"Vidas Passadas": os maiores amores do mundo já chegaram ao fim
Atualizado: 26 de jan.
Filme indicado a dois Oscars é sensível, real e tem ótimas atuações
Todas as histórias de amor verdadeiro terminam em “felizes para sempre”.
Somos apresentados a essa teoria desde crianças e, mesmo diante das mais nítidas evidências contrárias, tentamos continuar acreditando nela quando adultos. É comum pensar que, se um relacionamento termina, é porque não havia amor suficiente, ou que, se a relação chegou ao fim, ela não deu certo.
Mas o que seria, afinal, “dar certo”, no que se refere a amor? Envelhecer e morrer juntos, sem nunca se separar? Estamos constantemente debatendo se a pureza e a verdade do amor romântico residem no seu destino final, ou no caminho até ele. Se é que há um final de fato nos assuntos do coração.
Vidas Passadas (Past Lives), excelente filme de Celine Song que estreou nesta quinta-feira (25/01) nos cinemas brasileiros, se “intromete” em meio a essas perguntas.
Indicado ao Oscar de Melhor Filme, o longa mostra de forma delicada, sincera e complexa como os sentimentos mais genuínos podem ser atropelados pelas circunstâncias externas e pelos “eus” que existem no “nós”, sem que se tornem menos verdadeiros.
Éramos algo especial, você não acha?*
No longa, acompanhamos a história de Na Young e Hae Sung (os atores mirins Seung Ah Moon e Seung Min Yim), colegas de escola que se apaixonam durante sua pré-adolescência, na Coreia do Sul. Apesar do forte sentimento que sentem, os dois se separam quando Na Young emigra para a América do Norte com sua família, em busca de melhores condições de carreira.
Com a viagem, Na Young adota o nome anglófono Nora Moon (agora interpretada por Greta Lee) e aos poucos começa a trilhar seu caminho como escritora. Hae Sung (interpretado por Teo Yoo na fase adulta), por sua vez, também segue construindo sua vida, passando pelo exército coreano e por uma faculdade de engenharia, sem nunca esquecer seu primeiro amor.
Doze anos depois da despedida, os dois voltam a se conectar, dessa vez online. Porém, fronteiras físicas e emocionais se impõem sobre a pureza do amor da infância. Eles continuam em dois continentes distintos, com carreiras com necessidades distintas e nenhum dos dois - especialmente Nora - parece disposto a abrir mão de seus caminhos, desejos e conquistas para superar as circunstâncias que o separam.
A obra acompanha, ao todo, 24 anos da vida dos protagonistas. Entre encontros e desencontros, eles voltam a estar lado a lado fisicamente apenas quando adultos, com suas respectivas bagagens e vidas (mais ou menos) consolidadas. O calor do sentimento da juventude nitidamente está ali, mas eles, definitivamente, não são as mesmas pessoas. O que fazer, então?
Mais de duas décadas após declarar seu amor por Hae Sung, Na Young (ou seria mais correto chamá-la de Nora agora?) está casada com o norte-americano Arthur, mas se vê verdadeiramente mexida com a ida de seu antigo amor a Nova York, onde ela mora. Mas estaria ela mexida o suficiente para perceber que Hae Sung é realmente o que ela quer e precisa?
Se você nunca sangrar, nunca vai crescer*
Vidas Passadas cumpre um excelente trabalho ao mostrar como as escolhas tomadas e o modo como o mundo se organiza fragmentam o nosso emocional. No filme, há todo espaço do mundo para mostrar a sinceridade e leveza do sentimento entre o casal principal, mas não para a tão comum idealização de que “o amor é capaz de vencer todas as barreiras”.
Nora e Hae Sung estão rodeados por um mundo muito maior que eles, que os atrai e influencia cada um à sua maneira, impedindo a concretização plena de seus “quereres”. Esse impedimento parte dos desejos e necessidades individuais e da impossibilidade de conciliar todos eles, por razões fora do controle de qualquer pessoa.
Isso é ilustrado, principalmente, por como, na visão dos personagens, a Coreia é pequena demais para que Nora brilhe como gostaria de brilhar. O filme é sobre amor, mas também é sobre estar em um mundo que te permite sonhar, mas impõe enormes obstáculos entre você e seus sonhos, fazendo com que seja preciso se deslocar pelo globo e se despedir da vida que poderia ter para conseguir o que deseja.
