 anos, reunindo roqueiros de todo Brasil. Imagem/Reprodução: @flashbang via @30e
O rock emergiu na década de 1950 nos Estados Unidos e trouxe consigo uma energia e uma estética rebelde que ressoava especialmente entre os jovens da época. Mas, não parou por aí! A partir dos grandes sucessos, o gênero evoluiu para outras vertentes como o rock and roll, o hard rock e o punk. Esse movimento não se limitava apenas à música, mas também se tornava um protesto contra a conformidade, se transformando em um fenômeno cultural que desafiava as normas sociais e promovia uma nova forma de expressão através de dezenas de gerações, envolvendo tanto homens quanto mulheres.
Por dois dias consecutivos o Knotfest, que é idealizado pela banda norte-americana de heavy metal, Slipknot, fez o Allianz Parque estremecer nos dias 19 e 20 de outubro. Passando por países como: Japão, Estados Unidos, Austrália, México e Colômbia, o Knotfest encantou a todos com um line-up recheado de nomes conhecidos e de peso, como a banda norte-americana, Bad Omens, que vem arrastando multidões.
O festival estreou no Brasil em 2022, com os ingressos esgotados na primeira edição, o que também era esperado dessa vez. Mas, apesar de tudo, em 2024 o evento foi diferente para os brasileiros: O Slipknot recentemente trocou mais uma vez sua formação, substituindo o ex-baterista, Jay Weinberg, pelo brasileiro, Eloy Casagrande. O que agradou bastante os roqueiros nacionais, e criou-se uma grande expectativa para ver o conterrâneo assumindo ao vivo a bateria da banda, que é tida como referência há anos pelo legado do falecido baterista, Joey Jordison.
Com shows contagiantes, o evento agradou várias vertentes do rock ‘n roll, reunindo em dois dias, roqueiros de todas as idades dispostos a celebrar esse movimento que está, pouco a pouco, conquistando novamente seu espaço no mainstream da música nacional e internacional. E claro, calando a todos que já davam o estilo rebelde e irreverente, como morto ou um movimento que não teria mais força o suficiente para lotar um estádio. Bom, os locais estão lotando, mas a que custo?
O Knotfest aconteceu, mas a organização não foi como o esperado. Desde o início, com as primeiras divulgações, o público já estava com um pé atrás. Inclusive, ele começou a ser chamado de “festival fantasma” e, para alguns, nem iria acontecer. Organizado pela produtora 30e, a mesma que chefia tantos outros eventos de grande porte, incluindo I Wanna Be Tour, que ganhou fama nacional por ser a principal responsável pela morte de um jovem durante a edição realizada no Rio de Janeiro, no início deste ano.
O line-up demorou meses para sair, mesmo tendo os ingressos já dispostos para venda, o que gerou estranhamento do público. Apesar disso, os artistas confirmados agradou a maioria. Porém, a organização do evento fez jus ao que a empresa já vem entregando há um tempo. A demora para revelar as atrações em festivais, a má gestão, organização, falta de infraestrutura no local, que fez outros artistas como: Ludmilla e Ivete Sangalo, cancelarem suas turnês de aniversário por motivo de segurança, somam em tantas outras críticas que os consumidores vêm relatando nas redes sociais, inclusive entrando com processos judiciais. Atualmente a 30e tem uma dívida superior a R$ 2,6 milhões em multas trabalhistas, além de outros processos judiciais envolvendo direito do consumidor.
A reputação da 30e nas redes sociais vem se tornando cada vez mais negativa. Imagem/Reprodução: Twitter
No X (antigo Twitter), um usuário especula um suposto cancelamento da nova edição do I Wanna Be Tour 2025, que dessa vez vai passar apenas por São Paulo e Curitiba - lembrando que na primeira edição do festival estados como: Brasília, Recife e Rio de Janeiro, também receberam os shows repletos de nostalgia e gafes por parte da empresa.
"Esqueçam esse festival. A 30e (produtora do IWBT) é quem está trazendo The Offspring, Rise Agaisnt, Sublime e demais bandas para o Punk is Coming (com CINCO datas), para pouquíssimos dias depois do previsto para o IWBT. Preparem o reembolso e estresse com a taxa administrativa (...) Qual a chance dessa produtora, além de gerar concorrência para ela mesma, não cancelar o primeiro pela gigantesca questão de logística envolvida?"
