"Nosferatu": o pesadelo prazeroso de Robert Eggers
Atualizado: 27 de dez. de 2024
O diretor de A Bruxa (2015) e O Farol (2019) faz uma homenagem respeitosa e criativa a um clássico do cinema
Um dos grandes sonhos do cineasta Robert Eggers, desde sua adolescência, era fazer um remake do clássico filme Nosferatu, de 1922, dirigido por F.W. Murnau. Chegou, inclusive, a fazer uma versão em teatro na escola. Mas foi só agora, em 2024, que esse projeto de anos se materializou num longa, mais de 100 anos depois do lançamento do original. E ainda bem que finalmente aconteceu.
O diretor, que já é figurinha carimbada no cinema de horror contemporâneo, consegue mostrar em Nosferatu (2024) que desenvolveu grande domínio da sua forma de fazer arte desde o excelente A Bruxa (2015). Mesmo com todas as características de um filme dele, que você consegue detectar logo nas primeiras cenas quem dirigiu, Eggers também conseguiu tornar sua direção mais "acessível" para um público mais amplo, ao invés de ir direto no nicho que já consome e gosta do seu estilo, como fez em O Farol (2019) e O Homem do Norte (2022). Com isso, ele se consolida como um dos grandes contadores de hitórias de horror do nosso tempo. Afinal, um projeto especial como este precisa ser consumido e apreciado por uma quantidade maior de pessoas, principalmente se tratando de uma figura tão forte na cultura pop como a de Nosferatu.
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É um grande alívio assistir a um remake de um clássico antigo que não cai na mediocridade e não é apenas uma repetição da mesma história sem novas camadas. A quantidade de filmes live action, remakes e continuações ruins ou até péssimas que estamos tendo recentemente na indústria te deixam cabreiro para qualquer anúncio desse tipo. Mas, felizmente, não é o caso de Nosferatu (2024). Não é só mais um remake do filme de 1922, é uma nova visão sobre a história, sobre os personagens e sobre o próprio vilão. A abordagem é completamente atual, mesmo com a trama se passando na Alemanha do Século XIX.
O longa acompanha uma jovem solitária, Ellen (Lily-Rose Depp), que, num momento de carência e solidão, clama por afeto e é atendida por uma criatura das trevas, com quem faz um contrato de alma que precisa ser renovado. Por muito tempo, Ellen é atormentada por pesadelos e visões horríveis, ao mesmo tempo que recebe o seu afeto e até prazer dessa criatura do além. Seu sofrimento acaba quando ela conhece Thomas (Nicholas Hoult) e é curada temporariamente pelo amor. Porém, ao firmar o casamento com o rapaz, volta a ser atormentada por aquele com quem tinha assinado um acordo alguns anos antes.
Thomas, um rapaz jovem e dedicado ao trabalho e à sua amada, é corretor de imóveis e recebe uma proposta que mudaria sua vida e de sua família: a venda de uma antiga mansão para um homem conhecido como Conde Orlok. Para isso, ele só precisa ir até o encontro do Conde na Transilvânia. Mesmo sendo avisado diversas vezes no seu caminho que ele não deve ir até lá, ele insiste e começa a ser assombrado por visões, que pioram quando ele chega ao encontro de Orlok. É exatamente neste momento que o filme fica ainda mais interessante e te deixa preso até o final.
Mesmo estando em cena, nós não conhecemos a figura de Orlok/Nosferatu (Bill Skarsgård) de primeira. Somos apresentados a uma voz bizarramente sombria, mãos assustadoras com unhas gigantes e silhuetas de sombras obscuras, o que cria um clima de suspense maior. A tensão é um elemento constante no filme, outro acerto grande de Eggers.
Se alguém ainda não acreditava na capacidade de Bill Skarsgård de atuar bem embaixo de quilos de maquiagem e próteses — lembra dele em It: A Coisa? —, vai ser convencido a partir desta obra. Mesmo irreconhecível de primeira por conta do trabalho impecável de figurino e maquiagem, ele consegue imprimir expressões faciais, corporais e até uma voz que assustam e fascinam na mesma medida.
As atuações, inclusive, são alguns dos vários pontos fortes de Nosferatu (2024). Lily-Rose Depp é uma grata surpresa e mostra que, se bem dirigida, entrega uma performance digna de Oscar (apesar de todos sabermos que a Academia odeia terror). Sua personagem, Ellen, é central na trama. Eggers decidiu dar um foco maior da história nela, fazendo com que o filme também discuta sobre a visão das mulheres na sociedade, junto a reflexões sobre doenças mentais.
Por conta de suas visões sobrenaturais, Ellen é vista como uma louca descompensada. Enquanto o marido, Thomas, está longe, ela fica na casa do casal de amigos Anna e Friedrich Harding (Emma Corrin e Aaron Taylor-Johnson). Diante dos episódios da jovem, eles decidem chamar um psiquiatra, o Dr. Wilhelm Sievers (Ralph Ineson), que chega a amarrar Ellen na cama. Os tratamentos são inúteis até a chegada do professor Albin Eberhart von Franz (Willem Dafoe), a única pessoa que decide ouvir de verdade o que Ellen tem a dizer, sem desacreditá-la.
Em seu terceiro trabalho com Robert Eggers, Dafoe é outro destaque. Os maneirismos, a voz, tudo se encaixa no professor, chamando atenção assim que o personagem entra em cena.
Toda a atmosfera funciona por conta de cada detalhe do filme, mas, com certeza, um dos pontos mais influentes é a cinematografia. O trabalho de Jarin Blaschke, que esteve com Eggers em todos os seus filmes anteriores, é excepcional. A forma que as sombras são usadas não é tão vista atualmente no gênero. Elas estão por toda parte, atiçando a imaginação de quem assiste, criando um aspecto de pesadelo constante, em que Orlok é um monstro que não conseguimos enxergar bem e o que pensamos pode ser até pior que a realidade.
A dinâmica de Ellen e Nosferatu é interessante. Meio Freudiana. Ao mesmo tempo que Ellen tem medo, raiva e rejeição pelo vampiro, há um certo desejo junto disso tudo. Foi esse mesmo vampiro que supriu sua carência quando ela estava desesperada e não só isso: ele lhe proporcionou prazer. Essa confusão de sentimentos, vontades e repulsas fica evidente nos diálogos, no jogo coroporal e de palavras nas interações entre os dois, provocando uma mistura de sensações no próprio espectador.
É um filme triste. Não é só um terror, é um melodrama gótico dos melhores. Você termina pensando como poderia ter feito um final diferente para a jovem e para todas aquelas pessoas na tela. Sentindo o horror da condenação final, um bem comum com um vazio. É de partir o coração, de certa forma, mas, feito com maestria.
Nosferatu (2024) é uma homenagem respeitosa ao clássico de 1922 e ao próprio gênero de cinema de horror. Robert Eggers prova que é possível fazer um remake imaginativo, criativo e instigante, encerrando um ótimo ano para o terror — tivemos A Substância, Longlegs, A Primeira Profecia, Alien: Romulus, Eu Vi O Brilho da TV e tantos outros —, gênero que o diretor tanto ama, com excelência.
NOTA: Apesar de ser o filme do Natal nos EUA (a história, inclusive, se passa perto dos festejos natalinos), só chega aos cinemas brasileiros em 2 de janeiro de 2025.
Veredito: 4,8/5
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