Quem pode ser filho do dragão? A representatividade de minorias em House of the Dragon
Atualizado: 30 de mai. de 2023
Abordagem guarda diversas diferenças em relação a "Game of Thrones"
Aviso: o texto contém spoilers de “House of the Dragon” e “Game of Thrones”
Um fenômeno! É assim que podemos definir, sem dúvidas, “House of the Dragon” (ou “Casa do Dragão”), prequel de “Game of Thrones”. A série, que chegou ao fim no último domingo (23), é uma das obras de maior destaque do ano e furou a “bolha” dos fãs de fantasia para se tornar um sucesso global, assim como a trama original que a inspirou.
Para além do sucesso dos 10 primeiros episódios inaugurais, chama a atenção o modo como alguns grupos sociais minoritários foram tratados na produção da HBO, em especial mulheres, negros e pessoas LGBTQIA+. A representatividade na série possui, inclusive, alguns avanços em relação à obra que lhe deu origem.
Herdeiras do dragão
Boa parte da história da série é contada pela visão de Rhaenyra Targaryen (Emma D'Arcy) que, ao ser apontada como herdeira do Trono de Ferro em um universo profundamente misógino, é cercada de oposições. A personagem tem um grau de emancipação pessoal notável, dos pontos de vista pessoal, afetivo e até mesmo sexual.
A rainha e antiga amiga, Alicent Hightower (Olivia Cooke), representa um outro extremo. Ao contrário da herdeira, ela é colocada em posições que a fazem se forçar a ser o que se espera de uma mulher nesse universo. Estimulada a ser um peão, assume uma persona conservadora e antagônica à Targaryen de quem era próxima na adolescência.
Assim, a série é focada em duas personagens profundamente complexas - especialmente Alicent. Ambas erram, são influenciadas pelo seu meio e também tem fortes motivações individuais.
A série é clara em mostrar como as personagens são profundamente marcadas pela opressão masculina que as cerca, mas também possuem uma agência própria. Esse também é o caso de Rhaenys (Eve Best), candidata preterida pelo trono que tem menos destaque, mas não é menos interessante;
É o que destaca Olivia Cooke, intérprete de Alicent, ao Hollywood Reporter:
“Há momentos em que eu e Emma estamos em cena e estamos cercades de [personagens masculinos] sendo idiotas. E sabemos que se todos esses homens se f*dessem, e fôssemos apenas nós, o reino estaria bem”.
“House of the Dragon” também tomou o cuidado na retratação de cenas de violência contra mulheres. Não foram mostradas cenas de violência sexual, por exemplo. “Já vimos isso na TV antes. Você não precisa ver o ato em si”, disse Ryan Condal, showrunner da série, para o The Times, em relação a um ato de violência no episódio 8, que é apenas relatado.
A decisão vai na contramão de “Game of Thrones”, que gerou inúmeras críticas pelo modo como tratou o estupro, e como tratou personagens femininas de forma geral. A série chegou a mostrar, por exemplo, personagens como Sansa Stark (Sophie Turner) e Daenerys Targaryen (Emilia Clarke) sendo violentadas.
Nos bastidores, também houve avanço em relação à representatividade feminina: e “House of the Dragon” atingiu marcas que a própria “Game of Thrones” não alcançou.
Ao contrário da série original, a prequel teve episódios que foram tanto dirigidos quanto roteirizados por mulheres. Clare Kilner dirigiu 3 episódios da temporada, e Geeta Vasant Patel dirigiu outro. Charmaine DeGraté, Sara Hess e Eileen Shim estiveram entre as roteiristas da temporada, um recorde para séries desse universo.
Na frente e atrás das câmeras: a presença LGBTQIA+ na série
A representação LGBTQIA+ ainda é algo bastante raro em séries de destaque e em obras de fantasia de modo geral. Seguindo os passos de seu material base, o livro “Fogo e Sangue” de George R. R. Martin, “House of the Dragon” nos apresentou Laenor Velaryon (John MacMillan), pretendente de Rhaenyra que, secretamente, é um homem homossexual.
Ainda que não seja um dos personagens de maior destaque, é possível categorizá-lo como uma representação gay satisfatória. O personagem não é reduzido à posição de vítima de LGBTfobia e violência, ainda que tenha que manter sua sexualidade em sigilo por conta do conservadorismo do universo ficcional.
A não-heteronormatividade é tratada aqui como algo discutido apenas de forma velada pelos nobres, mas há um certo nível de compreensão e aceitação em relação a Laenor enquanto homem gay, especialmente de sua noiva Rhaenyra e de sua mãe Rhaenys. Mesmo quando há incompreensão, como no caso do seu pai Corlys, não há violência ou sofrimento por conta de sua sexualidade.
Além disso, o personagem se junta a outros como Jesper Fahey (Kit Young), de “Sombra e Ossos”, como um dos ainda raros exemplos de homem negro LGBTQIA+ em séries de fantasia ou ficção-científica na TV. Mesmo racializado, não é em momento algum sexualizado, mesmo que isso seja algo recorrente na retratação de homens negros na mídia.
Outro ponto a se destacar tem a ver com o modo como Laenor deixa a série. Ao contrário da versão literária, onde sua morte acontece de fato, na produção da HBO, ela é apenas forjada, com sua conivência.
Ainda que não seja o final mais feliz possível, é algo que livra o personagem de cair no clichê “Bury Your Gays”, tendência ficcional na qual personagens LGBTQIA+ são mais propensos à morte do que personagens heteronormativos.