A cultura rock ‘n roll misturada com violência e difundida como “normal”
Apesar de ser uma noite feliz e de realizações, o festival também frustrou muitos com a má organização, funcionários despreparados e comportamentos abusivos de outros fãs. Algumas pessoas relataram, em publicações no X, que viveram situações muito desconfortáveis, como agressões, assédio e até assaltos.
Bianca Raspes, uma estudante de 21 anos, que marcou presença no Knotfest 2022 e também esteve presente no domingo (20), relata que desde a primeira edição, a produção deixa a desejar, mostrando que o valor pago no ingresso passa longe do conforto. Uma das maiores reclamações tem sido sobre a área VIP, que ocupou praticamente toda a frente da pista comum, para acomodar poucas pessoas, e consequentemente, espremendo as demais em suas laterais, o que causou grande desconforto e perigo.
“Durante todo o momento que estive na frente do palco, fui esmagada de propósito pelas pessoas ao redor. Eles estavam batendo e empurrando principalmente mulheres. Fui tão esmagada e empurrada, que fiquei sem ar e sem conseguir me mexer. Precisei ser levada pelos bombeiros ao ambulatório com 3h de evento porque não conseguia respirar e minha pressão estava perigosamente alta”, completou Bianca, que garantiu nunca mais pisar no festival após essa experiência.
Uma das maiores reclamações foi sobre a organização da área VIP. Imagem/Reprodução: Twitter
Outro ponto levantado, foi sobre os funcionários contratados para a segurança do evento, que estavam fazendo pouco caso com as reclamações. “Haviam muitas pessoas violentas e extremamente alteradas na plateia. Diversos casos de agressão, assédio, humilhação e preconceito que passaram impunes, pois os seguranças não só faziam nada, como também debocharam da situação, dizendo que a gente que escolheu ir em um show de rock, então precisávamos aguentar”, conta Bianca.
A ideia que o rock anda lado a lado com a violência, ainda é um pensamento bastante comum e, talvez, o algoz do estilo que é sempre tão duramente criticado e evitado há anos. Com seus mosh pit (a famosa roda punk), os shows de metal sempre geram ansiedade em quem nunca visitou. Além de servir como "porta aberta" para ações maldosas de pessoas mal intencionadas, que usam do momento para agirem de forma violenta, amparados no estereótipo “show de rock é assim mesmo”.
O Brasil é tido como referência quando o assunto é energia em shows de artistas internacionais, mas atitudes como essas vividas durante o Knotfest podem manchar a reputação do país e até mesmo, passar uma imagem errada do estilo musical para outras pessoas que se interessam, mas tem receio quanto a frequentar esses locais.
Entre comentários relatando as situações insalubres vividas no festival, há também quem defenda tais ações, pautados no estereótipo da violência gratuita implícita em shows de heavy metal, ignorando o fato que não é só o mosh pit que machucou as pessoas, mas também o assédio e a falta de respeito. Uma das fãs relatou ter sido urinada por um homem no meio da multidão, não tendo nenhuma justiça feita pelos seguranças locais. Mas tudo bem, faz parte do rock.
Discussões sobre “como se portar em um show de rock” vem ganhando mais espaço após o festival. Imagem: Twitter
"Se você for mulher e quiser ir em um festival assim, não fique no meio da plateia. Prefira grade frontal e lateral, prefira ficar próximo de pontos de fuga ou onde os bombeiros te enxerguem. Se não tiver resistência física, vá para as cadeiras”, aconselha Bianca, a quem quiser começar a frequentar festivais como o Knotfest. “Vá preparado para se defender se for necessário”, completa.
