‘Vitória’ arrebata ao retratar a coragem de uma das verdadeiras heroínas do Brasil
Atualizado: 14 de mar.
Estrelado de forma brilhante por Fernanda Montenegro, o filme nos faz chorar e rir em meio a um caos político e social

O ano era de 2022 quando saíram as primeiras informações de que a famosa história sobre a idosa que denunciou o tráfico na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana, no Rio de Janeiro, seria adaptada para os cinemas. Mas infelizmente, a novidade veio acompanhada da triste notícia da morte do diretor Breno Silveira no set de gravações, em Vicência, em Pernambuco. E mesmo após tantas dificuldades e do luto, é realmente emocionante ver o filme ganhando o Brasil.
Inspirado em fatos, Vitória acompanha Nina, uma senhora de 80 anos, moradora de Copacabana, que está cansada de denunciar as atividades do tráfico em uma comunidade próxima de sua casa. Sem amparo da Polícia, ela decide comprar uma filmadora para gravar e denunciar a crescente violência da janela de casa.
Com direção de Andrucha Waddington, que assumiu a produção após o falecimento de Breno, o filme é estrelado de forma brilhante por Fernanda Montenegro e Alan Rocha. O elenco é formado também por: Lina da Quebrada, Thawan Lucas, Thelmo Fernandes, Sacha Bali e Laila Garin.
A história é realmente de cinema
Quem acompanhou a história na época do acontecimento, em 2005, ou que só descobriu depois, tinha uma expectativa alta por se tratar de um enredo digno de uma história de cinema. Tudo beira a insanidade e descrença, de uma maneira geral, por se tratar de algo improvável: uma idosa com uma filmadora denunciando o crime organizado no Rio de Janeiro.
E toda essa expectativa vai sendo suprida ao longo de quase duas horas. A história é muito bem contada e sinto que pode ser considerada didática demais. Mas, se pensarmos em uma perspectiva macro, até o óbvio precisa ser explicado, principalmente para as pessoas que não tem tanto conhecimento sobre as problemáticas políticas e sociais do Rio de Janeiro.
Mas isso não chega a ser um obstáculo no filme. O meu único incômodo, completamente particular, foi que ele pareceu mais devagar do que poderia. Ok, eu não esperava cenas de ação adoidadas em que a Nina pegava em armas para defender a própria moradia, mas acredito que a escolha pela morosidade pode cansar quem não conseguir se prender na história desde o começo. Ao mesmo tempo acho que pode ter sido uma escolha, já que existe um paralelo evidente com o fato dela ser uma pessoa idosa lutando contra um sistema cruel e esmagador.

Para além do bom didatismo, acredito que ter inserido personagens complexos e divertidos também ajudaram a contribuir para o enriquecimento do filme. Por mais que o foco seja acompanhar os passos de Nina, construir um bom enredo para os personagens secundários só engrandece a história. O roteiro de Paula Fiúza consegue construir bem o entorno mesmo com pouco tempo, a ideia parece seguir o ritmo de ser "direto e reto", sem grandes arrodeios.
Ainda falando sobre o roteiro, é realmente delicioso o misto de sensações durante a sessão. O choro e a gargalhada andam lado a lado e não se desgrudam. As tiradas de humor de Fernandona são excelentes e muito pelo ótimo timing da atriz, mas também pelos bons diálogos. Tudo soou absurdamente natural.
Outro tópico que gostei muito na produção foi a fotografia e o som. Os enquadramentos são belíssimos, e ok o Rio de Janeiro contribui para isso, mas também é muito bem estratégico e ajuda a contar a história, fora o bom uso da iluminação. O som também é algo marcante no filme. Os barulhos de tiros são assustadores e dá só um pouco da dimensão do que é conviver na cidade em meio a uma guerra civil.
O filme é todo dela

Antes de rasgar todos os elogios possíveis a Fernanda Montenegro, eu preciso falar da polêmica vazia sobre a escalação da atriz para o papel. Não é uma novidade que até o dia 21 de fevereiro de 2023, Vitória, fazia parte do Programa de Proteção a Testemunhas por conta do teor das denúncias que fez em 2005.
Ela recebeu um novo nome, endereço e precisou mudar completamente de vida. Apenas o repórter do Extra, Fábio Gusmão, que foi responsável por dar voz as denúncias de Vitória, sabia a verdadeira identidade da heroína. Ninguém sabia de nada e nem poderia, já que ela ainda corria risco de vida, mesmo com o passar do tempo.
O filme começou a ser gravado em novembro de 2022, quando Vitória ainda era viva e existiu um certo receio, pelo menos do público, de que a história voltasse a ameaçar a vida da idosa. Com a morte de Vitória, em 23 de fevereiro de 2023, renasceu Joana da Paz, uma mulher negra que lutou bravamente contra uma realidade cruel.
O filme já tinha sido rodado quando ela faleceu e foi só por conta disso que finalmente conhecemos o rosto da mulher. A escalação de Fernandona para o papel foi natural, e até óbvia, considerando que eles queriam uma das grandes atrizes idosas do Brasil. É muito provável que a produção não sabia que Joana era uma mulher negra, e nem deveria, já que a identidade dela precisava ser protegida independente das circunstâncias.

Dito isso, Fernandona é realmente tudo isso que a gente já sabe e precisa ficar mesmo ressaltando o tempo inteiro. A atriz consegue construir uma Vitória doce e com uma braveza tamanha que beira a inocência. É encantador a coragem dessa mulher que tentou mudar o pequeno pedaço do próprio mundo, e a gente consegue sentir tudo isso com apenas um olhar ou até uma piada da personagem. Eu ainda estou impactada, confesso, talvez nunca supere.
Além da protagonista, como já ressaltei, o entorno dela é bem construído e isso também faz parte do ótimo trabalho de todo elenco. Lina da Quebrada e Thawan Lucas fazem uma ótima dupla junto com Fernandona e conseguem brilhar junto com a atriz de forma natural. Outro destaque é para Alan Rocha, que interpreta o jornalista que ajuda Vitória. Mesmo com a presença avassaladora de Fernandona, ele se destaca e ajuda a criar a tensão do filme.
Por fim, a produção consegue nos arrebatar de uma forma tão avassaladora que vai demorar para esquecer a história de Joana da Paz, uma das verdadeiras heroínas do Brasil. A coragem e força de uma mulher negra que não temeu nada quando decidiu pegar uma filmadora para denunciar uma das mazelas mais arrasadoras do país. Espero que o reconhecimento que ela tanto quis receber, venha agora, mesmo que depois da morte, e a torne realmente inesquecível para o Brasil e mundo.

Veredito: 4,5/5
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