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"O Menino e a Garça" mostra a aceitação da maldade em Miyazaki

por Danilo Lima, especial para a TAG Revista



Não é preciso muito para que um filme do Studio Ghibli chame atenção. Em quase 40 anos desde sua fundação e com numerosas obras-primas no portfólio, a produtora japonesa se consolidou como uma das mais prestigiadas dentro do cinema de animação, formando uma legião de fãs que aguardam ansiosos a cada novo título. Agora imaginem a expectativa gerada quando o principal e mais famoso diretor do estúdio, Hayao Miyazaki, anuncia um novo filme para ser lançado 10 anos depois de sua suposta aposentadoria?

 

É nesse contexto que O Menino e A Garça ganha vida, tendo sido lançado no Japão em julho de 2023 com nada mais que um pôster divulgado, o que bastou para que se tornasse sucesso interno imediato. Agora, após 7 meses de espera e algumas peças promocionais a mais, o longa finalmente estreou no mercado internacional e pode ser conferido nos cinemas brasileiros desde o último dia 22 de fevereiro. O título, que já é considerado forte candidato ao Oscar de Melhor Animação, é um retorno do diretor à fantasia e traz consigo uma exploração da vida, do luto e ao mesmo tempo uma reflexão bastante particular acerca da própria herança deixada pelo autor ao longo de sua aclamada carreira.

 

Refúgio


Durante a Segunda Guerra Mundial, o jovem Mahito Maki perde tragicamente a sua mãe no incêndio de um hospital em Tokyo. Atormentado pelo luto recente, o jovem se muda junto ao seu pai e à nova madrasta para uma mansão no interior para fugir do conflito. Enquanto tenta lidar com a mudança e suas dores, o garoto passa a ser importunado por uma garça-real falante, que o atrai para uma misteriosa torre abandonada e através de uma jornada por um reino fantástico e mortal.

 

A base da premissa pode ser um tanto quanto familiar: a criança que adentra em um mundo mágico durante um momento de confusão pessoal e acaba passando por transformações e amadurecimento durante a jornada. Ainda que seja um modelo narrativo bastante comum em obras infanto-juvenis - de Nárnia a Coraline, de O Mágico de Oz a Alice no País das Maravilhas -, o formato se tornou igualmente uma marca do estúdio japonês, presente em filmes como Meu Amigo Totoro (1988) e A Viagem de Chihiro (2001).

 

O que todas essas obras revelam em comum é a necessidade infantil, suscitada através da imaginação, de se refugiar no fantástico para contextualizar e processar conflitos emocionais intensos, frequentemente novos para uma criança, seja uma perda, seja uma mudança de lar e constituição familiar. O Menino e A Garça é portanto mais uma exploração das possibilidades dessa premissa, feita por um dos realizadores que melhor a desenvolveu, integrando a perspectiva infantil de descobrimento com a experiência e sensibilidade amadurecidas da vida adulta.


 

O mundo fantástico



Após explorar formatos mais realistas, como a cinebiografia em Vidas ao Vento (2013) - anunciado como sua última obra -, Miyazaki retorna ao gênero da fantasia com tudo que sua ainda frutífera criatividade permite. Apesar disso, a introdução do sobrenatural aqui é muito mais lenta e gradual se comparada a outras obras do diretor, com um primeiro ato que vagarosamente dá lampejos de estranheza, mas se permite levar o tempo que for para estudar as angústias do seu protagonista em seu novo contexto.

 

Quando finalmente adentra o fantástico, o filme é quase tão criativamente diverso quanto Chihiro ou O Castelo Animado (2004), com paisagens surrealistas, criaturas (ou híbridos) inéditos e uma lógica interna própria. A torre abandonada e todo o cosmo que emerge dela parece operar fora dos sentidos de tempo e espaço, o que atualmente poderia facilmente ser interpretado pelo viés dos tão em alta multiversos, mas que não se preocupa em sustentar seu funcionamento em qualquer explicação cartesiana. Se é um mundo tratado ora como purgatório, ora como espaço de reencarnação, o que importa mesmo são as possibilidades de encontro e as considerações a respeito da morte que eles provocam.

 

É, por outro lado, um universo pouco habitável, ainda que muito habitado. Essa impressão, que pode minar o envolvimento de alguns espectadores, decorre diretamente da inexistência de uma exploração concreta das dinâmicas internas desse novo espaço e de seus habitantes. A narrativa se ordena ao redor de diversas cenas individuais, que se sucedem sem consequências ou conexões tão sólidas. No lugar, O Menino e A Garça se propõe a ser muito mais um exercício intuitivo de imaginação do Miyazaki, pois guia-se e progride através de associações livres que não necessariamente representam simbolismos diretos.

 

Dentro dessa narrativa mais solta, ganha-se destaque a plasticidade e imersão, ou seja, o trabalho de animação e de trilha sonora; duas qualidades constantes do estúdio. O premiado compositor Joe Hisaishi, parceiro permanente do Miyazaki, cria mais uma peça primorosa que, com bastante destaque em cena, dá o tom de mistério, tensão ou emoção para cada momento, funcionando assim como um contrapeso ao menor sentimentalismo do filme para os padrões do diretor. Por trazer um outro estilo de protagonista, mais austero e fechado, o filme desloca seu coração menos para a resolução dos conflitos e mais para o subtexto da produção e sofrimentos silenciosos de Mahito, um alguém introspectivo mas não apático.

