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"Pobres Criaturas": açúcar, violência, bonecas e monstros

Atualizado: 31 de jan.

Indicado a 11 Oscars, filme de Yorgos Lanthimos tem Emma Stone como uma nova versão de Frankenstein


Quando se nasce com um órgão sexual designado como feminino, logo te apontam como mulher. A partir daí, tudo que você deve fazer está praticamente escolhido e definido socialmente: se comportar, obedecer, ser compreensiva, se doar, abrir mão de si mesma e se guardar, principalmente no sentido da sua sexualidade.


Bella Baxter, personagem interpretada por Emma Stone em Pobres Criaturas, não está nem um pouco interessada em nada disso que foi citado. A protagonista do novo filme de Yorgos Lanthimos (A Favorita, O Lagosta), que chega aos cinemas brasileiros neste dia 1 de fevereiro, busca exatamente o contrário do que se é esperado socialmente de uma mulher. E isso a torna um monstro? Talvez, mas isso não é necessariamente algo ruim.


No filme indicado a 11 categorias no Oscar 2024 e vencedor do Leão de Ouro 2023 em Veneza, acompanhamos a jornada de Bella, uma mulher que é trazida de volta à vida após se suicidar enquanto estava grávida. Inicialmente morando com seu "criador", o cientista Godwin Baxter (Willem Dafoe) — que Bella chama de "God" ("Deus"), numa analogia interessante —, a jovem não tem memória alguma de sua vida anterior e, como explica Godwin, está aprendendo tudo como se tivesse acabado de chegar ao mundo como conhecemos.


Ou seja: nos momentos iniciais, seu desenvovimento cognitivo é como o de uma criança, enquanto seu corpo é o de uma mulher completamente desenvolvida. É isso que a torna um atrativo tão grande para homens adultos, numa crítica evidente à versão 'pedofílica' existente até hoje. Ela ainda não conhece o mundo, não entende tantas coisas e não vai se opor ao que eles quiserem fazer, quase como uma boneca.



Quando um ajudante, interpretado por Ramy Youssef, é contratado por Godwin para o auxiliar nos estudos do seu novo experimento vivo, Bella inicia uma outra fase e começa a se descobrir e ter seus próprios desejos. Numa tentativa de limitação do seu experimento, o cientista tenta a manter em casa com o ajudante. Mas Bella, com seus desejos recém-descobertos, não aceita ficar trancada para sempre. Logo no momento em que ela começa a explorar sua sexualidade? Não, não. Ela não quer.


A saída de Bella do seu "mundinho faz-de-conta" e a perda da sua inocência é um processo abordado de forma interessante, que vai acontecendo de forma gradual ao longo de Pobres Criaturas, num ritmo gostoso de acompanhar.


A história é inspirada no livro homônimo de Alasdair Grey, publicado em 1992. Mas a principal diferença entre o livro e o filme de 2023 é que, no livro, tudo é visto pela perspectiva dos outros personagens; já no longa-metragem, a perspectiva que temos é a da protagonista e, em ambos, ela é uma releitura do Frankenstein de Mary Shelley.


"Não encontrei nada fora açúcar e violência"


Lanthimos quis fazer um universo visto aos olhos de Bella, com cores fortes que transmitem exatamente como ela está se sentindo naquele momento do longa: a diferença entre um filme preto e branco e um filme colorido demarca bem essa noção. A visão dela do mundo é de descoberta, fantasia, curiosidade, tanto para o bom quanto para o ruim, já que é como se você estivesse vendo tudo pela primeira vez. Até a escolha dos enquadramentos com lente olho de peixe comunicam essa visão.



As técnicas usadas pela equipe para fazer Pobres Criaturas explicam os motivos do mundo do filme ter funcionado bem. Para criar os cenários, o diretor pediu que o CGI e efeitos visuais completamente digitais fossem usados o mínimo possível. Para isso, vários ambientes foram criados em estúdio nos mínimos detalhes. Grandes paisagens tinham versões em miniatura e backdrops pintados à mão. A gravação, edição e pós-produção mesclaram técnicas utilizadas no cinema da década de 1930 até os dias de hoje, gerando uma estética única.


A estética de Pobres Criaturas é, com certeza, um dos pontos que mais vem chamando atenção desde a divulgação das primeiras imagens do filme. Aqui, há uma predominância óbvia do estilo da Era vitoriana, entre o final dos anos 1800 e início dos anos 1900. O figurino, os prédios, todos tem referências pesadas ao período.


Porém, nem tudo no filme é vitoriano, com elementos significativos de outras eras da história até os anos 2020. Um dos figurinos de Bella, por exemplo, mistura uma blusa com mangas longas e bufantes, fechado até o pescoço, mas que é um cropped e vem nela junto com uma saia curta, que jamais seria utilizada por uma mulher nos anos 1800.


O que a obra nos expõe, ao misturar isso, é que o que está sendo criticado e apontado ali é atemporal. Afinal, mesmo com todas as diferenças entre os séculos que a humanidade já passou, as opressões e questões de classe, gênero, raça e sexualidade continuam existindo, mas com roupagens diferentes.


Outro ponto sobre o perfeccionismo e o cuidado com os detalhes no visual se estende para os cenários e também nos figurinos de Bella: a forma como a sexualidade está quase sempre presente de forma natural. Formatos de órgãos sexuais podem ser vistos em vidraças e boa parte das roupas de Bella têm vulvas de alguma forma. Inclusive, em um dos pôsteres do filme (que são um destaque à parte), isso já era notável.


O Mundo de Bella


O romance O Mundo de Sofia, escrito por Jostein Gaarder e publicado pela primeira vez em 1991, acompanha uma menina que vai passando por toda a história da filosofia ocidental, descobrindo sobre cada movimento capítulo por capítulo.


