"Pedágio" e a tolerância que não acolhe
Novo longa de Carolina Markowicz cumpre seu papel de retratar a hipocrisia da sociedade brasileira
Tiquinho é um jovem prestes a completar 18 anos, que mora em Cubatão, município do interior de São Paulo. "Tiquinho" é como sua mãe, Suellen, o chama, mas seu nome é Antônio. A mesma mãe que o reprime todos os dias de sua vida apenas porque o rapaz gosta de gravar vídeos performando músicas em inglês de divas do jazz estadunidense, vendendo seus cosméticos através da internet. E ele a ama. E ela o ama. Mas Suellen já não aguenta mais. Nem o filho, nem o namoro problemático, nem o trabalho, nem as dívidas. É nesse cenário que "Pedágio", novo longa da diretora e roteirista Carolina Markowicz, insere o telespectador.
O premiado filme, que estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta (3o), é o segundo da cineasta, que estreou com o aclamado "Carvão" (2022), também protagonizado por Maeve Jinkings - sempre entregando uma atuação impecável. Desta vez, Kauan Alvarenga, que interpreta Tiquinho, divide os holofotes com a renomada atriz, com um trabalho delicado, que consegue captar diversas emoções em apenas uma engolida em seco. Até seu jeito blasé, que provavelmente também acontece por conta da falta de experiência do ator, também funciona aqui.
"Pedágio" aborda centralmente um tema já conhecido no cinema nacional: a hipocrisia da sociedade brasileira, que prega conservadorismo, mas que não o pratica em seu íntimo. "Divino Amor" (2019) de Gabriel Mascaro é um dos principais exemplos de filmes que abordam a mesma área. Anita Rocha da Silveira é outra diretora que gosta do assunto, com "Mate-me Por Favor" (2019) e "Medusa" (2021)". Neste ponto, "Pedágio" acerta e erra.
A relação entre Suellen e Tiquinho é uma das relações entre mãe e filho mais complexas que já assisti no cinema brasileiro. É nítido o afeto entre ambos, o cuidado que eles têm um com o outro, refletido em pequenas atitudes, como Tiquinho levando hambúrguer do seu trabalho para casa, para Suellen. Inclusive, o cuidado e o olhar doce partem mais de Tiquinho para com Suellen do que o contrário, mesmo que este também aconteça em menor medida.
Suellen não consegue cuidar de fato do filho por conta de uma série de fatores, mas um dos principais é a sua preocupação excessiva com o pensamento de terceiros, algo que parece não afetar tanto Tiquinho. Ele observa o mundo com um olhar completamente diferente, literalmente cor de rosa, como enxerga pelas lentes do seu óculos colorido.
O problema de Suellen com Tiquinho não é ele ser gay, é o que as pessoas ao redor deles irão pensar sobre ele ser gay e afeminado. Os vídeos que o filho faz circulam entre os colegas de trabalho dela, sempre com piadas depreciativas.
Uma dessas colegas de trabalho é quem apresenta a "cura gay" para Suellen. A personagem Telma, interpretada por Aline Marta Maia, é a personificação da sociedade conservadora hipócrita.
Enquanto trai o marido praticamente todos os dias no trabalho do pedágio, Telma condena veementemente o comportamento de Tiquinho, colocando a homossexualidade como algo diabólico. Fala sobre o "Novembro Arco-Íris contra a pederastia" e, finalmente, conta para Suellen sobre um "tratamento parar cura da homossexualidade", uma "cura gay", que consiste num "curso" dado por um pastor estrangeiro.
Apesar de puxar risadas de quem assiste, algumas cenas com Telma pecam no timing do humor e no tipo dele, transformando-a numa caricatura exagerada e sem grande complexidade.
Outro ponto que perde sua seriedade de forma negativa é a "cura gay". Na vida real, um processo como esse é permeado por traumas intensos, psicológicos e até físicos, que consistem em culpas, desejos reprimidos de forma brusca e violências. Em "Pedágio", esse processo se torna uma piada sem força alguma, onde os "alunos" saem quando querem, como se estivessem de forma voluntária no local. É uma outra caricatura esdrúxula e simplificada demasiadamente, fazendo parecer com que o processo não seja tão grave quanto verdadeiramente é, levando pessoas a cometerem crimes contra a própria vida.
E como Tiquinho vai parar nesta "cura gay", um "curso" caríssimo, também é feito de uma maneira corrida, de certa forma. Até certo ponto do filme, Suellen repudia completamente os crimes de furto do namorado, Arauto, interpretado por Thomas Aquino. Quase que de uma hora para outra, ela vai atrás do mesmo Arauto para propor uma parceria de roubo, com o objetivo de arrecadar dinheiro para pagar a "cura gay" de Tiquinho.
Arauto recebe atenção demais enquanto outros personagens, como Telma, poderiam ter suas histórias melhor desenvolvidas. A trama do crime se perde um pouco em alguns momentos, mesmo sendo crucial para o desenrolar da trama.
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A fotografia de "Pedágio", assinada por Luis Armando Arteaga, se une com a direção de arte de Vicente Saldanha em um combo magnífico. Os planos mais abertos contam uma história solitária, de um local longe das grandes cidades mas cheio de complexidades. Já os planos mais fechados, maioria no filme, transmitem o sufocamento dos personagens e de suas relações, com foco nos diálogos e expressões.
Além disso, a obra é visualmente bonita, com elementos que fazem toda diferença no contar da história. Tudo em cena faz com que "Pedágio" pareça uma história real e comum. Os pratos de comida, o trabalho de Tiquinho, desenhos nas paredes, as roupas, os utensílios de casa.
Não é só visualmente que "Pedágio" acaba parecendo uma história real. O principal motivo para isso é a construção dos personagens, trunfo do filme. Você consegue entender as motivações de cada um, mesmo que ele não conte o passado exato deles. É interessantíssimo observar como Suellen e Tiquinho se rejeitam e se aproximam, com toda a carga de uma relação de mãe e filho sozinhos no mundo carregam.
"Pedágio" é uma obra importantíssima para entendermos o funcionamento de vários lares brasileiros nos dias de hoje. É sobre entender que somos feitos de camadas que se contradizem, que relações não são óbvias e que cada pessoa tem um histórico que a faz ser como é. Seu final é agridoce, foge do comodismo e das soluções simples e demonstra que a vida continua. Mostra que, mesmo quando se tolera as diferenças, muitas vezes essa tolerância não tem nada a ver com acolhimento e celebração. E encarar isso não é nada fácil.
Veredito: 3,8/5
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