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"Medida Provisória": a distopia que já estamos vivendo

Atualizado: 30 de mai. de 2023

por Maria Clara Trajano, especial para a TAG Revista

Emicida e Taís Araújo estão em 'Medida Provisória' | Reprodução

Lázaro Ramos já é figurinha carimbada na televisão brasileira. Entre novelas e seriados, o artista sempre se destacou como um dos principais nomes da dramaturgia e do entretenimento. Agora, ele se aventura brilhantemente na direção do seu primeiro longa-metragem, inspirado na peça teatral “Namíbia, não!” de Aldri Anunciação. “Medida Provisória” estreia no próximo dia 14 nos principais cinemas do país, após mais de um ano tendo seu lançamento boicotado. Mesmo premiado em festivais nacionais e internacionais, a Agência Nacional de Cinema (Ancine) usou da burocracia para censurar o filme e, quando se assiste, é fácil entender o porquê.



Censura ou burocracia?


Filmado em 2019, o longa deveria ter sido lançado ainda em 2020. Entretanto, os trâmites burocráticos da Agência engavetaram os recursos da produção por mais de um ano. Para um filme ser exibido ao público geral, precisa ter sua circulação aprovada pela Ancine e não faltaram solicitações para tal. Mesmo recebendo sinal verde da área técnica do órgão, a aprovação da Superintendência do Fomento foi o que atrasou tudo. A data de estreia precisou ser adiada diversas vezes.


No final de 2019, “Marighella”, que retrata a vida do guerrilheiro Carlos Marighella assassinado pela ditadura militar, também teve recursos negados pela Ancine e só estreou ano passado. Mais cedo, no mesmo ano, o presidente Jair Bolsonaro expressou sua vontade em filtrar as produções cinematográficas. “Se não puder ter filtro, nós extinguiremos a Ancine. Privatizaremos, ou extinguiremos”, disse.


Se é censura ou mera burocracia, o fato é que os dois filmes têm em comum críticas a governos autoritários e foram boicotados da mesma forma pela agência pública. Junto com falas de apoiadores do Governo Bolsonaro, repudiando os dois longas, é difícil acreditar que os embaraços para lançamento dos filmes são apenas coincidências.



O filme

Seu Jorge e Alfred Enoch em 'Medida Provisória' | Foto: Reprodução

“Medida Provisória” deveria ser uma distopia, mas muito do que é colocado já é realidade no Brasil. Num futuro próximo, o governo autoritário cria um programa para enviar, voluntariamente, brasileiros negros para a África como um ato de reparar os quase 400 anos de escravidão no país. A ordem absurda, que é retratada como uma maravilha pela propaganda estatal, obviamente tem baixa adesão, e por isso é instaurada uma medida provisória para deportar qualquer cidadão que tenha, mesmo que remotamente, características negras. Sob forte truculência, a nova lei é posta em prática e um movimento de resistência se organiza no país.


Lázaro Ramos opta, com maestria, pela comédia no primeiro ato do filme para tratar de questões estruturais tão sérias. O longa conversa muito claramente com o espectador e é fácil se deixar cativar pelos personagens e despertar empatia. Estrelado por Taís Araújo, Alfred Enoch e Seu Jorge, 'Medida Provisória' é um grito há muito entalado, que reverbera as feridas profundas deixadas pelo racismo.


A obra é completamente respeitosa que, apesar de se passar num contexto de violência, não possui cenas gráficas. O objetivo é interromper a naturalização do sofrimento de corpos pretos que se sucedem em outras produções. Toda a sensibilidade expressa no filme não se deve apenas à direção de Lázaro, mas à toda equipe em frente e por trás das câmeras. Em coletiva na pré-estreia que ocorreu no Cinema São Luiz, no Centro do Recife, o diretor ressaltou que o longa é a produção nacional com mais pessoas negras envolvidas. Nesta mesma exibição, cerca de 300 convites foram distribuídos exclusivamente para o movimento negro pernambucano.



Entretanto, algumas montagens abrem margem para uma interpretação um tanto duvidosa. Dois assassinatos, em contextos aparentemente similares, são colocados em paralelo, com cenas sincronizadas. Nesse momento, a interpretação mais clara é que o filme tenta colocar uma ideia de “racismo reverso”. Com um personagem negro sendo morto no meio dos brancos, e um branco numa situação oposta, realmente parece que seu assassinato foi por ser branco. Questionado por um espectador em debate após a exibição do filme no Recife, Lázaro explicou que o objetivo não era esse.


Enquanto o primeiro personagem morreu simplesmente por sua cor, o personagem branco trabalhou em prol da medida do governo e desistiu tarde demais. Apesar da explicação, a montagem das cenas poderia ter sido melhor pensada. Tentar colocar essa ideia de que todas as pessoas são iguais é um lugar muito perigoso para nosso contexto atual, quem sabe em um futuro mais bonito, mas no momento, não estamos todos no mesmo barco.



Além dos personagens principais, o longa conta com grandes nomes do cinema brasileiro e também do movimento negro, até nas montagens para os créditos, que são um show à parte. “Medida Provisória” é importante pelo seu enredo, pelo contexto e pela força da produção, com atuações fortes, é um filme para todo mundo assistir e expandir o debate.


 

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