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O sofrimento de corpos negros estampados na mídia

Atualizado: 30 de mai. de 2023

"Como saber quando um autor ama um personagem? Quando dá ao personagem chances de mostrar sua força...". Essas foram as palavras da escritora de novela Manuela Dias, da Globo, para justificar a dor escancarada em rede nacional da personagem Camila, interpretada por Jéssica Ellen, na novela 'Amor de Mãe'. Contudo, não parece ser comum que, quando se tem apreço por algo ou alguém, a maior vontade seja causar-lhe alguma dor ou sofrimento para que este surja "cada vez mais forte". Essa premissa, na verdade, não é nova e muito menos abrangente a todos os personagens da ficção: eles tem uma cor muito bem definida.



Stories de Jessica Ellen | Foto: Reprodução/Instagram


O caso de Camila em 'Amor de Mãe' não foi alvo de críticas apenas na segunda fase da novela - que retornou em março de 2021 após ser suspensa por conta da pandemia de Covid-19. Desde a estreia da trama, em novembro de 2019, a personagem é uma das que mais aparece aos prantos ou passando por um momento bastante difícil. A própria intérprete da personagem, Jéssica Ellen, mandou uma indireta para


a escritora da novela. Não só Camila, na trama, como outros personagens negros - geralmente periféricos - vem sofrendo ou sendo mortos na novela. "Parem de nos matar na vida e na dramaturgia", pedia o post, repostado pela artista no seu Instagram oficial.


O quanto as mulheres negras precisam aguentar?


Para se ter noção, durante sua trajetória na novela, a professora de escola pública foi abandonada pela mãe biológica ao nascer, baleada em um tiroteio escolar, agredida por um policial, perdeu o bebê, ficou estéril, teve a mãe assassinada, foi atropelada e ainda ficou sem o movimento das pernas. Isso tudo além de lidar com o fato de uma das maiores vilãs da trama ser sua sogra (Thelma, a personagem de Adriana Esteves). Para suportar tudo isso, é preciso ser mais que forte. É preciso ser quase inumano. O irônico é que, na mesma novela, Camila chegou a questionar a mãe adotiva Lurdes (Regina Casé) até quando precisará ser forte.


O discurso emocionou dentro e fora da novela, e repercutiu ainda na primeira parte da trama. Camila trouxe à tona um sofrimento que vai para além de personagens negros, mas sim de mulheres negras do nosso cotidiano - que precisam aguentar cargas emocionais e até físicas no seu dia-a-dia, envolvendo questões raciais, de gênero e também de classe.

Esse processo de acreditar cada vez mais na potência de corpos negros é um fenômeno herdado do período escravocrata no Brasil - e perpetuado nas escolas até os dias atuais. Afinal, quantas vezes não ouvimos que os negros foram "escolhidos" para serem escravos por apresentarem um melhor porte físico, mais força ou mais rapidez? Não somos humanos, somos máquinas que aguentam toda a carga que nos derem, sem cansar.


Negros não querem - e não devem - ser representador como se fossem resilientes só por existirem, ou por aguentarem qualquer adversidade. A escritora Grada Kilomba já falou sobre esse tipo de abordagem, negando para si todo e qualquer discurso sobre superação.


"Para ver minha biografia reduzida ao corpo, à beleza, ao sofrimento e à dificuldade, prefiro não dar entrevista. Tem sido muito difícil mostrar uma mulher negra na normalidade. Vê-se que o desafio de criar um novo discurso" (Grada Kilomba)

Nos cinemas a história é a mesma


Lupita Nyong'o interpretou uma escrava no filme '12 Anos de Escravidão' | Reprodução/Internet

Também não é preciso pesquisar muito para saber que a indústria de Hollywood também contribui para esse tipo de pensamento. Na verdade, essa prática já ganhou um nome dentre os estigmas dos papéis negros no cinema, o Strong black woman, que em tradução livre significa: mulher negra forte. De acordo com o Wikipédia, este seria um "arquétipo ideal de como as mulheres negras deveriam agir. Isso é caracterizado por três componentes: restrição emocional, independência e cuidado". Mas o buraco é mais embaixo. Além de ter semelhanças com o arquétipo construído aqui no Brasil, com bases na história colonial e um pensamento meritocrático, a representação das mulheres no cinema e na TV sempre se baseiam em dois pilares: dor e superação.


Retratos cruéis de escravas sofrendo em filmes de época servem quase como um deleite para o público branco, mas causam um embrulho no estômago - e até mesmo alguns gatilhos - quando são assistidos por mulheres negras. Na verdade, essa fixação majoritariamente branca e masculina por cenas degradantes envolvendo corpos negros remete a um conceito abordado pela escritora bell hooks no seu livro "Olhares Negros - Raça e representação", quando ela fala de "comer o Outro".


