"Sombra e Ossos" traz elenco carismático e universo ficcional promissor
Atualizado: 30 de mai. de 2023
O gênero fantasia, que antes parecia meio escanteado pelo público geral, parece ter alcançado um novo patamar nos últimos anos. Não dá pra negar que o sucesso estrondoso de ‘Game of Thrones’ colocou dragões, espadas e magia no radar de muita gente. Desde então, muitas tentativas de surfar nessa onda têm surgido, como ‘The Witcher’ (Netflix) e ‘His Dark Materials’ (HBO/BBC One). Lançada no último dia 23 de abril pela Netflix, ‘Sombra e Ossos’ é uma das apostas mais recentes.
Baseada nos vários livros do ‘Grishaverso’ - o universo ficcional criado pela escritora Leigh Bardugo - ‘Sombra e Ossos’ se passa em um mundo paralelo inspirado no século XIX. A história da primeira temporada é ambientada primariamente em Ravka, um país semelhante à Rússia Czarista onde habitam humanos “comuns” e os Grishas, pessoas que nascem com poderes especiais como o controle do fogo, ar ou até dos sentimentos de outras pessoas. Além da guerra com dois outros países, os habitantes de Ravka têm que lidar com a Dobra, uma região sombria e repleta de monstros que corta o país ao meio.
Tudo começa com uma grande mudança na vida dos órfãos e amigos de infância Alina Starkov (Jessie Mei Li) e Mal Oretsev (Archie Renaux), que também abala as estruturas de Ravka como um todo. Em rota de colisão com essa história estão Kaz (Freddy Carter), Inej (Amita Suman) e Jesper (Kit Young), uma trupe de mercenários autointitulados ‘Corvos’, vindos de outro país, e que saem em uma missão que tem tudo a ver com o destino de Alina. Os caminhos de todos eles se entrelaçam ao do General Kirigan (Ben Barnes), o misterioso comandante dos Grisha.
Um novo (e vasto) mundo
A primeira coisa a chamar atenção em ‘Sombra e Ossos’ é a riqueza do universo ficcional construído. Ainda que alguns detalhes possam lembrar ‘Game of Thrones’, ou ‘Harry Potter’, a complexidade social e cultural do grishaverso soa bem original. A Dobra inicialmente lembra a Muralha e o Além-da-Muralha de ‘GoT’, mas tem implicações sociais mais urgentes dentro da história. Além disso, os diferentes tipos dos grupos sociais e as relações que eles mantêm entre si também deixam a história muito rica. Os Grisha, por exemplo, são vistos tanto com preconceito quanto com respeito no país, e chegam até mesmo a serem caçados em reinos rivais como Fjerda.
Outra camada de opressão também está presente na protagonista Alina, que assim como Mal, é fruto de racismo e maus tratos por ser meio ‘shu’ (equivalente a pessoas asiáticas no nosso mundo) e possuir a aparência desse povo, considerado inimigo pelos ravkanos. Durante sua jornada, ela passa por várias tentativas de apagamento e menosprezo de sua origem e aparência. Isso traz profundidade à série e oferece uma grande analogia ao mundo real. Geram-se reflexões, por exemplo, sobre os registros recentes de ódio anti-asiático que provocaram uma onda de discussões sobre o assunto, e também sobre o antigo estereótipo do “perigo amarelo”, a visão de pessoas asiáticas como inimigos.
A diversidade étnica e sexual também está presente no universo, em uma medida inclusive maior do que nos livros. Alguns dos exemplos de destaque são a atriz nepalesa Amita Suman, que interpreta a personagem Inej, e Kit Young, o Jasper, um dos raros exemplos de personagem negro LGBT de destaque em séries. O universo da série parece ser, inclusive, um lugar além de preconceitos raciais referentes a pessoas negras, de forma semelhante a ‘Bridgerton’, e não há, pelo menos nessa temporada, indícios de LGBTfobia na sociedade de Ravka. Ainda que de forma tímida, os Grisha Fedyor (Julian Kostov) e Ivan (Fedyor Kaminsky) também são introduzidos de forma natural como um casal. Essa diversidade sexual e étnica vem crescendo em produções de fantasia, mas ainda é rara. Ponto para os produtores da série, que permitem, através dessa inclusão, que mais pessoas se identifiquem com os personagens.
