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Os árduos caminhos das representações positivas de casais sáficos nas telenovelas brasileiras

Apesar dos avanços da comunidade LGBTQIAPN+, os casais sáficos não são bem representados na telenovelas



As novelas seguem, até os dias atuais, como a produção audiovisual com maior poder de influência no comportamento dos brasileiros. Mas para ser “aceita” de alguma forma por grupos distintos, e consequentemente garantir boa audiência, os autores se limitam a tratar de temas genéricos e comuns, que muitas vezes são encomendados pelas próprias redes televisivas. 


E baseado nisso, junto a outro somatório de problemáticas, que as minorias sociais ainda são sub-representadas ou excluídas do cotidiano fictício das histórias, a exemplo de pessoas negras ou que façam parte da comunidade LGBTQIAPN+.


Quando falamos especificamente de mulheres lésbicas e casais sáficos nas telenovelas, a situação se torna ainda mais complexa. Em um acordo silencioso, as produtoras evitavam falar sobre o assunto e os autores evitavam escrever sobre elas. 


As poucas personagens que apareceram ao longo dos anos viviam no grande extremo entre reforçar certos estereótipos ligados a lésbicas ou não sinalizar abertamente que se tratava de uma pessoa que se relacionava com outras mulheres. As pouquíssimas representações positivas de casais sáficos nas telenovelas sofreram certa represália do público, que induziu os autores a mudarem os rumos das personagens.


Primeiro beijo lésbico na televisão


Quase 12 anos após o primeiro beijo hétero, aconteceu o primeiro beijo lésbico na televisão, pelo menos que tenha sido catalogado. O momento afetivo aconteceu no teleteatro A Calúnia, na TV Tupi, em 1963.


O beijo foi protagonizado por Vida Alves e Geórgia Gomide, que interpretaram diretoras de uma escola que sofrem com o boato de que tinham um relacionamento amoroso, o que faz com que a instituição feche. No final da trama, as duas percebem que se amam e se beijam.


"A cena foi comentada, mas não senti qualquer sentimento agressivo das pessoas em relação a mim. Tenho certeza que me julgaram, mas não me atacaram. Eu sempre soube fazer cara feia e impedir qualquer aproximação desse tipo", disse Vida em entrevista à revista Época, em 2011.



Inclusive, foi Vida foi a atriz responsável pelo primeiro beijo na televisão, junto com Walter Forster, em Sua vida Me Pertence, em 1951.


A partir de então, houve uma ausência de personagens abertamente lésbicas na televisão. De fato, é difícil afirmar com veracidade essa falta, já que se tornou comum os autores evitarem falar sobre o tema ou optarem por mascarar de alguma forma de que se tratava de mulheres que se relacionam com mulheres.


Em 1974, a primeira versão de O Rebu, escrita por Bráulio Pedroso, surpreendeu ao colocar duas mulheres terminando a novela juntas. Glorinha (Isabel Ribeiro) e Roberta (Regina Viana) decidiram terminar o respectivos casamento e viajaram juntas. A trama não abordou com detalhes sobre o relacionamento entre elas, mas induziu o telespectador a entender que elas formaram um casal.



E essa situação se tornou evidente porque o autor também provocou com um possível romance entre Cauê (Buza Ferraz) e Conrad Mahler (Ziembinski). Porém, a Ditadura Militar proibiu que a situação fosse realmente explorada e determinou que a relação entre os dois fosse colocada como pai e filho adotivo.


Em 10 anos depois, em 1988, o clássico Vale Tudo, escrito por Gilberto Braga, abordou de forma sucinta, mas pioneira sobre casais sáficos. Na trama, Laís (Cristina Prochaska) e Cecília (Lala Deheinzelin) viviam um relacionamento e eram donas de uma pousada, em Búzios. 


Cecília morre em um trágico acidente de carro e o irmão, Marco Aurélio, briga com Laís para ficar com os bens deixados pela empresária. Na época, houve uma pequena discussão sobre o casamento formal entre pessoas do mesmo sexo.



O UOL encontrou documentos da Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), de Brasília, que proibiu algumas falas e assuntos na novela. De fato, os autores escreveram sobre a morte da personagem desde a sinopse, porém, queriam abordar sobre herança de casais homoafetivos, o que não aconteceu completamente.


A censura vetou diversos diálogos a respeito do tema, e tudo ficou subentendido para o público que acompanhou a novela assiduamente. Outro assunto proibido pelo DCDP foi falar abertamente sobre Tiago (Fábio Villa Verde) ser um homem gay. 


