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Negritude protagonista: novelas brasileiras e o árduo caminho pela representatividade

Atualizado: 30 de mai. de 2023


Taís Araújo como Preta em "Da Cor do Pecado", novela de 2004 | Foto: Reprodução/TV Globo

A televisão segue como o principal meio de comunicação no Brasil, já que, mesmo com o avanço da internet, o online ainda não se mostra completamente acessível para todos os públicos. Em 2021, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), cerca de 95,5% dos lares tinham um aparelho de televisão.


As novelas são as mais populares no Brasil e outros países latinos. O costume de sentar para assistir as produções juntamente com a família, por mais que possa ser considerado "antiquado" por algumas pessoas, ainda é recorrente nos lares.


Importantes debates são iniciados e explorados nas telenovelas brasileiras, sobretudo as que são exibidas no horário nobre. A TV Globo é a principal emissora do país no que tange a jornalismo e entretenimento. As outras, como SBT e Record, investem menos em produções próprias.


Mas, apesar da grande diversidade populacional no Brasil, apenas brancos são representados nas principais telenovelas. A Globo, por exemplo, não costuma dar oportunidade para artistas negros nas suas produções. A emissora empurra uma espécie de lobby, ou rodízio, de atrizes na programação. Nos últimos anos, as protagonistas negras se dividiram majoritariamente entre Taís Araújo e Camila Pitanga, como mostra a tabela abaixo. O cenário só começou a mudar a partir da segunda metade de 2022.



As duas costumam falar da importância de trazer novos rostos para televisão e como é importante que pessoas negras interpretem papéis diversificados. Quando não são subaproveitados, os artistas interpretam personagens extremamente estereotipados ou com histórias que não fazem diferença na trama. O debate sobre o esvaziamento de identidade negra nesses espaços só se intensificou com o passar dos anos.


Cultivou-se por muitos anos dentro da emissora que atrizes iniciantes negras não teriam apelo popular, principalmente para viver protagonistas "mocinhas". Apenas as mais experientes poderiam ocupar este espaço, e com muita cautela, já que existia uma falsa preocupação sobre aceitação do público. Mas além disso, há o desejo de evitar qualquer tipo de debate racial nas tramas. Em contrapartida, atrizes brancas continuaram recebendo papéis de destaque mesmo sem trabalhos para o grande público, como Camila Queiroz.



Enquanto tentava esconder a presença de negros nas produções, a Globo foi muito criticada pelo Movimento Negro por reforçar ainda mais a estrutura racista que o Brasil cultivou durante décadas. Enquanto isso, o público normalizava as agressões sofridas pelos artistas negros que precisavam se submeter aos personagens estereotipados.


Novelas da Globo reforçando estigmas raciais


Sérgio Cardoso e Ruth de Souza em 'A Cabana do Pai Tomás'. Reprodução: Memória Globo

A novela “A Cabana do Pai Tomás” (1969) gerou revolta do movimeto negro pelo blackface que era feito em Sérgio Cardoso. Ele viveu mais de dois personagens na trama e em um deles, era pintado com carvão e faziam mudanças no nariz e boca. A ordem para que um ator branco interpretasse o papel veio dos patrocinadores da época, Colgate-Palmolive. Eles não queriam que os produtos fossem associados a pessoas negras.


Na trama, a grande Ruth de Souza foi contratada após indicação do ator principal, mas sofreu nos bastidores. “Algumas atrizes brancas não queriam que o nome delas ficasse atrás do meu nos créditos. Não guardo mágoa, mas acho qualquer tipo de preconceito uma estupidez”, contou ela no Jornal Tribuna do Paraná.


O jornalista Plínio Marcos foi um dos primeiros a repudiar o ato do blackface em um editorial publicado no jornal Última Hora. Ele considerou a escolha "grotesca", e movimentou outros atores negros a protestarem contra a decisão da emissora. Milton Gonçalves foi um dos artistas que participou dos protestos contra a escalação de Sérgio. Em entrevista, ele falou que a Globo o convocou para defender a escolha em um programa, mas se negou.


