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Foto do escritorMikhaela Araújo

Quem tem medo do corpo trans? O cinema de horror e a transgeneridade

Atualizado: 20 de jun. de 2023

Este texto contém (muitos) spoilers do filme 'Hereditário' (2018).


"Ela queria que eu fosse um menino." Essa é a primeira frase que ouvimos sair da boca de Charlie, uma jovem adolescente que usa roupas bem mais largas que seu corpo, não lava os cabelos que são lisos e sem corte, não usa maquiagem. Charlie anda de forma desajeitada, não tem amigos e não se identifica muito com sua família, que está o tempo todo tentando ajudá-la de qualquer forma que seja.


Ela é uma das personagens de 'Hereditário' (2018), filme de estreia do diretor Ari Aster. Interpretada por Milly Shapiro, Charlie é a filha mais nova da família retratada no longa de horror que foi sucesso de críticas. Quando Charlie diz essa primeira frase, está falando com sua mãe, Annie - Toni Collette a vive de forma excepcional -, logo após o funeral de sua avó, Ellen. Annie diz para Charlie que ela era a neta preferida da mãe, recebendo esse comentário como resposta e, aparentemente, até entende a frase da filha errado - parece ouvir "eu quero ser um menino". “Sabe, eu era uma moleca quando estava crescendo”, diz Annie. "Eu odiava vestidos e bonecas e rosa."


Mudando de corpo com rituais demoníacos


Em 'Hereditário', Ellen Graham é matriarca de uma família repleta de problemas internos. Logo no começo do filme, o telespectador é informado que Ellen faleceu. Ao longo da história, é descoberto que a idosa era, na verdade, a líder de um culto que tentava há anos trazer de volta à Terra um espírito maligno e poderoso chamado Paimon. Ele foi colocado no corpo de Charlie assim que a menina nasceu. Vale lembrar que quando o primeiro filho de Annie nasceu, Peter (Alex Wolff), Ellen estava afastada da filha. No entanto, Paimon passou a esperar um "hospedeiro" masculino e saudável.


Charlie morre numa cena devastadora. Qualquer pessoa que assistiu ao filme sabe do que estou falando. Depois disso, sua mãe acaba se envolvendo com rituais para tentar trazer a alma dela de volta. Peter, irmão de Charlie que estava diretamente envolvido em sua morte, começa a passar por episódios quase esquizofrênicos, tendo alucinações o tempo inteiro. É como se a alma de Charlie estivesse tentando entrar dentro do corpo dele. Uma membra do culto de Ellen também tenta diversas vezes expulsar a alma de Peter de dentro do seu próprio corpo, em uma tarefa bem sucedida.


Na cena final do filme, Peter tenta se esconder na casa da árvore. Lá, se depara com um ritual, retratos seus espalhados e vários desconhecidos ajoelhados. Depois de assistir à terrível morte de sua mãe, ele se joga do alto da casa. É nesse momento que um espírito adentra seu corpo e o jovem volta ao local. A expressão em seu rosto muda e ele começa a repetir o mesmo som que a falecida irmã fazia o tempo inteiro. Vemos a foto de Ellen na parede e Peter é coroado. Joan, uma das membras do culto, declara:


"Charlie, você está bem agora. Nós corrigimos seu primeiro corpo feminino e demos a você este hospedeiro masculino saudável."

É assim que descobrimos que Charlie agora está dentro do corpo de Peter. Charlie, que sempre fugiu de sua feminilidade e identidade cis, está "bem agora" habitando um corpo masculino. A expressão do personagem agora é de tranquilidade. Parece que ele finalmente está em casa.


Não é a primeira vez (e nem a última)


Outros filmes do mesmo gênero de 'Hereditário' já usaram da mesma "ansiedade" com a feminilidade como ferramenta para criação do terror. No clássico 'O Exorcista' (1973), um demônio masculino possui uma jovem garota adolescente e a transforma num ser terrível, que xinga todos, se contorce, se mutila e emite as mais diversas profanidades. Já em o 'O Bebê de Rosemary' (1968), outro grande clássico do cinema, a personagem principal engravida, mas não do bebê humano que sempre quis: ela carrega em seu ventre o filho do diabo. Em seu momento de desespero e desamparo, corta o cabelo estilo 'joãozinho' - atitude que causa a raiva de seu marido. O satânico é inserido em momentos hormonais importantes para a feminilidade cis - puberdade e gravidez - associando-os ao maligno.


