O que vem depois da “maior Copa do Mundo Feminina de todos os tempos"?
Atualizado: 10 de mai.
Recorde de público no estádio, audiência de TV, ganhos financeiros e as 'zebras', a Copa do Mundo 2023 será lembrada por ser a maior já disputada
Meses antes do início da Copa do Mundo Feminina já se comentava que seria a maior de todos os tempos. A expectativa para a 9º edição do torneio estava grande dentro e fora de campo. Muitas histórias seriam contadas e prováveis mudanças aconteceriam a partir do momento que o apito soasse o primeiro jogo. E não foi diferente.
A última Copa do Mundo, na França em 2019, as palavras mais ouvidas pelas atletas, jornalistas e torcedores que acompanhavam o futebol feminino foi: respeito e igualdade. Quatro anos depois algumas mudanças importantes aconteceram tanto no torneio quanto no esporte feminino. Porém, os dois sentimentos tão reforçados durante a Copa passada ainda falta acontecer por parte das autoridades.
O 'lado A' da Copa
A Copa do Mundo chegou com o status da maior de todos os tempos, sobretudo pela cobertura que seria feita no Brasil e mundo. No país, além do conglomerado da Globo, que inclui o SporTV, uma mídia alternativa também exibiu os jogos e fez uma cobertura mais próxima das Seleções..
A CazéTV conseguiu fazer um bom trabalho durante toda a Copa. Narradores (as), comentaristas, repórteres na Austrália e Nova Zelândia fizeram parte da equipe, mesmo que pouca diversa racialmente. Inclusive, as reclamações das redes sociais fizeram com que Casimiro admitisse o erro e contratasse, de última hora, mais pessoas negras no grupo.
A importância de uma cobertura ampla e gratuita vai além da popularização de um esporte tradicional. É fazer com que milhares de garotas que estejam assistindo também enxerguem como possível o sonho de jogar futebol de forma profissional. Marta durante a última coletiva na Copa criticou a imprensa por não divulgar como deveria o futebol feminino desde o começo.
"Eu não tinha uma 'ídola' no futebol feminino. A imprensa não mostrava o futebol feminino. Como eu ia entender que poderia ser uma jogadora, chegar à seleção, sem ter uma referência?", disse ela emocionada.
Os números de audiência e público provaram mais uma vez que futebol, independente do gênero, é um “negócio rentável” (como os empresários gostam de reduzir este fenômeno mítico). Para se ter ideia, se tornou comum dizer que jogos da Copa do Mundo tiveram a maior audiência do horário da Globo em anos. Por exemplo, a final, que aconteceu às 7h da manhã do domingo, bateu 10 pontos em São Paulo, na prévia. Outros jogos também registraram excelentes números para o horário.
Mesmo a Austrália e Nova Zelândia não sendo consideradas berços do futebol, o público presente nos estádios surpreendeu. Na partida final entre Espanha x Inglaterra, 75.784 pessoas foram ao estádio assistir a partida.
De acordo com a Fifa, 1,222 milhões de torcedores foram às arquibancadas em 48 jogos. O aumento é de 29% em relação a Copa passada, e isso pode se justificar também com o aumento de Seleções (24 para 32), e consequentemente de jogos. A expectativa da Federação é que o número total chegasse a quase 2 milhões até a partida final.
A presença feminina no comando técnico também cresceu, mesmo que pouco. Das 32 Seleções participantes, apenas 12 foram treinadas por mulheres. Em comparação a Copa de 2019, que teve 10, o aumento é baixo, mas ainda sim precisa ser celebrado considerando que o esporte ainda prega uma noção falsa de superioridade masculina.
O nível de competitividade cresceu e isso se mostrou nítido dentro de campo, tanto tático quanto tecnicamente. A exemplo das goleiras, que conseguiram a ter mais explosão, alcance e técnica para saltar e fazer defesas difíceis, como foi visto inúmeras vezes. E isso se deve, principalmente aos investimentos nos campeonatos nacionais e continentais.
Um dos inúmeros momentos marcantes da Copa aconteceu na partida entre Coreia do Sul e Marrocos. A zagueira da Seleção de Marrocos, Nouhaila Benzina, se tornou a primeira mulher a usar Hijab, vestimenta recomendada pelo Islã. Até 2019, a Fifa (Federação Internacional de Futebol) proibiu o uso por questões de "segurança e saúde".
O 'lado b' da Copa
Apesar dos momentos de felicidade e aparente progresso da Copa, as queixas por confusões extracampo se tornaram recorrentes meses antes do início do torneio. Nos bastidores, problemas com treinadores e Federações se tornou comum entre as Seleções.
Incompatibilidade de ideias e assédio moral foi uma das reclamações das jogadoras da Espanha contra Jorge Vilda. Em 2022, as atletas enviaram cartas em protesto contra o treinador. Ele foi acusado de controlar o ambiente, fazendo "checagem" nos quartos e ordenar quem com quem elas poderiam sair, ou não. A Federação apoiou Jorge e não se sabe se houve um pedido de desculpas formal. Inclusive, as campeãs do mundo não comemoraram com o treinador dentro do campo após o fim do jogo.