"A gente era levada a fazer a cena com sensualidade menos evidente para evitar uma censura maior. Lembro de ter lido cena de beijo na boca, selinho, mas não lembro de ter gravado. O público, no entanto, torcia pela Laís. Diziam que sentiam muito e que o direito da herança era 'meu'. A Laís conquistou o público porque era uma fofa, não era uma sapatão maluca", disse Cristina Prochaska, em entrevista ao UOL.


O avanço das pautas explodiram em rejeição


Após a censura imposta pela Ditadura Militar, a televisão brasileira viveu momentos de glória e liberdade quase absoluta, sobretudo para tratar sobre temas considerados proibidos. Porém, apesar da mente “aberta” de certos grupos, principalmente de quem escrevia e atuava, boa parte da população ainda não enxergava minorias como cidadãos comuns, com direitos e deveres sociais. 


Casais gays ainda sofriam com falta do desenvolvimento dos personagens ou apenas por deixar tudo no lúdico, a ser interpretado pelo telespectador. As lésbicas, por puro machismo, também sofriam com o silenciamento e a ausência de um enredo que realmente mostrasse a realidade.


A tentativa de trazer um casal sáfico voltou a acontecer, de forma evidente, em Torre de Babel, escrita por Silvio de Abreu, em 1998. Na sinopse, o autor escreveu que Rafaela (Christiane Torloni), namorada de Leila (Silvia Pfeifer), morreria na explosão do shopping, logo nos primeiros capítulos. Porém, a sobrevivente iria se envolver com uma mulher mais velha, Marta (Glória Menezes). 


O casamento com César Toledo (Tarcísio Meira) estava ruindo e ela deixaria o marido para viver com Leila. Porém, o enredo não agradou os grupos de pesquisa da novela e a história precisou ser alterada. Na época, Silvio e Carlos Manga, diretor da novela, entenderam a rejeição sofrida pelo casal inicial e decidiram encerrar a história das duas. Elas morreram na explosão do shopping. 




"Nunca ouvi qualquer coisa a respeito da minha personagem ou da personagem da Christiane, ou mesmo da relação entre as duas. Não cheguei a sentir na pele, mas é claro que, nos grupos de estudo e de avaliação da novela, deve ter vindo à tona [o preconceito]", disse Silvia em entrevista ao NaTelinha.


"Como houve dificuldade de aceitação do casal, decidiram não seguir com o envolvimento da Leila com outra mulher. Por respeito a mim e à própria história da personagem, e com o desejo de criar algo realmente interessante e forte, decidiram matar Leila e Rafaela juntas. Fui chamada para algo que acabou não sendo possível, e tudo que um ator quer é ser respeitado", disse a atriz.


Nas cenas exibidas pela Globo, não houve beijo entre elas. As personagens eram casadas, moravam juntas, e isso era mostrado de forma aberta. A troca de carinho entre elas foi presente, com abraços, conversas íntimas e muito afeto, tudo de forma sutil.


Nos anos 2000, dois casais marcaram o imaginário coletivo, ao se tratar em novelas no Brasil. Os autores não tiveram receio em colocá-las em um relacionamento homoafetivo, mesmo com certas proibições da emissora, que temia pela rejeição completa do público. Apesar disso, foi possível ver, de fato, um enredo mais desenvolvido e com o objetivo de manter a história, e não ceder de primeira como aconteceu nos anos que passaram.


Em 2003, o público foi à loucura com Mulheres Apaixonadas, novela de Manoel Carlos que colocava o universo feminino em destaque, com as problemáticas, desejos e liberdades que todas sonhavam de fato. Um dos enredos que chamou a atenção foi de Clara (Alinne Moraes) e Rafaela (Paula Picarelli), jovens que viviam um romance bonito, apesar dos pesares.



Desde o início foi sinalizado de forma evidente de que elas eram um casal, sobretudo pelas atitudes dos pais de Clara, que a proibiam a todo custo de viver o relacionamento de forma livre. Além disso, as duas, que ainda estudavam, sofreram com lesbofobia por parte de outros alunos e dos responsáveis da escola. 


Nas cenas, como sempre, demonstravam afetividade e compreensão em muitos momentos, como em um relacionamento comum. Porém, o tão aguardado beijo só aconteceu no último capítulo, quando elas encenaram a peça Romeu e Julieta, de Shakespeare. 


Na época, o público aceitava, em partes, o relacionamento entre as duas, mas rejeitou completamente um beijo mais apaixonado entre elas. Além disso, o Maneco sinalizou que a intenção era tratar do tema com certa morosidade para evitar que a trama desandasse.


"Não as cortarei da trama simplesmente por vontade do grupo [de pesquisa]. É preciso que junto com a opinião e a reprovação do grupo ocorra uma proibição da empresa. Estou abordando o tema com cuidado. Não quero ter de matar ou afastar as atrizes, cancelando a história. Prefiro resolver de outro modo, caso me impeçam de prosseguir", disse o autor em entrevista à Folha de São Paulo.