A presença de figuras femininas no cenário do rock é frequentemente subestimada, e a imagem é muitas vezes distorcida por estereótipos que perpetuam a discriminação de gênero. No X, o tweet de um usuário viralizou: “O fandom de Bad Omens e Baby Metal descobrindo que o Knotfest não é show da Taylor Swift nem de Kpop”, após os relatos feitos por mulheres que estiveram presentes no festival. Em um outro post, um perfil respondeu:
"Eu frequento show de metal desde 2013 e eu NUNCA, eu repito NUNCA vi nada parecido ao que rolou ontem. É irreal ver o relato de varias mulheres aqui e ter uma rapaziada achando normal e que por ser show de metal tá liberado tudo. Essa raça de metaleiro truezao tem que acabar"
Denúncias de assédio têm sido as mais comuns quando se trata do Knotfest. Imagem: Twitter
O descaso com as bandas nacionais
Não foi só o público que saiu insatisfeito com o festival. Em 40 anos de carreira, a banda brasileira Ratos de Porão se apresentou pela primeira vez em um estádio. O espetáculo tinha tudo para ser memorável, mas foi marcado pela frustração por conta da falta de iluminação na hora da apresentação. João Gordo, integrante da banda e considerado um dos pioneiros do punk rock no país, cobrou os organizadores do festival em uma publicação no Instagram. Em um dos trechos, ele destaca:
"Pedimos desculpas para nossos fãs que estavam lá, que não eram poucos. Agora quem deve desculpas a quem pagou mó grana de ingresso é a produtora do fest... Infelizmente tomamos no c* para o deleite da reaçada, espremidos entre o Slipknot e o Mudvayne corajosamente mandando nosso recado bruto de sempre".
Em uma publicação feita na página oficial do festival, alguns usuários mostraram apoio a banda, mas também reclamaram diante da falta de estrutura. "Show f*da demais! Teria sido melhor se tivesse luz desde o início, metade do show no escuro foi uma falta de respeito do evento com a banda", comentou um seguidor.
A banda ‘Ratos no Porão’ se apresenta sem iluminação durante o Knotfest. Imagem: Reprodução/Internet
“Não é nem 5% do sofrimento de um Rock in Rio em dia de metal”
Nascido na década de 1980, o Rock in Rio foi um marco na história da música e na cultura popular brasileira. O festival trouxe para o país grandes ícones do rock, como Queen, AC/DC, Iron Maiden e Ozzy Osbourne. Idealizado pelo empresário Roberto Medina, o evento era uma luz no fim do túnel para os roqueiros e fãs de heavy metal que desejavam ver suas bandas favoritas ao vivo em festivais potentes em nível internacional.
A primeira edição, entre 11 a 20 de janeiro de 1985, aconteceu em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, em um terreno de 250 mil m². Com o sucesso do evento, não demorou muito para que o local ficasse conhecido como a "Cidade do Rock", dando uma sensação de pertencimento ao público roqueiro.
Porém, com o passar do tempo, o festival começou a se distanciar de suas raízes. A inclusão gradual de artistas de outros gêneros, como pop, música eletrônica e funk, alterou o perfil do evento, o que gerou uma ruptura significativa com o "primeiro público".
Ao longo dos anos, memes como "imagina o Rock in Rio com rock" e "sua cara quando você descobre que o Rock in Rio não tem rock" se fortaleceram na comunidade, além das comparações entre os artistas da primeira e atual geração. Diante desta ausência, o público sentiu-se orfão com o descaso das grandes produtoras deste tipo de evento.
A chegada de festivais como o Knotfest e I Wanna Be Tour, por exemplo, faz com que os fãs tenham esperança de experimentar – e até mesmo reviver – o que não se via há muito tempo em solo brasileiro, junto a bandas de rock que, até então, só se podia consumir pela internet. Mas até que ponto vale investir o seu dinheiro em um evento que visa apenas o lucro e não a experiência segura e confortável de seu público?
“Seu rock está seguro”: Foto da primeira edição do Rock in Rio, em 1985. Imagem/Reprodução: U. Dettmar/Folhapress
A banalização da violência nos shows de rock vindo da própria audiência, também é um empecilho para que festivais desse gênero floresçam com sucesso. Muitos roqueiros da velha guarda pregam que a brutalidade faz parte desse estilo e isso contribui para que a nova geração se assuste e opte por não frequentar eventos dessa temática. Ou, no pior dos casos, acabam se afastando por completo da cena do rock.
Essa evasão resulta em baixas demandas por shows de rock no Brasil e, consequentemente, menos espaço para o ritmo irreverente em grandes festivais. No meio de tantas reclamações sobre os absurdos vividos durante o Knotfest, um usuário tweetou: “Não é nem 5% do sofrimento de um Rock in Rio em dia de metal”.
Receber um festival como o Knotfest em nosso país é uma honra, no entanto, será mesmo que temos infraestrutura o suficiente para comportar sua magnitude? A 30e é uma empresa gigantesca, mas que não se coloca na linha de frente para garantir a segurança de seu público, como vimos no I Wanna Be Tour e agora podemos ver no Knotfest. Isso também faz parte do rock? Até quando?
BOM