Um ponto negativo é que a série não se deu ao trabalho de explicar o mundo onde se passa. Em muitos diálogos, em especial nos primeiros episódios, é difícil assimilar completamente o grande número de lugares, pessoas e criaturas citadas pelos personagens. Diálogo expositivo é algo que pode chatear, especialmente se usado em excesso, mas quando se trata de um universo fantástico, não custa nada ser mais didático. Muitas vezes foi difícil identificar, por exemplo, com quem exatamente Ravka estava em guerra, pois o reino de Fjerda, um dos inimigos do país, só é mais explorado no fim da temporada. Esse foi um erro cometido pela Netflix também em ‘The Witcher’, e seria interessante se fosse revisto em produções de fantasia futuras.
Histórias cruzadas
‘Sombra e Ossos’ é uma adaptação do livro de mesmo nome, o primeiro a ser lançado do grishaverso, mas também traz os já citados Kaz, Inej e Jesper de outro romance: ‘Six of Crows'. A mistura, de início, não dá tão certo, pois o núcleo da trupe de ‘Corvos’ acaba soando meio aleatório e de difícil compreensão. Porém quando as histórias convergem, mais pro final, tudo parece melhor. Há ainda um terceiro núcleo, com menos tempo de tela, focado na Grisha Nina (Danielle Galligan) e no “caçador” de Grishas, Matthias (Calahan Skogman), também personagens de ‘Six of Crows’, que por mais que empolgue pelo carisma dos intérpretes, soa meio aleatório.
Carisma, aliás, é algo que não falta no elenco. A trupe dos Corvos não poderia ter intérpretes melhores, sendo Amita e sua misteriosa - porém adorável - Inej um dos grandes destaques. Jessie Mei Li tem uma tarefa difícil com o papel de Alina, que possui conflitos muito interessantes, mas em diversos momentos cai na figura da “protagonista de personalidade cansativa descobrindo um mundo novo”, tão vista em sagas do tipo. A pouca experiência dela com atuação ficou um pouco aparente em alguns pontos, mas a atriz ainda tem muito futuro. A sua química com Ben Barnes, que teve um bom desempenho em um papel difícil, também é um dos destaques da temporada.
Talvez o maior pecado da série seja também um dos seus maiores trunfos: o de como o elenco funciona bem em coletivo. A storyline dos Corvos depende demais da de Alina e o backstory de cada um deles não foi tão explorado como poderia. Com a protagonista foi justamente o contrário, já que muito tempo é dedicado a explorá-la, mas muitas vezes seus conflitos parecem familiares demais. As duas metades da laranja da série, infelizmente passam mais tempo separadas do que juntas, o que poderia ter atingido um potencial maior. A relação morna de Alina com Mal, um meio termo entre irmandade, amizade e romance, também decepciona um pouco.
Nas questões técnicas, a série não chega a ser uma referência, mas se destaca positivamente. O figurino e a cenografia são muito bem pensados e produzidos e chamam atenção pelas referências à história russa, que por não serem vistas com tanta frequência, dão um ar de frescor na tela. A fotografia não inova, mas também não compromete, enquanto os efeitos especiais ora se mostram bastante corretos, ora demonstram certas limitações devido ao orçamento. A manifestação do poder de certos Grishas, por exemplo, ficaria bem mais impressionante com efeitos melhores. Mais um dinheirinho para a equipe de VFX não cairia mal.
Uma história que veio pra ficar
Mesmo com os defeitos já apontados, ‘Sombra e Ossos’ é uma obra sólida e que sabe bem o que quer comunicar. A série tem uma pegada young adult e já está fazendo sucesso entre esse público, mas oferece atrativos suficientes em seu elenco, história e universo para satisfazer outras faixas etárias, incluindo fãs de fantasia e os órfãos de ‘Game of Thrones’. De acordo com a repercussão alcançada nas redes sociais e no Top 10 Mundial da Netflix (onde se manteve por 2 semanas ininterruptas), é de se esperar que ela seja renovada, e o criador Eric Heiresser já avisou que tem planos para várias temporadas e spin-offs. Mesmo com pontos a melhorar, esse início dá fundações fortes para a história se desenvolver e encantar o público.
Veredito: 3,5/5
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