"Com a relação a um país com mais de metades de negro, parentes e afim. E chamaram um ator branco para pintá-lo e parar colocar no ar como se não existisse atores negros que pudessem fazer aqueles personagens. Então, eu fui chamado para ir até São Paulo para um programa em apoio a indicação do Sérgio Cardoso. E eu, com muito medo e muita adrenalina, disse "não, eu não vou". E falaram: "como assim você não vai?" E disse: "eu não vou. Porque vocês não me perguntaram na época que escalaram o Sérgio para fazer o papel do negro, e eu tinha já militado no Teatro Experimental do Negro, em São Paulo, e vocês não me perguntaram se eu concordava. E eu vou aproveitar essa rara oportunidade para falar que não concordo. E me disseram: "você não serve para trabalhar aqui", e eu disse: "provavelmente não sirvo, mas eu não vou" - Milton Gonçalves


Uma outra situação que gerou irritação foi a ausência de figurantes negros no céu que foi representado na novela “A Viagem” (1994). A trama escrita por Ivani Ribeiro não tinha atores negros no núcleo principal. As cenas finais, em que pessoas pretas não apareciam como figuração, irritou com razãp o movimento negro, que questionou à direção se pretos não entrariam no céu.


Na época, a Globo se retratou informando que pessoas racializadas foram contratadas, mas as câmeras não filmaram. A direção e produção da novela evitaram falar sobre o assunto para não levantar ainda mais evidências contra a trama, que fazia muito sucesso em audiência.



As situações vergonhosas não terminaram e outras tantas vieram ao longo dos anos, como o papel de Taís Araújo na novela “Viver a Vida” (2009), em que sua personagem se mostrava subserviente e frágil mesmo após levar um tapa no rosto. Ela foi a primeira Helena negra do autor Manoel Carlos, que foi muito criticado pela forma que a personagem estava sendo conduzida. Além disso, as micro agressões também eram evidentes na novela.


Lázaro Ramos e Camila Pitanga em 'Insensato Coração' | Foto: Reprodução/TV Globo

O papel de Lázaro Ramos em “Insensato Coração” (2011) era um galã que namorava com muitas mulheres, a maioria bem mais jovem que ele. Sem nenhum tipo de demonstração de afeto, ele costumava tratar a maioria como objetos até encontrar o grande amor. O público ficou muito dividido quanto ao personagem: parte não conseguia acreditar que um homem negro pudesse ser galanteador e ser o grande desejo das mulheres, e a outra apenas sexualizava Lázaro.


Em 2016, a escalação de apenas atores brancos para os principais papéis na novela “Segundo Sol” também irritou parte do público, que havia adquirido o mínimo de consciência racial e também começava a se manifestar mais a favor da representatividade negra. A trama se passou na Bahia, que historicamente tem uma quantidade maior de pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas.


Deborah Secco, Emílio Dantas, Giovanna Antonelli e Adriana Esteves em 'Segundo Sol'. Reprodução: João Miguel Júnior / TV Globo/Divulgação

Ao invés de lançar nomes de artistas negros, a direção preferiu escalar Giovana Antonelli, Emílio Dantas, Deborah Secco e Adriana Esteves como os principais personagens. Mais bronzeados que o normal, os atores também sofreram críticas pela falta de sensibilidade no que se refere ao tema. Na época, a TV Globo emitiu uma nota ao jornalista Maurício Stycer, do UOL, informando que a falta de pessoas negras se dava pela agenda cheia de artistas da casa.


"(…) Na época da escalação de 'Segundo Sol' discutiram-se nomes como o de Taís Araújo, que não poderia pois está em Mister Brau, e de Camila Pitanga, que não se sente pronta para voltar às novelas, depois do acidente que causou a morte de Domingos Montagner no final de Velho Chico. (…)”, dizia a nota.


Mudanças na emissora


Repleta de erros históricos, "Nos Tempos do Imperador" felizmente não passou ilesa pelo público, que apontou o racismo no roteiro - além do racismo dos bastidores | Foto: Reprodução/TV Globo

“Nos Tempos do Imperador” (2020) já começou gerando controvérsia no público de diversas formas, mas a principal crítica era a maneira que os invasores portugueses foram retratados como grandes salvadores e amantes da pátria. Vários erros históricos foram apontados desde a primeira novela que retratava o governo da família real portuguesa, “Novo Mundo” (2017), e a falta de cuidado com o roteiro só se estendeu para a segunda trama, gravada quase inteiramente antes de ser exibida. O "quase" é algo importante a ser dito porque consultores foram contratados para reorientar cenas e os atores tiveram que gravar novamente.


