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Foto do escritorRayane Domingos

Receita médica: 1/2 de moduretic e proibida de ouvir o rádio

Atualizado: 30 de mai. de 2023

Crônica de uma ouvinte apaixonada e doente O que pode ser ruim para a saúde de uma criança aos 10 anos? Segundo a minha cardiologista, diversos motivos fizeram com que eu sofresse com hipertensão e obesidade infantil. A ideia crua de que alimentar é um ato de amor não funcionou tão bem na cabeça da minha mãe, o que é comum vindo de uma pessoa que passou por algumas necessidades na vida.


O fato é que sofri com dietas desde pequena, sobretudo com algumas restrições alimentares. Mas o que realmente me deixou irritada foi uma série de fatores que desencadearam na suspensão do meu maior vício, depois da coca-cola: ouvir futebol pelo rádio.


A minha relação com ele não começou do nada. Seu Bil, meu avô, costumava cantarolar as músicas que saíam daquela caixinha todo dia pela manhã. Aumentava quando surgia alguma notícia importante no Bandeira 2, e abaixava quando queria brigar com quem amassasse os tomates do cesto. Os netos acordavam atordoados com o barulho vindo da barraca ao lado da casa.


Com o passar do tempo, percebi que o meu pai gostava de ouvir as mesas esportivas quando ia trabalhar. O velho até me deu algumas dicas de como girar o botão lentamente para escolher a estação certa. Lembro de dizer que às 20h era o horário obrigatório de ouvir pagode na 102.1 FM.



Eliane, minha mãe, costumava colocar em qualquer estação só para ouvir as melhores músicas sertanejas. O amor dela pelo rádio começou a mudar quando comecei a acompanhar futebol. Eu passava todas as tardes de domingo compenetrada em entender como os times pernambucanos iam jogar. Especificamente, o Sport, clube de coração, que dava muita dor de cabeça, e alguns problemas cardíacos na época.


Quando ela soube que o leão estava mal das pernas, em 2011, tudo piorou. Não teve jeito: levou para a médica o que vinha piorando os meus picos de pressão. O problema maior naquele domingo foi a narração de Aroldo Costa no clássico contra o Náutico. E jamais culparia um dos melhores tradutores de emoção do mundo pelo aumento no tempo do meu tratamento cardíaco.


O fato é que eu estava uma pilha a semana inteira, e até apostei usar uma camisa do timba por baixo da farda da escola. O campeonato pernambucano antes era mais valorizado, e aquela semifinal tem espaço especial na minha memória. Porque me recordo de ter sido socorrida pela minha mãe depois de sentir meu corpo leve demais. Não deu outra, precisei tomar a outra metade do moduretic que estava guardada para à noite.



Dentre tantas coisas, lembro de chorar muito de felicidade, enquanto minhas amigas olhavam incrédulas o que estava acontecendo. Uma coisa comum - a derrota do leão. No dia da consulta, a médica ordenou que eu precisava urgentemente largar mais um vício, e dessa vez seria mais difícil. Assistir pela televisão nunca me trouxe realmente grandes emoções, nem mesmo o sentimento de fazer promessas adoidadas enquanto imploro pela vitória.


No rádio não, as coisas são realmente mágicas. Tudo fica no campo da imaginação, e você só consegue entender os detalhes do lance quando desenha na cabeça. A emoção é ímpar e singular. Nada é mais impactante do que ouvir o berreiro do narrador, o grito da torcida no fundo, o silêncio entre uma frase e outra, e claro, a tranquilidade do repórter no campo ajudando a simular a jogada.


Mas apesar disso, e das mil recomendações, não adiantou nada. Continuei ouvindo na ilegalidade. Fingia que estava aprendendo mais uma letra de Racionais Mc's enquanto tentava me controlar ao máximo para não dar pista. Até que um dia me irritei e decidi tentar ser uma adulta dona de mim.


O problema é que eu escolhi o fatídico acesso para a Série A no mesmo ano. Lembro exatamente de tudo daquele jogo. O tempo em Recife não era tão diferente em Goiânia. Fui para casa de Alícia (amiga e cúmplice), e ela logo avisou que ia assistir um filme. Prontamente coloquei no rádio para ouvir o que ia acontecer.


Como sempre, o Sport só dependia de uma série de resultados, além de fazer a própria parte. A chuva no estádio Serra Dourada estava bem crítica, e até uma possível paralisação foi cogitada. A bola só saia das poças de água se fossem jogadas altas, e o cansaço já batia nos atletas. No segundo tempo, aos 27 minutos, o que parecia inacreditável aconteceu: a cabeça abençoada de Bruno Mineiro levou o leão para a primeira divisão.


Ninguém acreditou na hora, nem mesmo eu que comecei a chorar copiosamente enquanto ouvia Roberto Queiroz gritar no fone. Com a respiração mais acelerada, Alícia logo reclamou: ''não acredito que você tá passando mal de novo por conta do jogo, Rayane''. Eu nem consegui responder bem, só concordei com a cabeça.



Ela fez todos os procedimentos que já eram de praxe comigo: pediu para eu ter calma, afastou o telefone e me deu água com açúcar. Naquele dia eu tive certeza que a minha melhor amiga era realmente a única que me aguentaria por toda uma eternidade.


Após o surto, Alícia colocou o jogo na televisão, e só terminou de assistir comigo. Ficava me observando gritar junto com os vizinhos de felicidade. Ela nunca entendeu realmente o porquê de tanta loucura, e quando perguntava nem eu sabia responder.


Até hoje me questiono: valeu a pena? É óbvio que sim. Prestigiar um dos meios de comunicação mais antigos do mundo me faz refletir sobre como a notícia pode ter uma nova roupagem. A voz é a imagem. Quem ouve reconhece em qualquer lugar, independente da situação. E o rádio me traz a sensação de estar dentro do estádio: xingando o lateral, comprando um amendoim, abraçando um desconhecido no gol.



Eu ainda ouço a mesma frequência de quando era criança. Agora com uma saúde melhor, as dores se resumem a cabeça e algumas pontadas no pescoço. Caso você me encontre entre às 18h e 21h30, quieta e olhando para o nada, cruzando os dedos ou fazendo cara de reprovação, chorando enquanto sorri e até mesmo parando em um lugar aleatório. É muito provável que eu esteja ouvindo um jogo.


E nesse momento o leitor questiona: o que devo fazer, então? A resposta é simples: não sei. Geralmente, as pessoas me lançam olhares do tipo: ''o que está acontecendo?''. O fato é que doido não precisa de auxílio para se acalmar, as coisas vão entrando nos eixos após algumas horas e uns comprimidos.


Caso insista, peço que, seguindo a sua fé, faça duas preces contraditórias: para que meu coração se mantenha firme e não pare, e a outra que meu time vença todos os campeonatos previstos no ano.

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