No pódio, comemorando com as companheiras de equipe, Jennifer Hermoso foi assediada pelo chefe da Federação de Futebol da Espanha, Luis Rubiales. Ele beijou a atleta na boca, sem sua permissão, durante a entrega de medalhas. Em uma live, ela disse que não gostou do ato e negou que tivesse algum tipo de relacionamento com o homem.
Em um primeiro instante, Rubiales fez pouco caso sobre o assunto. Após a chuva de críticas e protestos de autoridades da Espanha, ele pediu desculpas para a jogadora. A FIFA, que investe em campanhas contra assédio, não se pronunciou sobre o assunto
O técnico da Seleção de Zâmbia, Bruce Mwape, foi acusado por "conduta sexual imprópria" pelas jogadoras. Ele teria coagido as atletas a terem relações sexuais para, em troca, continuarem jogando pelo país. O The Guardian foi responsável por publicar a reportagem dias antes da Copa do Mundo. A Associação de Futebol da Zâmbia (FAZ) encaminhou a investigação para a FIFA que preferiu, mais uma vez, se calar sobre o assunto. Inclusive, a Federação do país também preferiu não agir com a ideia de que os bons resultados fossem mantidos.
A falta de investimento, respeito e planejamento das Federações para com as atletas também foi uma reclamação bastante comum, e isso inclui de países ditos mais desenvolvidos com o esporte, como o Canadá. As jogadoras denunciaram que foram coagidas a aceitar entre receber a premiação da Copa em dinheiro ou o financiamento para realizar treinos na Seleção. Elas divulgaram uma carta repudiando a atitude e disseram que apenas queriam igualar o mesmo ganho do time masculino.
Outra Seleção que reclamou da falta de investimento da Federação foi a Jamaica. Às vésperas da Copa, elas publicaram uma carta nas redes sociais afirmando que a estrutura era "abaixo da média". A mãe da jogadora Sandra Phillips-Brower, Solaun, criou uma vaquinha online para conseguir cobrir os custos da viagem das jogadoras.
A diferença das premiações entre homens e mulheres ainda é um incômodo latente para as Seleções. Este ano, a Espanha, campeã do mundo no feminino, recebeu o prêmio de US$ 4,3 milhões (em 2019 foi de US$ 4 milhões). Esta será a primeira Copa que as jogadoras receberam prêmios individuais em dinheiro, algo comum entre os homens. A FIFA prometeu distribuir US$ 110 milhões entre as Seleções.
Para se ter ideia, a Argentina, campeã do mundo no masculino, recebeu US$ 42 milhões em 2022. Para a distribuição entre os jogadores e Seleções, foram usados pela FIFA cerca de US$ 440 milhões.
O que o futuro reserva?
A próxima Copa do Mundo acontece aqui há quatro anos, em 2027. Ainda não há país-sede, mas os candidatos são a África do Sul e Brasil. Em conjunta, Alemanha-Bélgica-Países Baixos e Estados Unidos-México também estão no páreo.
Esta lacuna existente pode ser algo prejudicial, considerando que a preparação de uma Copa para outra precisa começar previamente. No masculino, por exemplo, ao fim da Copa de 2022 já sabíamos que a próxima seria no Canadá, México e Estados Unidos, em 2026.
A expectativa é que este tipo de desigualdade se torne menor com o passar dos anos, sobretudo pelo crescimento do esporte nas arquibancadas. Além do investimento financeiro, é preciso dar condições estruturais para que as jogadoras consigam treinar de forma adequada, com ajuda de médicos, fisioterapeutas, nutricionistas, preparadores físicos, psicólogas, ginecologistas e tudo o que uma atleta de alto rendimento precise para trabalhar.
Mas além disso, é preciso haver respeito por parte das autoridades esportivas para com as jogadoras e comissão técnica. Mesmo no esporte, não há avanço longevo sem consciência de gênero por parte das Confederações, Federações, Técnicos, Comissões e todos que coordenam nos bastidores.
No Brasil, a situação ainda carece de muito cuidado. O presidente da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), Ednaldo Rodrigues, prometeu investir mais na base feminina. As mudanças na estrutura da Seleção principal estão acontecendo e espera-se que as jogadoras tenham ainda mais condições de trabalho e treino da forma como merecem.
Em relação a obrigatoriedade que a Confederação instituiu desde 2019, em que todos os clubes da Série A precisam ter equipes femininas de futebol, espera-se que a instituição também ajude os clubes na formação dessas jogadoras, além de cobrar que seja feito investimentos financeiros adequados para o desenvolvimento dessas atletas.
Sobre o que esperar depois de uma Copa do Mundo considerada a maior da história do futebol feminino é que finalmente compreendam que as jogadoras são profissionais sérias e que precisam de cuidado, como qualquer outro atleta de alto rendimento. Isso vai desenvolver ainda mais o esporte, além de incentivar que garotas ao redor do mundo consigam enxergar o futebol como uma profissão possível e livre de violências contra a mulher.
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