É possível que a alteração tenha sido motivada pela revolta de fãs em casos recentes de mortalidade LGBTQIA+ em séries, como “The 100” e “Killing Eve”. O desfecho também é uma novidade em relação a “Game of Thrones”, onde personagens assumidamente homossexuais ou bissexuais, como Loras Tyrell (Finn Jones) e Oberyn Martell (Pedro Pascal), foram mortos.
Entretanto, o personagem Joffrey Lonmouth (Solly McLeod), namorado de Laenor na adolescência, não teve a mesma sorte. Ele teve um fim brutal pelas mãos de Sir Criston Cole (Fabien Frankel), o que interrompeu o romance homoafetivo recém apresentado na série, com Joffrey tornando-se mais um personagem LGTQIA+ morto precocemente. Ainda que tenha acontecido nos livros, a morte foi fruto de muitas críticas on-line.
Mesmo que não haja representação trans na história em si, Emma D’Arcy é um dos raros exemplos de pessoa não-binária em papéis de destaque de séries de alto orçamento. Emma (que utiliza os pronomes neutros elu/delu), superou nomes mais conhecidos na disputa pelo papel.
Elu destaca em entrevista para o Hollywood Reporter que possui uma certa identificação com sua personagem. “Rhaenyra tem uma batalha contínua com o que significa ser uma mulher e é fundamentalmente alguém ‘não pertencente’”, afirma.
“Ela [Rhaenyra] tem medo de ficar presa à maternidade e sabe como sua posição seria diferente se ela fosse homem. Eu sou uma pessoa não-binária. Eu sempre me senti atraíde e repelide pela identidade masculina e feminina e acho que isso acontece com verdade aqui”, disse Emma.
Vale a pena conferir
A Casa Velaryon: representatividade racial
Pouco citada em “Game of Thrones”, a Casa Velaryon é bastante importante nos eventos do livro “Fogo e Sangue”. Na série, há o diferencial de seus membros serem negros, ao contrário dos livros, onde são brancos assim como os outros lordes de Westeros.
Essa foi uma escolha consciente da produção para trazer diversidade racial para o universo, com pessoas negras em posições de poder, como afirma o showrunner da série, Ryan Condal, em entrevista à Entertainment Weekly.
"O mundo é muito diferente agora do que era há 10 anos, quando [Game of Thrones] começou. É diferente de 20 anos atrás, quando Peter Jackson fez O Senhor dos Anéis. Esses tipos de histórias precisam ser mais inclusivas do que tradicionalmente foram"
“Foi muito importante para Miguel [Sapochnik, co-showrunner da primeira temporada] e eu criarmos um programa que não fosse mais um bando de brancos na tela”, completou Ryan. De acordo com ele, o próprio autor George R. R. Martin cogitou representar a família como negra nos livros.
Com isso, Corlys Velaryon (Steve Toussaint), seus filhos Laenor e Laena, e suas netas Baela e Rhaena, são interpretados por atores negros na série, um fato que é totalmente naturalizado no universo.
Os Velaryon são descendentes da antiga civilização valiriana, assim como os Targaryen, mas com pele negra ao invés de branca. Ambas as famílias seguem tendo cabelos naturalmente platinados, assim como nos livros.
Os Velaryon são uma das famílias mais ricas de Westeros, com fama e fortuna ainda mais estabelecidas pelas viagens marítimas do patriarca Corlys. Essa representação é bastante diferente da encontrada em “Game of Thrones”, onde os personagens negros de mais destaque eram escravizados ou ex-escravizados (Missandei e Verme Cinzento).
O ator Steve Toussaint, intérprete de Corlys na série, chegou a responder publicamente algumas críticas racistas feitas à sua escalação para o papel.
“Eles [autores dos comentários racistas] estão felizes com um dragão voando. Eles estão felizes com cabelos brancos e olhos violeta, mas um negro rico? Isso está além dos limites”, destacou.
Outros exemplos
A resistência à inclusão de personagens pretos tem sido frequente à medida que personagens racializados começam a ser incluídos com mais frequência nas produções. Foi o caso do elfo Arondir (Ismael Cruz Córdova) na série “O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder”, e de Ariel (Halle Bailey) no remake live action de “A Pequena Sereia”. A quantidade de comentários racistas costuma ser ainda maior quando os personagens em questão não são negros na obra original.
Entretanto, avanços representativos continuam a ser feitos nessa seara, inclusive com atores negros interpretando papéis que costumavam ser retratados como brancos. Alguns outros exemplos são Yara Shahidi como a fada Sininho em “Peter Pan e Wendy”, Regé-Jean Page como Simon, o Duque de Hastings, em “Bridgerton”, e Leah Jeffries como Annabeth Chase em “Percy Jackson e os Olimpianos”.
Em “House of the Dragon”, apesar da representação que foge de estereótipos, personagens como Laena e Laenor poderiam ter sido mais explorados. Mas a verdade é que, de forma geral, a história da primeira temporada foi bastante estruturada para circular em torno de Rhaenyra e Alicent, com eventuais momentos de destaques de outros personagens.
O ontem e o hoje nas telinhas e telonas
11 anos separam a estreia de “Game of Thrones” e de “House of the Dragon” e a diferença no tratamento de minorias sociais é bastante perceptível. Alguns padrões antes bem estabelecidos, como um elenco principal totalmente branco e apenas homens por trás das câmeras, já não são aceitos como antes na indústria e a tendência é que a diversidade se desenvolva ainda mais em produções televisivas e de cinema.
Sempre há espaços para novos avanços, e é fundamental que nós, enquanto público, sigamos trazendo esses temas para o diálogo do dia a dia, o que efetivamente pode gerar mudanças.
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