E também é sobre a impossibilidade de abrir mão de um sonho, mesmo que em prol do mais puro amor. É esse tipo de escolha que define a personalidade e a vida de alguém, ainda que, como efeito colateral, crie diversos cenários de “E se…” e “talvez” que nunca se tornarão reais.
É justamente em busca de realizar seu sonho que Nora conhece o também escritor Arthur, que representa, de certa forma, a vida que ela escolheu ter, em oposição a Hae Sung, que é a personificação da vida que ela precisou deixar para trás. Arthur pode não ter sido o “amor de contos de fadas”, mas é o amor que cabe no agora. E, mesmo que distante das origens de Nora, não deixa de ocupar um lugar genuinamente importante no seu coração.
A história do filme é declaradamente baseada nas experiências de Celine Song, diretora e roteirista, e só mesmo alguém com ligação pessoal com os temas citados poderia transmiti-los de forma tão sincera e que tocasse tanto o espectador. Isso inclui, além da história de amor, as diferentes nuances da experiência de uma imigrante coreana nos EUA presentes em Vidas Passadas.
O roteiro de Celine surpreende por mostrar o desenrolar dos protagonistas e a dualidade da identidade de Nora de forma tão completa em tão pouco tempo - afinal, são menos de 1 hora e 50 minutos de filme.
Além disso, ninguém diria que esse é o primeiro filme da dramaturga, diante da forma tão envolvente com que ela carrega a produção, mesmo que algumas metáforas visuais sejam, à primeira vista, um pouco óbvias.
Os aspectos técnicos do longa, em si, também contribuem para repassar toda a beleza e complexidade de Vidas Passadas. A fotografia traz, em sua maioria, tons cinzentos e sem muita saturação, o que deixa o visual de outros filmes tão sem graça, mas que, aqui, contribui para criação de uma atmosfera própria. Além disso, a trilha sonora minimalista passa toda melancolia e calor humano transmitidos pelas relações em foco no filme.
Porém, Vidas Passadas não seria o que é sem as lindíssimas atuações de Greta Lee e Teo Yoo nos papéis principais. Ela consegue convencer a todos do amor de Nora tanto por Arthur quanto por Hae Sung, além de imprimir à personagem um intenso ar de curiosidade e vontade de conquistar o que quer. Teo, por sua vez, é um poço de ternura como Hae Sung, e a química dos dois é espetacular.
Porém, o terceiro vértice desse “triângulo amoroso” também ajuda a sustentar a história. John Magaro, intérprete de Arthur, recebe material bom o suficiente para também brilhar e enriquecer a história, transitando pela confusão, ciúme e até mesmo empatia gerados pela vinda do antigo amor de sua esposa à cidade.
As cenas com os três juntos garantem, até mesmo, boas doses de humor, pelo desconforto e incertezas causados pelo encontro. É uma pena, inclusive, que nenhuma dessas atuações tenha sido reconhecida pelo Oscar, assim como a direção de Celine, indicada apenas a Melhor Roteiro Original.
Se uma coisa tivesse sido diferente, tudo estaria diferente hoje?*
Sem dar muitos spoilers, Vidas Passadas termina sem dar respostas fáceis para uma situação como a dos protagonistas. Ao mesmo tempo que acena à possibilidade de seguir em frente, o fim da obra também destaca a impossibilidade de apagar o que passou, e do modo como alguns sentimentos sempre estarão vivos.
O filme desconstrói a ideia do amor romântico como uma força que se sobrepõe a qualquer outra circunstância, mas mantém a crença na validade desse sentimento, mesmo que ele nunca se concretize da forma tão idealizada socialmente. Aliás, destaca até como é possível sentir isso por mais de uma pessoa, de formas totalmente distintas, mas igualmente válidas.
A protagonista deverá ser, para sempre, em algum nível, uma mulher bifurcada entre o que aconteceu e o que poderia ter acontecido, entre Coreia e EUA, entre ser Na Young e ser Nora. Poderia ter sido diferente? Se tivesse sido diferente, seria satisfatório? Ela não parece ter se arrependido de se tornar Nora, a esposa de Arthur, mesmo que isso tivesse lhe custado ser a Na Young de Hae Sung, mas as perguntas sempre vão existir, e o amor do ontem, também.
E que bom que pudemos acompanhar essa história de amor, que - se é que isso é possível - segue viva, mas chegou ao fim.
Veredito: 4.5/5
*O título e os intertítulos dessa review são trechos de "the 1", canção de Taylor Swift que possui uma temática muito próxima à do filme.