Uma dessas cenas foi o "racismo reverso" exibido no capítulo do dia 21 de agosto de 2021. O líder de um quilombo recusou receber a namorada branca de um dos negros e ele reclamou. "Só porque você é branca não pode morar na Pequena África? Como queremos ter os mesmos direitos se fazemos com os brancos as mesmas coisas que eles fazem com a gente?", disse o personagem.


A branca "bondosa e salvadora" falou que reconhecia seus privilégios e que o Dom Olu estava correto de recusá-la no local. Não demorou para que vários ativistas se revoltassem nas redes sociais. Thereza Falcão, autora que dividiu com Alessandro Marson o roteiro, se desculpou e justificou que na época que a novela foi escrita, em 2018, não existia consultoria para que autores brancos "aprendessem" com pesquisadores negros.


"Na época não contávamos com uma assessoria especializada, o que só aconteceu no ano passado, com a entrada do [pesquisador de cultura afro-brasileira] Nei Lopes. Hoje assisto a muitas cenas com uma sensação muito longínqua. Mais uma vez pedimos desculpas por cometer um erro grosseiro como esse", disse Thereza.


Vinicius Coimbra, diretor de "Nos Tempos do Imperador", era extemamente racista nos bastidores da novela | Foto: Reprodução/TV Globo

Quase no fim da novela, a denúncia de que os atores negros estavam sofrendo racismo por parte do diretor Vinicius Coimbra e produção foi divulgada por Mônica Bérgamo, da Folha de São Paulo. A notícia surpreendeu o público, que ainda acompanhava os desfechos da trama.


O Notícias da TV informou que Vinicius tratava com discriminação os atores negros do elenco, em especial três mulheres que tiveram coragem para denunciar o caso: Cinnara Leal, Dani Ornellas e Roberta Rodrigues.


Ele segregava o elenco entre brancos e negros, inclusive nos camarins. Em um momento da gravação, ele pediu para que apenas o elenco branco fosse com ele e "os pretos" ficassem. Ao ser questionado, Coimbra reagiu com uma fala comum para um racista: "Vocês deveriam agradecer de estarem aqui".


Além disso, os atores negros precisaram gravar durante o pico da pandemia da Covid-19. Enquanto isso, o resto do elenco foi poupado e só retornou quando os casos diminuíram. Cinnara, Dani e Roberta tiveram coragem de denunciar os absusos diretamente ao diretor de entretenimento, Ricardo Waddington, e também para José Luiz Villamarim, diretor de dramaturgia, mas nada foi feito. Mariana Ximenes, uma das protagonistas, se incomodou com o tratamento dado ao elenco e pediu para que algo fosse feito, mas nada aconteceu. Gabriela Medvedovski e Letícia Sabatella também se posicionaram pedindo que a direção da Globo interviesse nas situações.


Mariana Ximenes e Cinnara Leal em "Nos Tempos do Imperador" | Foto: Reprodução/TV Globo

Como nada foi feito, Roberta, Cinnara e Dani foram ao compliance da emissora para denunciar formalmente Vinicius. O diretor foi afastado e dias depois demitido da emissora. Após a novela das 18h, ele ia dirigir "Mar do Sertão" (2022) e logo foi substituído por Allan Fiterman. Quando a notícia dos casos de racismo se espalhou na imprensa, as três divulgaram um comunicado nas redes sociais em conjunto.


"Neste momento nós não vamos nos manifestar sobre o ocorrido. Estamos nos recuperando e precisamos de forças para seguir. Estamos acompanhadas de um corpo jurídico e tudo corre em sigilo. Nós queremos agradecer todo apoio, acolhimento, carinho e amor recebidos de todos vocês como cura neste momento. Nós não vamos sucumbir por antes de nós, por nós e para além de nós! Logo em breve será possível falar com todos", escreveram.


