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Foto do escritorMikhaela Araújo

O cinema lésbico brasileiro desde o amor maldito de Adélia Sampaio

Atualizado: 30 de mai. de 2023


Em agosto de 1984, o cinema nacional já havia trazido novos olhares não tradicionais para as produções, a partir de movimentos como o Cinema Novo — que estava disposto a conhecer e transformar em arte o país de verdade, influenciado pelo cinema direto, a nouvelle vague francesa e o neo realismo italiano. Mas qual país? O olhar crítico que surgiu não destronou todas as hierarquias — até hoje, segue em processo de desconstrução. Alguns sujeitos marginalizados podiam até estar sendo finalmente olhados, mas não estavam tendo seus próprios olhares vistos. No Brasil de agosto de 1984, não havia nenhum longa metragem dirigido por uma mulher negra, nem nenhum longa sobre amor lésbico. Até a chegada de ‘Amor Maldito’, de Adélia Sampaio.


O filme conta uma história baseada em um caso verídico. Fernanda, interpretada por Monique Lafond, está sendo acusada injustamente pelo assassinato de Sueli (Wilma Dias), com quem viveu uma relação amorosa.


Fazer um filme sobre um relacionamento lésbico que não se resumia apenas à sexo, - mesmo com as duas personagens se encaixando no imaginário erotizado e até pornográfico - que mostrasse carinho, problemas, afetos e discussões, não foi fácil. Ainda por cima sendo feito por uma mulher negra, filha de empregada doméstica. Adélia já tinha experiência como produtora e distribuidora, participava de muitos projetos dos colegas homens (e brancos em sua maioria). Apesar de todo seu esforço durante a carreira, ela contou em diversas entrevistas que, ao procurar financiamento para fazer ‘Amor Maldito’, recebeu muitos “nãos”. “Aquilo não era para ela”, diziam. Quem aceitaria financiar um filme com duas mulheres vivendo um relacionamento amoroso, nos anos 80 e no Brasil? Mesmo com os conselhos para atenuar o longa, deixando o relacionamento subentendido, Adélia disse, com essas palavras, que quis seguir o caminho contrário e fazer o filme sair “na marra”. E foi isso que ‘Amor Maldito’ fez: saiu, aos trancos e barrancos, se passando por um filme pornô. Um ato de liberdade e rebeldia.


O roteiro não-linear busca mostrar o relacionamento de Fernanda e Sueli em todas as suas nuances, muito além do crime e do que acontece no tribunal. As duas personagens são aprofundadas, apresentando camadas diferentes, desde que se conheceram, passando por um casamento pequeno e escondido, amparado pelas paredes do apartamento de Fernanda, até as brigas das duas e uma gravidez de Sueli. Sampaio, usando a linguagem do sistema, fez valer o seu discurso, se assemelhando de certo modo à própria protagonista. “Eu sou uma mulher assumida!”, grita Fernanda ao tribunal que lhe julga, não só pela suspeita de assassinato, mas depois de aguentar as acusações de que teria ‘arrastado’ Sueli para a ‘perversão sexual’. Qual o verdadeiro crime pela qual a estão julgando? O filme deixa evidente que Fernanda não matou a companheira logo em sua cena inicial — diga-se de passagem, a cena do suicídio de Sueli é um belo feito cinematográfico para a época -, transformando o tribunal numa verdadeira piada e escancarando para o telespectador o real motivo do julgamento: amar outra mulher.


Desde 'Amor Maldito', o cinema lésbico brasileiro vem caminhando a passos lentos. Quantos filmes nacionais com ao menos uma mulher que gosta assumidamente de outras mulheres você consegue listar? Sem levar em conta os papéis secundários em que nāo sabemos se a personagem é realmente sapatāo ou nāo, ou aquela personagem desconstruída e descolada que beija outra mulher numa festa. Desses, temos vários exemplos.


Apesar da pouca quantidade, as produções que retratam o afeto entre duas mulheres possuem exemplares de alta qualidade, como o aclamado 'Flores Raras' (2013) de Bruno Barreto, com Glória Pires e Miranda Otto; 'Como Esquecer' (2010) de Malu Martino, com Ana Paula Arósio; 'As Boas Maneiras' (2017), de Juliana Rojas e Marco Dutra e 'Entre Irmās' (2017), de Breno Silveira, ambos com Marjorie Estiano.


Mesmo com o crescimento recente do cinema sobre mulheres lésbicas no Brasil e principalmente no exterior, com nomes de sucesso como 'Carol' (2015), 'Retrato de uma Jovem em Chamas' (2019), e 'A Criada' (2016), ainda nāo podemos dizer que estamos num cenário satisfatório. Além de serem poucos filmes em comparaçāo à quantidade de produções sobre relacionamentos heterossexuais, a maioria deles retrata casais de mulheres brancas, classe média ou ricas e cisgênero. E as mulheres lésbicas pretas, indígenas e pobres? Qual lugar elas ocupam?


'Rafiki' (2018), drama queniano dirigido por Wanuri Kahiu que conta a história de romance entre duas jovens, fez história ao ser exibido no Festival de Cannes em 2020. O longa foi proibido de ser veiculado no Quênia, onde quem é pego tendo relações com pessoas do mesmo sexo pode ser preso por até 14 anos. 'Rafiki' é um dos maiores exemplos internacionais de representatividade de lésbicas negras. Nos EUA, temos mais alguns títulos, como 'The Watermelon Woman' (2016), 'Bessie' (2015) e 'Pariah' (2011). No entanto, no Brasil, esse problema se agrava. Um dos únicos exemplos famosos é a personagem Clara, interpretada por Izabél Zuaa em 'As Boas Maneiras'.


Entre os motivos para o cenário complicado do cinema sáfico brasileiro, encontramos vários problemas em comum com os enfrentados por Adélia Sampaio mais de 30 anos atrás: falta de financiamento, lesbofobia generalizada no país e falta de políticas públicas que incentivem a produçāo e distribuição desses filmes. Até temos cineastas interessadas em colocar suas histórias e projetos para frente, mas é difícil fazer filmes no Brasil sem dinheiro, quanto mais distribuí-los - ainda por cima no contexto social e financeiro em que vivemos. A Cinemateca Brasileira de Sāo Paulo estava em chamas há menos de um mês.


O contexto difícil nāo significa que devemos apenas aceitar a realidade. Lutar e brigar por espaço e representatividade lésbica em todos os seus âmbitos e nuances é um dever mesmo de quem nāo está dentro da comunidade LGBTQ+. O caminho até uma produção mais igualitária ainda é longo e cheio de espinhos, mas o presente tem nos dado sinais de que não é hora de diminuir o passo. Que cada vez mais os afetos e existências sejam celebrados, mesmo que seja aos trancos e barrancos. Porque, de maldito, o amor nāo tem nada.

 

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