A mudança de gênero, de diversas formas, aparece em vários filmes de horror. Em 'Psicose' (1960), Norman Bates se passa por sua mãe ao realizar seus assassinatos, incluindo vestimentas, cabelos e maquiagem. Não é difícil encontrar histórias de ficção sobre serial killers homens que se vestem com a pele de suas vítimas mulheres para cometer seus crimes. Um homem se vestir de mulher é algo retratado como loucura, uma ameaça, algo perigoso.


Disforia de gênero como subplot no cinema


É evidente que, em 'Hereditário', Charlie não se sente bem dentro de seu próprio corpo. Somos levados a interpretar isso a partir de diversos momentos do filme, além de todas as características citadas anteriormente.


Numa entrevista à Sasha Geffe, autore de 'Trans Horror Stories and Society's Fear of the Transmasculine Body', o crítico de cinema Caden Mark Gardner disse que reconheceu em Charlie sua própria disforia de gênero.


“Quando eu estava crescendo, embora eu não percebesse que estava passando por uma disforia de gênero, eu usava esses moletons largos e jeans a maior parte do tempo - mais ou menos do jeito que Charlie se vestia”

Caminhando por outras obras de horror, temos 'Carrie: A Estranha' (1976). Se você assistiu ao longa original ou até ao reboot de 2013 (questionável, diga-se de passagem) com Chloë Moretz, com certeza lembra da cena em que Carrie menstrua na escola. É terrível. É absolutamente assustador para Carrie. As outras meninas de seu colégio a tratam da pior forma possível. O diretor Brian DePalma (que, por sinal, é bem problemático no tema trans e feminino) joga para o telespectador a dúvida se tudo o que sentimos na cena vem realmente do exterior da adolescente ou de dentro dela. Porém, isso não anula o fato de que todos ao redor de Carrie - interpretada de forma brilhante por Sissy Spacek no longa original - estão rindo dela enquanto ela passa por uma mudança hormonal significativa e sente como se estivesse sendo punida por algo que nunca pediu. Quantas pessoas transmasculinas já não se identificaram com esse mesmo sentimento ao passar pela mesma experiência?


A narrativa de não se sentir pertencente ao próprio corpo também é muito forte no filme 'A Mosca' (1986). Acredito que a disforia de gênero não seja internamente tão grostesca como o longa, mas também não acho impossível que seja um processo tão doloroso quanto.


Sentir que algo está errado e acabar se emaranhando num mundo confuso pode ser uma das sensações causadas pela disforia de gênero, como diz a crítica de cinema Willow MacLay. Isso está presente em muitas obras audiovisuais de horror, mas também vai além delas. A filmografia de David Lynch - que tem uma influência do terror e suspense - é uma grande representante disso. O anime 'Neon Genesis Evangelion' (1995), criado por Hideaki Anno, também aborda essa temática. O filme 'Matrix' (1999) é outro grande exemplo, com uma alegoria transgênero que já foi completamente assumida pelas criadoras - mulheres trans, importante destacar -, as irmãs Wachowski. Mas é no subgênero body horror que essa narrativa é mais forte: o terror está em se sentir num corpo que não lhe pertence.


A transição como morte


Em 'Hereditário', o processo para Charlie finalmente habitar um corpo masculino é repleto de dor e, literalmente, mortes. Para muitas pessoas cisgênero, a transição é como se fosse uma forma de mutilação. Um corpo morre para dar lugar à outro. Frequentemente, o impulso para a transição é interpretado como algo autodestrutivo e louco. No caso da transmasculinidade, é comum ler e ouvir pessoas cis falando que o homem trans só é um homem trans porque estava "buscando poder" (por conta do sistema misógino) e não porque ele realmente tem disforia.