No dia 13 de julho deste ano, Roberta publicou uma foto ao lado de Dani junto com os advogados registrando que o MPRJ (Ministério Público do Rio de Janeiro) abriu uma ação para investigar os casos de racismo na novela. No texto, ela agradeceu quem não esteve por perto e desacreditou que as denúncias seriam em vão.


"Obrigada a vocês que não acreditaram, vocês me fizeram ter mais certeza e força para jamais desistir dos meus direitos. Tudo isso não é sobre eu e você Dani, é sobre todo um povo e nossa ancestralidade. Eu sou porque você é. Nós somos", escreveu na legenda.



A partir dali, algumas mudanças começaram nas produções das novelas e séries na TV Globo. Não se sabe exatamente se foi alguma exigência judicial ou se há outra intenção além de realmente dar oportunidade para novos talentos, equilibrando os papéis. O fato é que atores negros que eram vistos em personagens secundários estão protagonizando as novas produções da emissora. Os colunistas de televisão apontam que a direção deseja ter um elenco mais diversos e com negros protagonizando ou ganhando mais destaque com os personagens.


Uma das primeiras medidas é a escalação de Lucy Alves para ser a grande mocinha da nova novela das 21h, “Travessia” (2022). Apesar dos boicotes de texto e direção para esconder o verdadeiro protagonismo, o talento e o apelo popular da atriz segue se sobressaindo na trama. A personagem é uma mulher maranhense, forte e batalhadora que sobrevive fazendo trabalhos domésticos e dançando no Bumba Meu Boi e no Tambor de Crioula.


Lucy Alves é Brisa em "Travessia", de Glória Perez | Foto: Reprodução/TV Globo

Percebeu-se que na novela “Além da Ilusão” (2022) havia um elenco negro maior, nos papéis de trabalhadores de uma fábrica. A direção ficou a cargo quase que exclusivamente de Jeferson De, um dos grandes nomes atuais do audiovisual. Ele dirigiu os longas "M8 - Quando a morte socorre a vida" (2019) e também "Doutor Gama" (2021).



Em "Todas as Flores" (2022), novela exclusiva do Globoplay, é possível perceber que os atores negros estão inseridos de forma mais natural, sem um grande debate racial, e com as suas próprias histórias. A maioria são atores jovens e sem grandes experiências na televisão, o que era algo impensável anos atrás. A experiente Mariana Nunes é uma das protagonistas, e Naruna Costa, Yara Charry e Bárbara Reis são destaques na trama.


Mariana Nunes em "Todas as Flores" | Foto: Reprodução/Globoplay

Recentemente, a colunista Carla Bittencourt noticiou que Agatha Moreira, queridinha da direção da Globo, perdeu o papel em “Terra Vermelha”, próxima novela de Walcyr Carrasco que vai ocupar o horário nobre. A decisão da emissora surpreendeu: o papel teria que ser obrigatoriamente de uma mulher negra. Segundo a jornalista, eles estão preocupados com a diversidade das produções. Ao que tudo indica, a escolhida foi Bárbara Reis, que está atualmente em "Todas as Flores". ELa vai viver par romântico com Cauã Reymond, um dos galãs da televisão brasileira.


Os efeitos que estas decisões da Globo podem causar ainda não foram mensurados, já que tanto a empresa quanto outras produtoras de audiovisual estão bastante atrasados no que se refere à representatividade e inserção de pessoas negras como grandes destaques. É importante ressaltar que atores negros seguem precisando demonstrar o máximo de talento e responsabilidade para serem aceitos no mundo artístico, ao contrário de pessoas brancas que muitas vezes não tem estudo necessário para exercer a profissão.


Mesmo que a maioria renegue e tente atrapalhar a ascensão dos negros na televisão, o futuro pode apontar para lugares diferentes, apesar da morosidade. A tendência é que os artistas comecem a produzir e atuar ainda mais fortemente nas principais produções do país, apesar do boicote. O debate sobre ter mais artistas pretos ocupando os espaços de protagonistas é antigo e já passou da hora de acontecerem mudanças reais no cenário televisivo.

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