"Sei que existem limites. Se as pesquisas aprovam o relacionamento das duas e se a audiência não cai quando elas aparecem, isso se deve a uma abertura maior, mas também à forma delicada com que estou tocando a história. Então, longe de mim qualquer provocação. Um beijo na boca entre dois homens ou duas mulheres em uma novela, seria perder a história. Viriam todos para cima de mim", disse Maneco.


Uma representação super positiva de casal sáfico, com as devidas limitações, aconteceu em Senhora do Destino, em 2005. Na trama escrita por Aguinaldo Silva, Eleonora (Mylla Christie) e Jenifer (Bárbara Borges) se tornam amigas e logo descobrem que estão apaixonadas uma pela outra.



As personagens tinham uma história própria correndo, mesmo que muito timidamente. A construção da personagem ajudou na "aceitação" delas perante o público, que acompanhou de perto os conflitos delas sobre o relacionamento. 


Mas como sempre, sem nenhum tipo de beijo ou carinho direto pôde ser mostrado. Um selinho rápido, meio "sem querer" foi exibido, mas na época, elas eram apenas amigas. O momento mais íntimo entre as duas foi exibido quando elas apareceram na cama, nuas, em um momento de reconciliação. No final da novela, elas vão morar juntas e adotam um bebê, uma criança negra.


Porém, como nem tudo são flores, a reexibição da novela, em 2017, no quadro Vale a Pena Ver De Novo, retirou boa parte das cenas de diálogos afetuosos entre as duas. O público que assistiu pela primeira vez, não conseguiu compreender de forma evidente qual o tipo de relação elas tinham.



Mesmo no avanço, retrocedemos


Em 2011, o Superior Tribunal Federal (STF) equiparou os mesmo direitos e deveres de um casamento hétero em um casamento homoafetivo. Ou seja, a Corte reconheceu as relações entre pessoas do mesmo sexo como núcleo familiar. Dois anos depois, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou uma resolução para que coibisse que juízes e tabeliões se recusassem a realizar casamentos LGBTQIAPN+. A partir de então, todos os cartórios do Brasil foram obrigados a realizá-los.


Ainda em 2011, o SBT surpreendeu o público ao exibir a novela Amor e Revolução, escrita por Tiago Santiago, que tratava sobre os anos de Ditadura Militar no Brasil. Um dos temas que chamou a atenção do público foi o beijo entre Marina (Giselle Tigre) e Marcela (Luciana Vendramini). 



Na época, a emissora esperava por um grande pico de audiência por conta da ousadia exibida no horário nobre. Por se tratar de uma novela com teor militar, os grupos conservadores rejeitaram o casal. Um segundo beijo tinha sido gravado, mas foi vetado pelo SBT, o que gerou revolta.


Apesar disso, as personagens foram bem trabalhadas na época, tiveram uma história delicada e com muita demonstração física de afeto. O casal é lembrado com muito carinho.


Com os debates sociais se tornando mais amplos após 2010, as demandas da comunidade ficaram em foco nos meios de comunicação. Apesar dos brasileiros começarem a falar com certa naturalidade e consciência sobre o assunto, isso não significou um avanço, pelo menos, não para o principal produto do país: as novelas.


Nessa época, dois casais sáficos são lembrados em telenovelas: um pelo sucesso e outro fracasso. O primeiro foi Clara (Giovanna Antonelli) e Marina (Tainá Muller), em Em Família, de Manoel Carlos. Novamente, Maneco conseguiu construir bem as personagens, com enredos próprios e conflitos que fizeram o público se prender na história. 


O romance foi colocado como insinuação, que foi percebendo aos poucos que se tratava de um casal. A única cena de beijo aconteceu no casamento entre elas, no final da novela, de uma forma muito simples e crua: um selinho "sem mexer a boca", como foi pedido pela direção.





Na época, a novela não estava bem de audiência e recebeu muitas críticas, inclusive por televisionar um casal sáfico. Porém, a internet ajudou para que a história não ruísse de vez. Até hoje, é possível ver vários fã clubes e meninas que viram a cena, se identificaram e conheceram um pouco mais de si com a demonstração de afeto.


"Tem gente que torce muito, que são as Clarinas, um beijo para elas. As Clarinas são muito mobilizadas. Todos os dias elas colocam algo na internet, elas se mobilizam muito. Elas criam fan-fiction, uma história em cima da história. É algo que não esperava ver. Recebo cartas de vários lugares do mundo. Elas são muito carinhosas. Elas realmente querem que o casal aconteça", disse Tainá Muller em entrevista ao UOL.


