"O Quarto ao Lado": só vivemos porque morremos
Novo filme de Pedro Almodóvar estreou nos cinemas nesta quinta (24) e traz a morte como tema central
Apesar de lidarmos com a existência da morte desde que existe vida, falar do assunto ainda é um grande tabu entre nós, humanos, pelo menos em boa parte da cultura ocidental hegemônica. Não aceitamos que, um dia, vamos morrer, seja de um jeito ou de outro. E, se a morte que não queremos que venha é um tabu, quando se trata de induzir a própria morte, tudo fica mais complicado.
Em O Quarto ao Lado, o diretor espanhol Pedro Almodóvar mergulha de cabeça na temática. No filme, acompanhamos o encontro entre as amigas Ingrid (Julianne Moore), uma escritora de sucesso, e Martha (Tilda Swinton), ex-correspondente de guerra, depois de anos. O motivo das duas se verem é que Ingrid descobre que Martha está em tratamento contra um câncer e não hesita nem por um momento em visitar a amiga no hospital.
As visitas de Ingrid à Martha se tornam frequentes durante o tratamento da doença. O problema surge quando esse mesmo tratamento não dá mais retorno e Martha fica com os dias contados de vida, cada vez mais fraca, tanto pelo câncer quanto pelos efeitos colaterais agressivos dos medicamentos. É aí que a paciente decide pela eutanásia — que é crime nos Estados Unidos —, comprando, por conta própria, uma pílula no mercado ilegal. E a escolhida para acompanhá-la nesse processo é a companheira fiel: Ingrid.
Apesar de não lidar bem com a ideia, Ingrid decide apoiar Martha na decisão. Observamos essas duas mulheres, já mais velhas, relembrando a juventude, falando sobre família, homens e, evidentemente, lutos que as duas passaram. Martha, viúva, tem uma relação peculiar com a morte. Encontrou ela de perto diversas vezes por conta do seu trabalho como correspondente de guerra. Mas um dos lutos que mais doem nela é o de sua relação com sua filha, um laço que está praticamente morto mesmo antes de qualquer falecimento.
O roteiro do filme é baseado no romance O que Você Está Enfrentando (2020), da autora americana Sigrid Nunez. Mesmo com o tema pesado, fatalista, dolorido e triste, Almodóvar consegue trazer uma leveza bem pontuada ao decorrer da história, com situações e diálogos de humor que não chegam para quebrar o drama, mas, sim, para trazer alívio para essas personagens e para quem assiste. Os sorrisos que aparecem no rosto do espectador não anulam a tristeza. É como se ele tentasse mostrar que a felicidade e a tristeza só existem porque dependem uma da outra. Assim como a vida e a morte.
A escalação de Tilda Swinton foi perfeita para o papel de Martha. O diretor consegue aproveitar a atriz ao máximo, desde suas expressões faciais, seu modo de falar, até suas características físicas e forma de se locomover e se portar, por exemplo. Ela está adoecida, mas está viva e demonstra isso o tempo inteiro (juro que é possível entender o que estou falando ao assistir!). Swinton, como sempre, consegue captar bem o que a personagem precisa transmitir. Moore, outro monstro da atuação de Hollywood, é excepcional em representar o contrário da personagem de Swinton, estando quase sempre tensa, demonstrando mesmo que sem querer o turbilhão de emoções e pensamentos de Ingrid no meio desse processo todo.
Como todo filme de Almodóvar, sua assinatura está estampada por todo o filme. O uso e exploração das cores característico é feito de forma sublime, com os conhecidos tons de azul, vermelho, verde e amarelo bem utilizados pela direção de arte. Os diálogos feitos pelo cineasta estão cada vez mais sóbrios em comparação à obras anteriores da sua carreira. Posso estar equivocada, mas, sinto que a língua inglesa não consegue imprimir tão bem o que o espanhol consegue trazer, fazendo com que algumas falas não soem tão fluidas quanto em outros filmes de Almodóvar.
Numa opinião extremamente pessoal, me incomoda um pouco a presença do personagem de John Turturro, Damien, que vive um ex-amor das duas personagens principais. Apesar de gostar bastante do trabalho do ator, a existência do personagem na trama soou um pouco deslocada. Os diálogos dele com a personagem de Moore não acrescentam em quase nada e acabam até atrapalhando a conexão entre ela e Swinton na tela, com quebras que não parecem fazer tanto sentido.
Apesar de alguns poucos problemas, O Quarto Ao Lado é uma das poucas obras que conseguem trabalhar uma temática ainda tão complicada de forma tão sensível e afetuosa. O amor, cuidado e afeto estão presentes em toda parte, tanto na história, quanto nas personagens, quanto no próprio fazer do filme. É bem interessante ver Almodóvar trabalhando no cinema estadunidense, principalmente no alto dos seus 75 anos, falando sobre esse tipo de assunto, conseguindo ver beleza nos fins e fazendo as pazes com o passado, sempre.
O Quarto Ao Lado não é só sobre morte: é sobre a vida, sobre como as duas coexistem. Só vivemos porque morremos. O luto é angustiante, mas é confortante ver um processo de uma morte digna — algo que todos merecemos.
Ler a carta de Antonio Cicero, poeta, que decidiu por um procedimento de morte assistida na Suíça nesta última quarta (23), aos 79 anos, após sofrer de Alzheimer, dias após assistir ao filme, foi algo bem forte. Tenho certeza que as palavras do artista somam ainda mais à experiência que Almodóvar nos traz. Portanto, as copio aqui:
“Queridos amigos,
Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer.
Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem.
Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi.
Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia.
Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo.
Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação.
A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas – senão a coisa – mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los.
Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo.
Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.
Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!”
Veredito: 4/5
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