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Foto do escritorThallys Rodrigo

"Resistência" é maior que a soma de suas engrenagens

Nova ficção-científica original consegue se sustentar muito bem


O debate sobre inteligência artificial gira em torno de duas coisas: originalidade e ameaça a quem é de carne e osso. A recém terminada greve dos roteiristas demonstrou o medo (justificado) que parte da humanidade tem da substituição por máquinas, tema esse já retratado diversas vezes no cinema.


"Resistência", ou "The Creator", é a mais recente empreitada feita nesse sentido, e cumpre a irônica proposta de falar sobre IA sendo um dos raros filmes originais produzidos atualmente. Trata-se de um longa que, em meio a milhões de reboots, remakes, sequências e spin-offs, não é baseado em material prévio. Uma categoria com futuro ameaçado, assim como a raça humana no universo do filme.


Assim como as IAs, o diretor Gareth Edwards ("Godzilla", "Rogue One") aprendeu bem com as referências e o que veio antes. Diferentemente delas, conseguiu criar algo que se sustenta sozinho, mesmo com falhas no código.


Aonde estão meus olhos de robô?


"Resistência" é ambientado algumas décadas no futuro, diante de um mundo dividido entre IAs, robôs e humanos. Os seres robóticos foram banidos do Ocidente após terem sido responsabilizados por uma explosão de bomba nuclear em Los Angeles, mas seguem convivendo em harmonia com os humanos na Nova Ásia. Sentindo-se ameaçada pelas criaturas mecânicas, a raça humana declarou guerra à Nova Ásia e as IAs como um todo.


No meio de tudo isso está Joshua (John David Washington), um ex-agente infiltrado tomado pelo luto que é enviado em uma missão: ir até a Nova Ásia e destruir uma arma das IAs que pode acabar com a humanidade. Tudo muda de figura quando ele descobre que a arma em questão é uma criatura robótica com aparência de uma criança (Madeleine Yuna Voyles). Logo, ele parte em uma jornada com ela em busca do paradeiro de sua esposa de Joshua (Gemma Chan), que havia sido dada como morta.


Na sua trajetória, o filme trata de diversos temas sobre um worldbuilding muito bem feito. A inteligência artificial não é retratada como hostil mas sob perspectiva humanística, o que causou críticas e uma certa polêmica em setores mais cinéfilos da internet.


Considerou-se que retratar IA de forma simpática nesse momento tão delicado do tópico no ponto de vista trabalhista é um desserviço. Porém, a perspectiva do filme sobre IA parece ser muita mais um comentário geral sobre tolerância, igualdade e o que realmente faz de alguém humano, com um ser meio criança e meio robô como símbolo da integração entre povos.


A morte e o pós-morte são temas bastante presente no filme, e que de certa forma une narrativamente seres orgânicos e mecânicos. Ainda que experenciem o fim de sua existência de formas diferentes e estejam em guerra, ambos encaram o próprio fim e os dos outros, questionando o que há além.


Pense, fale, compre, veja


O filme sem dúvidas bebe de muitas fontes, lembrando visualmente filmes como "Distrito 9" (2009) e tematicamente obras como "Filhos da Esperança" (2006). Apesar disso, a construção do mundo do filme é bastante bem feita, e de fato se sustenta como algo original.


O design de produção e a fotografia, assinada por Greg Fraiser, de "Duna", são dignas de nota, com um visual realmente impressionante. A sobreposição de edifícios, apetrechos e seres futuristas sobre paisagens tipicamente associadas com o Sudeste Asiático criam uma atmosfera bastante única e interessante.


Os aspectos técnicos do filme em si são bastante dignos de nota, sejam os efeitos especiais irrepreensíveis e a trilha sonora pontual, mas marcante de Hans Zimmer.


Tudo isso gastando apenas US$ 80 milhões, uma quantia ínfima se comparada a outros blockbusters e que só foi possível priorizando filmagens externas ao invés da caríssima construção de sets. Os efeitos especiais foram inseridos apenas após a finalização do processo de edição, ao contrário de diversos outros longas do gênero. A ousadia deu certo e resultou em um filme lindo de ver.


A direção de Gareth Edwards também é bastante agradável, e ajuda o filme a prender a atenção do início ao fim, mesmo que o interesse aumente bastante mais próximo do fim. Em geral, a história gera investimento, ainda que limitado, na jornada emocional dos personagens.


É verdade que os personagens poderiam ser melhor desenvolvidos, mas o "payoff" no terceiro ato é bastante satisfatório, tanto de um ponto de vista visual quanto do narrativo. Ao contrário da conclusão de "Rogue One" (2016), que teve que ser consertada por Tony Gilroy a pedido da Lucasfilm, o terceiro ato de "Resistência" entra para a lista de acertos de Gareth Edwards.


Nada é orgânico, é tudo programado?


A soma de todas as peças faz a máquina funcionar, mas não dá pra dizer que nenhuma deu defeito. Em alguns pontos, o roteiro apresenta algumas superficialidades, e falha, por exemplo, em retratar o desenvolvimento do apego de Joshua a Alfie, a criança robô no centro de trama.


Algumas falas aqui e acolá também carecem de naturalidade, principalmente no primeiro ato. O roteiro peca ainda ao apelar a tentativas pontuais de humor, que soam forçadas e fora do tom do longa. Não me surpreenderia se essas tiradas tivessem sido um pedido da própria Disney, na tentativa de "Marvelizar" o longa e deixá-lo (teoricamente) mais vendável, já que investir em histórias originais é visto cada vez mais pelos estúdios como uma estratégia arriscada.


Além disso, as atuações parecem um pouco fora do tom às vezes, como a de John David Washington, que é excessivamente melodramática. Se em "Tenet" (2020) foi o carisma do nepoking que ajudou a ancorar o espectador em meio a uma história obtusa, aqui o filme funciona "apesar dele".


É de se questionar se a direção de performances em si não é um calcanhar de Aquiles de Gareth Edwards, uma vez que as performances de Aaron Taylor-Johnson e Elisabeth Olsen em 'Godzilla' sofreram do mesmo mal.


Reinstalar o sistema


"Resistência" está longe de ser o Messias eletrônico dos filmes originais, aquele sucesso de qualidade inquiestionavel que irá colocar esse tipo de filme de volta às telonas. Porém, suas qualidades são inegáveis, suficientes para superar o dano de eventuais parafusos frouxos nas engrenagens.


Com poucas estrelas no elenco e um baixo apetite do público geral pela ficção-científica, é bastante possível que o longa passe pelos cinemas sem fazer barulho e até dando prejuízo. Porém, mesmo que o esquecimento durante e pós exibição ocorra, ele não será lá tão justificado pela qualidade do que foi visto em tela.


O homem não é máquina, e com isso se esquece até do que não deveria.


Veredito: 3,75/5


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