 

Dois Ghiblis



Ao longo dos anos, e como consequência de seu sucesso, o Studio Ghibli foi recorrentemente simplificado e reduzido a uma estética. Inúmeras pessoas enxergam no estúdio - ou ao menos na figura do Miyazaki - a representação máxima da tranquilidade, da fofura e do filme conforto. Essa concepção gerou até mesmo a criação de uma subcultura estética chamada de “Ghiblicore” (uma derivação do cottagecore), com grande apelo para jovens em espaços virtuais como Pinterest, TikTok e Tumblr. Além de uma instrumentalização de consumo, é preciso dizer que essas subculturas procuram reproduzir esteticamente certa “vibe” na moda e no estilo de vida, mas esvaziam de significado a arte em sua complexidade interna.

 

Claro que parte dessa impressão existe um motivo de ser, muito graças às paisagens perfeitamente bucólicas, trilhas sonoras apaziguadoras e filmes completamente cativantes do diretor, como O Serviço de Entregas da Kiki (1989), Ponyo (2008) ou o já citado Totoro. Contudo, há um segundo lado do Miyazaki que costuma ser esquecido quando ocorre essa simplificação.

 

Com um longo histórico de ativismo ambiental e pacifista, Hayao faz questão de sempre inserir nos filmes discursos e mensagens sobre seu compromisso político, muito inspirado no Xintoísmo e na crença da harmonia do humano com a natureza, mas nem sempre por um viés otimista dessa relação. Em Princesa Mononoke (1997) o diretor talvez tenha chegado ao ápice de seu pessimismo quanto à natureza humana, com uma brutalidade que, em menor grau, também aparece em O Menino e a Garça. Afinal, tão frequentes em suas obras quanto os seres fofos, são as figuras grotescas, até mesmo assustadoras, que cumprem papéis ambíguos, como é o caso da garça, uma criatura que vai do deslumbrante ao aterrorizante e depois à comédia em pouco tempo.


 

A morte e a maldade do autor



*Contém spoiler!


Como sugerido pelo presidente do Studio Ghibli, Toshio Suzuki, o longa carrega um teor semi-autobiográfico do Miyazaki. As semelhanças mais notáveis seriam a realidade de um garoto crescendo nos anos finais da guerra e com um pai que dirige uma fábrica de peças de avião para o conflito. Porém, o mais interessante dos paralelos comentados reside na aproximação da figura de um velho mago, dono do reino fantástico, com o antigo colega, grande inspiração e co-fundador de estúdio Isao Takahata (Túmulo dos Vagalumes; O Conto da Princesa Kaguya), que faleceu devido a um câncer de pulmão em 2018, já durante a produção desta obra.


Em determinado momento, o mago pede que Mahito o suceda na construção daquele mundo, o que o garoto recusa por reconhecer maldade em si. Como pode alguém que não é puro ser responsável por criar uma realidade melhor? Esse soa como o grande conflito do trabalho atual de Miyazaki. Um autor celebrado por histórias encantadoras também é um autor atormentado, rígido, que em grande parte foi ausente para seu filho e descrente do futuro da arte.

 

Não à toa a dualidade sempre circunda os temas favoritos do animador, como os aviões, que simbolizam tanto a conquista engenhosa do grande sonho do homem, quanto a máquina de guerra usada para arrasar cidades e matar pessoas. Ou, mais proeminente neste filme, os pássaros que são colocados como figuras maliciosas e cruéis, mas justificam-se pelo propósito de sua natureza. Hayao Miyazaki é um autor de contradições e ele parece ter finalmente as aceitado. Tudo que há de bom contém traços de maldade e a criação artística faz parte desse reconhecimento.

 

Como vocês vivem?


O título original do filme no Japão, Kimitachi wa Dō Ikiru ka, é retirado do livro homônimo de 1937 de Genzaburō Yoshino e significa numa tradução simples: “Como vocês vivem?”. Apesar da escolha, o filme não é uma adaptação e traz no máximo o livro como objeto diegético na trama, lido por Mahito da mesma forma que o diretor leu em sua infância.

 

A perda do nome na adaptação para o mercado internacional também é uma perda da pergunta que interroga as principais questões do filme. É a reflexão ao passado de um diretor consciente da proximidade da morte e do fim de uma era, e portanto funciona bastante enquanto filme memoir, com influências de tantas outras obras de sua carreira. Após anunciar sua aposentadoria tantas vezes desde a década de 1990, Miyazaki sofre do artista condenado a criar quando tomado por uma ideia e sorte a nossa por isso. Seja este o último filme ou não do gênio da animação, é bom sentir que ele parece ter se conciliado, assim como seu protagonista, com a ideia de que a realidade, mesmo marcada pela dor, pelo luto e pelos horrores, é o real espaço de criação da vida e conexão humana. Não é mais necessário o refúgio no fantástico. Ainda é possível viver.


Veredicto: 4/5


 

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