Com transmasculinos, há toda uma pressão maior nas transições, visto que é um corpo reprodutivo feminino tornado estéril - nos casos de resignação. Isso impulsiona debates políticos sobre natalidade, além de vários outras conversas nesse sentido do "papel da mulher". Afinal, são pessoas que abandonaram o que lhes era esperado no sistema heterocisnormativo: crescer, se tornar adulta, casar, ter filhos, ser mãe e cuidar da prole e do marido. Além de quebrar com esse papel designado assim que nascem apenas por conta de um órgão sexual, pessoas transmasculinas assumem uma outra versão da masculinidade. Muitas pessoas trans quebram os laços familiares de sangue por conta de transfobia e formam famílias em torno de experiências em comum, principalmente sobre não-conformidade de gênero (esse movimento é retratado na ficção, como por exemplo na série 'Pose', de 2018).


Um gênero "espiritual"


Indo na contramão de filmes que explicitamente retratam a transgeneridade (também feitos por pessoas cis, vale ressaltar), que acabam confundindo muitas vezes transmasculinidade com apenas "não-feminilidade" de mulheres que não são trans, 'Hereditário' assume de uma vez por todas que um "espírito de gênero" existe. Mesmo quando está fora de um corpo físico, Paimon é homem. Ele procura um "corpo masculino" porque é o que lhe completa essencialmente. Paimon é Charlie, e Charlie é homem mesmo no corpo feminino - da qual faz de tudo para se livrar, da forma mais violenta e trágica possível. O desejo de Charlie de sair desse corpo fica explícito durante todo o filme, por meio de cenas que podem até passar despercebidas num primeira assistida. Em dado momento, a personagem corta fora a cabeça de um pombo, como se ela estivesse planejando ou até prevendo seu próprio destino.


Como diz Sasha Geffe em seu texto, Ari Aster consegue deixar explícita - mesmo que não tenha sido intencionalmente - uma questão, entendendo a profundidade do conceito de gênero: Por que pessoas trans fazem transição? "A resposta é muito simples para ser levada a sério no discurso dominante: Porque queremos. Porque temos vontade. Porque a masculinidade existe e a feminilidade existe, e elas não são caprichos ou estereótipos", escreve Sasha.


Representações não intencionais


O segundo filme de Ari Aster, 'Midsommar - O Mal Não Espera a Noite' (2019), acabou criando, assim como seu antecessor, uma discussão sobre alegorias trans nos personagens retratados.


Num texto pra a Vox, Emily VanDerWerff explica bem essa visão. A leitura que muitas pessoas tem de 'Midsommar', gostando ou não do longa, é de que é um drama que fala muito sobre o término e separação/libertação de um relacionamento ruim. Mas Emily conta que acabou associando bastante sua jornada pessoal como pessoa trans com a história de Dani, personagem principal do filme, interpretada por Florence Pugh - que, mais uma vez, elogio a atuação incrível de uma mulher nesse texto. "O que Dani passa é quase uma experiência universal para mulheres trans antes de se exporem. Eles estão na festa, mas não estão, sempre achando que há alguma piada que não estão entendendo", escreve Emily.


Ela continua a explicação de sua experiência ao assistir 'Midsommar' falando sobre o processo que Dani experimenta durante todas as três horas de duração do longa. Ela naturalmente se adapta ao grupo de mulheres daquele lugar tão distante, é apoiada por elas, sabe falar sua língua mesmo sem nunca ter estudado nem ouvido falar nada sobre. Essa narrativa, que tem o seu ápice no final do longa, tem diversas interpretações, como a própria experiência de uma mulher cis entre outras mulheres e o processo de identificação. Mas o fato de Emily ter se identificado tanto com a jornada de Dani não deve ser ignorado.


Os subplots e alegorias transgênero muitas vezes encontrados em filmes de body horror ou outros produtos audiovisuais podem não ser intencionais, mas acabam se entrelaçando com experiências de pessoas trans. Essas interpretações são mais comuns do que nós, pessoas cis, pensamos. Não é comum que experiências trans e de disforia de gênero sejam retratadas nas telas de forma realmente conectada ao que ela causa nessas pessoas. É por conta dessa lacuna que, muitas vezes, quem quebra com a cisgeneridade acaba se vendo nessas obras, por mais subjetivas que sejam. Isso diz muito sobre a forma como a transgeneridade é interpretada por pessoas cis e como essas histórias são contadas e, bem... é uma questão que ainda tem muito a ser discutida e não cabe completamente nesse texto. Que o cinema seja cada vez mais repleto de narrativas plurais. Que o sujeito deixe cada vez mais de ser apenas objeto e passe a contar sua própria história.

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