"Mussum - O Filmis" reverencia o multiartista Antônio Carlos
Longa dirigido por Silvio Guindane reverencia e mostra a importância de Mussum para a cultura brasileira
Mussum está em todo lugar: na cerveja, na televisão, no cinema, no humor, no samba, na Estação Primeira de Mangueira, no teatro, na representação do negro e em qualquer lugar que tenha arte. Mas por trás do icônico personagem, existiu uma pessoa de carne, osso e muito talento: Antônio Carlos Bernardes Gomes. Para quem não conhece a história, pode se assustar com a quantidade de vezes que conseguiu romper as barreiras do preconceito de raça e classe para chegar ao estrelato.
Em ‘Mussum - O Filmis’, com direção de Silvio Guindade, o foco central é contar um pouco da história desse homem que teve uma importância gigantesca para a cultura brasileira. No filme, adaptado do livro 'Mussum Forévis: Samba, Mé e Trapalhões', de Juliano Barreto, narra os acontecimentos na vida de Antônio Carlos desde a paixão pela música, a formação do grupo Originais do Samba, a chegada na televisão e o estrelato nos Trapalhões.
Antônio Carlos é apresentado em três fases, a primeira na infância com Thawan Lucas, a segunda na juventude com Yuri Marçal e a última já adulto com Ailton Graça. Além de detalhar como funcionava a brilhante carreira do artista, o longa também explora a relação familiar dele, sobretudo com a mãe Dona Malvina (Cacau Protásio/Neusa Borges), com os amigos e no trabalho. A música também se faz presente a todo momento e isso é essencial para entendermos a importância dele para o samba.
Um personagem e mil histórias
Para já conhece a história do Antônio Carlos, pelo o que leu no livro ou assistiu no documentário “Mussum, um Filme do Cacildis”, não vai se sentir menos emocionado ao se deparar com a história. Ver detalhes que passaram despercebidos e que foram detalhadamente colocados pelo diretor demonstra que ele era um personagem cheio de vivências a serem exploradas.
Quem vai aos cinemas sem saber sobre a vida dele se surpreende desde o minuto um do filme. A forma como é construída a relação do garoto com a mãe, que tenta dar o melhor para o filho mesmo com tão pouco, emociona e nos faz questionar sobre como a estrutura social pode acabar com o sonho de tantos jovens talentosos.
O roteiro acerta em separar o homem do artista e explicar de forma didática as facetas dele, principalmente do personagem criado para entreter o público, seja no samba ou na televisão. Quem assiste percebe a diferença entre o Antônio Carlos, Mussum e Carlinhos do Reco-Reco, e o ponto em que todos convergem e dialogam.
Um dos pontos que poderia ter sido abordado é como Antônio Carlos iniciou no samba, como conheceu os Modernos do Samba e depois com os Originais do Samba. Ou como foi a relação entre ele e o Reco-Reco, instrumento que se tornou uma das grandes referências. Apesar disso, o longa mostra a importância da Estação Primeira de Mangueira para a vida do artista, principalmente pelo projeto social que foi fomentado por ele e outros sambistas.
O filme propõe também desmentir as inúmeras fake news e esteriótipos que foram criadas com o nome do Antônio Carlos. Principalmente as que envolvem o trabalho dele na televisão, sobre o suposto vício em álcool e de que teria morrido de cirrose.
A atuação é um dos pontos altos
O elenco é um primor. E a análise poderia terminar apenas com essa frase, mas é necessário colocar em mais palavras o quanto todos estiveram impecáveis durante todo o filme.
Há momentos de um quase escorrego de alguns atores, mas a falta de experiência é justificável. Ailton Graça é realmente o próprio Antônio Carlos. Nenhum outro ator poderia ter tanto talento, emoção e samba para interpretar as mil formas que o personagem apresentou ao longo do filme. Inclusive, o ator consagrado por onde passou demorou para receber o convite para protagonizar uma produção cinematográfica.
Cacau Protásio e Neusa Borges brilham e se emocionam como Dona Malvina, mãe rigorosa que sonhou e brigou para que o filho tivesse boa formação. A cena em que o garoto ensina a mulher a ler é uma das coisas mais lindas que o cinema nacional produziu no ano. Nando Cunha faz uma rápida participação como Grande Otelo, mas se mostra grandioso e engraçado.
Os três Trapalhões, Gero Camilo, como Renato Aragão, Felipe Rocha, como Dedé Santana, e Gustavo Nader, como Zacarias, também enchem os olhos. Eles demonstram com muita delicadeza que apesar do humor nortear a relação de trabalho, há conflitos comuns e naturais de um grupo que era sério e compromissado com o público.
Existe debate racial no filme?
Uma das queixas de boa parte das pessoas que assistiram o longa é em relação a uma possível falta de debate sobre racismo. De fato, o diretor preferiu não abordar a maneira cruel em que os negros eram tratados em todos os espaços da época. Não há uma revisão das piadas feitas pelos Trapalhões, nem mesmo um grande discurso evidente do Antônio Carlos falando sobre ser retino. Porém, há outros pontos mais sutis e, muitas vezes, com peso maior do que o apontamento de uma injúria.
A sequência de Dona Malvina repetindo que “burro preto tem de monte, mas preto burro não dá”, a criança negra entrando em um espaço dominado por brancos na escola, o retorno para casa, a consciência de que precisava repassar o conhecimento e ensinar a mãe escrever o próprio nome, tudo.
Essas cenas podem parecer comuns, mas carregam uma dor e questões raciais muito profundas para o Brasil. Assistir o quanto as mazelas da escravidão ainda estavam latentes na década de 50, 60, e que nada mudou completamente desde então é difícil.
A cena final em que os dois refletem sobre o poder da escolha e possibilidades em uma família negra, abre um buraco que talvez nunca vá conseguir fechar por completo. As dores do racismo estão muito presentes no filme, mas de forma visceral e sutil. É preciso ter, pelo menos, letramento racial para compreender.
No mais, a cinebiografia revela para o público, que ainda não conhece, um dos grandes artistas da cultura brasileira. Um homem negro, cheio de talento, que não tinha medo de arriscar e viver de arte em um país tão desigual e racista. O fato é que "Mussum - O Filmis" resgata e reverencia um dos responsáveis por abrir as portas por todos lugares que passou: na televisão, cinema e no samba.
Veredito: 4/5
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