Um ano depois, em Babilônia, escrita por Gilberto Braga, o grande choque foi no primeiro capítulo quando Estela (Nathalia Timberg) e Teresa (Fernanda Montenegro) se beijam, sem nenhum tipo de cerimônia. As duas interpretaram um casal juntos há 30 anos e com filho. A naturalidade assustou o público, que rejeitou de primeira o relacionamento.





Por conta dos comentários ruins, a direção não permitiu que o beijo se tornasse frequente. As duas tinham uma relação afetuosa, mas nada além do "ponto" que era permitido por eles, com aval do público. 


"Por que não? Na história estávamos casadas havia 40 anos. O beijo foi um escândalo. Hoje não haveria aquela repulsa a esse carinho. Caminhamos e a caminhada foi bastante ágil. Destaco que todo o ganho libertário na dramaturgia televisiva se deve a Gilberto Braga. A quem reverencio", disse Fernanda anos depois da exibição da trama.


O fato de duas mulheres idosas serem representadas como casal também pesou para a rejeição. Ainda é comum, e naturalizado, achar que pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ envelhecem sozinhas e não tem direito de ter uma vida amorosa ativa ou simplesmente, não conseguem manter um relacionamento por tanto tempo. 


De fato, o casal não teve tanto apelo popular da comunidade, principalmente das jovens que movimentavam a internet da época. E muito se fala sobre o etarismo que as duas sofreram durante o decorrer da trama.


Outra cena de beijo aconteceu, de maneira bem mais branda, quando elas resolveram se casar na novela, após trocarem os votos apaixonadas.



A caminhada ainda é longa


O movimento de trazer mais diversidade para as novelas deu um pouco de liberdade para os autores, que resolveram ousar e fazer personagens lésbicas ou bissexuais. A Globo, que é a maior produtora de novelas do país, percebeu o momento e decidiu se abrir um pouco mais para os temas. 


Porém, isso não significa que eles tiveram de acordo para retratar, de forma positiva, casais homoafetivos, sobretudo entre mulheres. O fato é que a rejeição maior recai para o corpo feminino, que ainda precisa lidar com o machismo e misoginia. E aqui, não se faz comparações entre casais gays x casais sáficos. Todos sofrem, de alguma forma, com a ausência e dignidade.


Os novos autores também deixaram o medo de lado e decidiram ousar, jogar para o público para que eles fizessem pressão a favor dos personagens. Essa estratégia foi muito utilizada para vários casais sáficos que se formaram de uma forma não direta na ficção: como Lica e Samantha, em Malhação Viva a Diferença (2017), e Gabriela e Ilana, em Um Lugar ao Sol (2021) e Carol (Karine Teles) e Natália (Mariana Santos) em Elas Por Elas (2024).


Entre insinuações e troca de olhares afetuosos entre as personagens, o público fez questão de apontar e abraçar os casais como algo positivo e fazer com que o barulho da aceitação fosse maior do que o da rejeição. E foi assim que a direção bancou as escolhas e fez de uma forma delicada que as duas tivessem um relacionamento.


Mas como nada é completamente positivo, a comunidade sofreu com retrocessos em 2023 nas novelas da emissora. Em Vai na Fé, o casal Clara (Regiane Alves) e Helena (Priscila Sztejnman) se beijaram após muitos protestos nas redes e até boicotes. A autora Rosane Svartman fez o jogo do público para juntar o casal, que foi descobrindo o interesse mútuo aos poucos, também de uma forma morosa.





Na época, o alto escalão da emissora, que tinha acabado de ser mudado, vetou o beijo e qualquer tipo de afeto evidente entre elas. A justificativa foi o medo da rejeição perante o público mais conservador. 


Para se ter ideia, até mesmo na série Aruanas, que foi exibida no horário nobre, também teve censura escancarada do beijo caloroso entre Olga (Camila Pitanga) e Ivona (Elisa Volpatto). A direção editou a cena para que fosse exibido apenas um selinho, o que revoltou as pessoas que tinham assistido anteriormente e perceberam a mudança de forma descarada.


O fato é que mesmo com o passar do tempo e o avanço dos debates entre as minorias, os grandes responsáveis pelas produções nacionais continuam sendo homens, brancos, conservadores e que não tem a coragem de enfrentar críticas, mesmo sendo elas descabidas. Por isso, é preciso ressaltar a importância de que pessoas da comunidade LGBTQIAPN+ recebam mais incentivos financeiros para produção de histórias envolvendo a própria comunidade, com respeito e dignidade.


Além disso, é louvável o esforço de jovens da comunidade em brigar para terem, pelo menos na ficção, a certeza de um final feliz para o casal homoafetivo. O barulho das redes sociais conseguem fazer a diferença e agora mudar o rumo das histórias, para o bem.

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