Um fenômeno parecido acontece com Bella Baxter em Pobres Criaturas. A personagem, ao longo de seu crescimento emocional e mental, entra em contato com vários movimentos filosóficos e sociológicos, como o hedonismo, anarquismo, niilismo, realismo e socialismo, sempre se colocando interessada e disponível o suficiente para entender as motivações que levaram cada personagem a segui-los, mas elaborando ao mesmo tempo sua própria visão de como as coisas funcionam.

A filosofia é um elemento forte em tudo que envolve Frankenstein, então, evidentemente, não é diferente com Pobres Criaturas. O nome do Dr. Godwin Baxter referencia diretamente William Godwin, jornalista, escritor e filósofo inglês conhecido como representante do pensamento utilitarista — sistema filosófico moral e ético onde uma ação útil é denominada como a mais correta. Godwin é, inclusive, considerado o precursor do anarquismo moderno e foi o pai de Mary Shelley, autora de Frankenstein.


Além da clara referência, há o simbolismo, já mencionado no início deste texto, com o apelido de Godwin usado por Bella: "God", "Deus". Ela é literalmente sua criação, seu primeiro contato com o mundo real foi a partir do mundo dele e ela não escolheu viver — pelo contrário, a mulher que ela era antes havia decidido acabar com a própria vida. Se torna uma metáfora interessante sobre como noções religiosas e filosóficas são colocadas em nós antes mesmo de termos noção do que somos, sem sequer termos escolhido vir ao mundo em primeiro lugar.


Porém, isso não quer dizer que o filme condena a figura de "Deus" ou de um deus, ou até deuses. A relação entre os personagens de criador e criatura é de suporte e apoio, principalmente depois que Bella sai do ninho em que estava e consegue entender quem ela é e quem ela quer ser.


Bonecas e monstros


Simbolismos estão presentes em Pobres Criaturas o tempo todo, desde os personagens em si até os mínimos detalhes de direção de arte e design de produção.


Bella Baxter é boneca e é monstro ao mesmo tempo, já que é uma "aberração" criada em um laboratório de um cientista "maluco", mas também é boneca, já que quase todos os outros personagens do filme estão tentando brincar com ela e a moldar ao que bem entendem.



O filme é quase como uma versão subversiva de Barbie (2023), de Greta Gerwig, mas as similaridades entre Bella e a Barbie só vão até o ponto em que ambas quebram com a visão "infantilizada" que têm do mundo e entram em contato com quem elas querem ser verdadeiramente, não com o que os outros esperam que elas sejam.


Os homens no filme de Yorgos Lanthimos não conseguem, mesmo quando estão com as maiores boas intenções, compreender por completo o que Bella sente, nem o que as mulheres sentem. [Possíveis spoilers a partir daqui!] Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo) e Max McCandles (Ramy Youssef) são pontos distintos de como homens enxergam mulheres. Duncan vê Bella como um objeto para sua própria diversão, não consegue a ver como um ser humano de verdade. Quando fica claro que ela não depende dele e tem vontades e pensamentos próprios, Duncan surta, sem entender o que está acontecendo e por quê ela está agindo assim. A coloca como um demônio, um monstro que entrou em sua vida para destruí-la. Parece até a visão que alguns homens possuem sobre mulheres... ainda nos dias de hoje. [Fim dos spoilers]


McCandles vê Bella com uma admiração genuína, mas isso ainda não o faz entender o que ela é nem o que ela quer por completo. A diferença maior se mostra em como Max e Duncan vão reagir às decisões tomadas por ela.


A autonomia no renascimento


Bella Baxter é um exemplo do que poderia acontecer se uma mulher viesse ao mundo e passasse por todas as fases de amadurecimento mental e emocional num período curtíssimo de tempo, se tornando praticamente imune à socialização forçada.


Isso acontece porque a socialização que recebemos, o entendimento do que é moral, ético, certo ou não, é feita por repetição e leva anos para acontecer. Nós não nascemos com o que pensamos, isso nos é colocado na mente durante toda a vida, com reforços constantes para que consigamos assimilar e seguir as regras.


A mulher, grávida, que se suicida no início da história, o faz porque não suporta mais o peso emocional, mental e social que foi e é atribuído às mulheres, inclusive ela. A mulher que renasce e que é ao mesmo tempo filha e mãe — inclusive, este ponto parece ter referência direta ao fato de que a mãe de Mary Shelley morreu após dar a luz —, consegue quebrar o ciclo de sofrimento, abuso e desgaste, podendo escrever uma nova história. Aqui, ela não consegue mais ser persuadida a fazer o que não quer, mesmo com tantas tentativas de manipulação que sofre. Tem suas próprias convicções, representadas fortemente também pela sua visão de sexualidade: ela não se reprime e nem reprime outros, independente de como cada pessoa performa seus desejos.


É irônico que este ponto pode ser um tiro no pé de Lanthimos, que traz para nós um filme como esse, tão expositivo e explícito, sem medo de ser "sujo", num momento crítico para como o sexo é visto em mídias assim, principalmente pelas novas gerações. O conservadorismo e o pudor excessivo estão, aparentemente, voltando; a falta de visão metafórica e subjetiva de obras de arte pode fazer com que nem todo mundo consiga ver o filme com bons olhos.


Para mim, Pobres Criaturas se tornou um dos meus favoritos de 2023 (talvez, da vida) e deixou um quentinho no coração ao mesmo tempo que alimentou o monstro dentro de mim que, como mulher, tenho vontade de soltá-lo tantas vezes. Será que eu também viraria um monstro se agisse mais como Bella? Talvez, mas isso não é necessariamente algo ruim.


Veredito: 5/5

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