A autora explica que existe um prazer quase antropofágico em consumir o que é fora, o "exótico", o "diferente", e por aí vai. Em outras palavras, a branquitude vai continuar sentada, no cinema, sofá ou o que for, para assistir cenas em que o outro - ou seja, a população negra - sofre à torto e a direito. O "consolo", geralmente, nesse tipo de narrativa, é o grande poder de superação desses personagens, e como eles tiraram grandes lições pelo o que passaram. Quase uma epopeia.


"Do ponto de vista do patriarcado supremacista branco capitalista, a esperança é que os desejos pelo ‘primitivo’ ou fantasias sobre o Outro possam ser exploradas de modo contínuo, e que tal exploração ocorra de uma maneira que reforce e mantenha o status quo" (bell hooks)

A trama desses personagens geralmente segue por alguns caminhos já batidos após tanta "luta" e "perseverança". Ou ele sucumbe à essa dor, sem qualquer apoio emocional ou psicológico - como acontece na nossa realidade - ou se torna aquele grande exemplo de fortaleza, citado anteriormente. A "escravizada", "durona" ou "mãezona" são os nomes dados a esses estigmas.


Para exemplificar, a excelente atriz Lupita Nyong'o venceu o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante pelo seu papel no filme '12 Anos de Escravidão'. Enquanto os críticos brancos aplaudiam a dor e todo o sofrimento vividos pela personagem Patsey, mulheres negras assistiam às cenas com o estômago embrulhado e um possível gatilho à vista.


Na vida real


Voltando para o Brasil, há uma longa lista de telenovelas e outras produções nacionais que colocam corpos negros - tanto homens quanto mulheres - nessa posição de sofredor e, posteriormente, sobrevivente às suas lutas. Mas, na realidade, ou melhor, em um reality show, essa midiatização do sofrimento foi exemplificada da melhor maneira para o público - e da pior maneira para o participante em questão.


Na 21ª primeira edição do programa, o Big Brother Brasil inovou ao trazer 9 integrantes negros para o reality - um recorde até então. O professor mineiro João Luiz, de 24 anos foi um deles. Negro, gay e professor, João trouxe consigo uma militância inerente ao próprio ser, que precisou ser forte - mais uma vez - quando foi alvo de racismo.


Tudo começou quando o cantor Rodolffo - que também está confinado - precisava vestir uma fantasia de homem das cavernas. A produção do programa, exibido pela Globo, já poderia ser criticada a partir daí: uma peruca com cabelo supostamente cacheado e cheio de itens "pré-históricos" foi disponibilizada para o brother. Enquanto se arrumava, o sertanejo, que estava no mesmo quarto que João, associou o item ao cabelo do professor.


A reação, por sua vez, foi o silêncio.


Dias depois, João tomou a coragem - aquela, que os filmes gostam tanto de vangloriar - para desabafar sobre o que aconteceu diante de todos da casa. Exibindo o seu black power como uma coroa, o professor de Geografia expôs, em rede nacional, o quão problemática era a fala do colega de confinamento.


"É um momento de muita coragem estar falando isso aqui agora. Mas, o Rodolffo chegou a fazer uma piada comparando a peruca do monstro da pré-história com o meu cabelo. Então, isso pra mim tocou num ponto muito específico porque o jogo pode ser sim de coisas que a gente vive aqui dentro, mas tem que ser um jogo de respeito" (João Luiz)

Sensível e claramente abalado, João Luiz conseguiu bater de frente com algo que vem, sistematicamente, o atacando todos os dias - dentro e fora do reality. A fala tremida, o segurar do choro e o olhar fixo para o seu agressor nada mais foram do que um ato de resistência. Mas o problema está, por sua vez, na exibição de como isso acontece. A culpa não é de João Luiz por expor o que lhe aconteceu, mas sim da emissora e da produção do programa tratarem o racismo como forma de entretenimento.

A conversa subiu a audiência, se tornou uma das mais comentadas do Twitter e até mesmo atrasou as propagandas publicitárias que viriam no intervalo do programa. Tudo à custo da dor e do choro de João, que sequer foi apoiado pela produção do BBB. A palavra "racismo" foi engolida pelo professor naquele silêncio e não foi dita desde então. Enquanto Rodolffo tentava, à todo custo, permanecer com suas falas racistas, o brother se mostrava cada vez mais fragilizado com o preconceito que, dessa vez, aconteceu em frente à 130 câmeras.


"Eu tô cansado de ouvir isso e não é só aqui dentro, é lá fora também. Nunca ninguém tem a intenção de machucar, nunca ninguém tem a intenção de fazer as coisas com a gente. Mas então, por que não é mais fácil pra você reconhecer que errou?", questionou João

Antes de tudo, João Luiz precisa de acolhimento. Racismo não é entretenimento, "fogo no parquinho", ou qualquer tipo de confusão entre duas pessoas - é crime, e custa muito mais que uma peruca barata de homem das cavernas.


 

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