“Já estão sabendo da nova realidade?”: "WandaVision" e a TV do futuro
Atualizado: 30 de mai. de 2023
Mesmo antes da estreia, ocorrida em 15 de janeiro no Disney+, “WandaVision” já chamava bastante atenção. Além de ser protagonizada por Wanda Maximoff e Visão, dois personagens já bem estabelecidos no Universo Cinematográfico da Marvel, a obra se destaca pelo seu formato: episódios de sitcom (séries de comédia situacional), inspirados em obras de várias décadas.
O ponto de partida da história é: Um andróide e uma feiticeira recém-casados se mudam para uma nova cidade nos anos 50. Detalhe: sabemos previamente que o andróide está morto, mas ele aparece na série vivo, sem qualquer explicação. Doido, né? Agora some isso a conexões com 23 filmes de super-heróis, organizações ultra-tecnológicas, risadinha de fundo… enfim, um amontoado enorme de ideias.
Essa narrativa cheia de elementos distintos é só uma das áreas onde “WandaVision” apresenta algo nunca antes visto, goste-se ou não do resultado. A primeira série de TV completamente produzida pela Marvel Studios se utiliza de referências ao passado, mas também vêm se mostrando um novo jeito de se fazer TV e ficção. A produção é uma das maiores provas do momento de que, assim como seus protagonistas, estamos vivendo em uma nova realidade.
O cinema na TV e a TV no cinema
“Então você está dizendo que o universo criou uma sitcom estrelando dois Vingadores?”
- WandaVision, episódio 4
Os primeiros episódios da série deixaram muitos espectadores batendo cabeça: muitos gostaram, mas vários outros reclamaram de prontidão. Por que em três capítulos ainda não se sabe direito do que se trata a história? Porque só liberar um episódio por semana quando a maioria das pessoas gostaria de devorar tudo de uma vez pra entender o que danado tá acontecendo?
A confusão é parte da série por conta do tom misterioso da história e também das suas conexões com o resto do Universo Cinematográfico Marvel (MCU). Ao mesmo tempo que conta uma história que parece ter começo, meio e fim, “WandaVision” também é mais uma peça do quebra-cabeça da maior franquia de ficção da atualidade.
Do modo como se apresenta, a série se encaixa no conceito de “narrativa transmidiática”, criado pelo acadêmico estadunidense Richard Jenkins. Essa forma de contar histórias consiste na exploração de um mesmo universo de informações, seja ele ficcional ou não, em diferentes meios, como o cinema, TV, livros e games.
Um dos exemplos mais citados desse tipo de narrativa é a saga “Matrix”, que além dos três filmes, originou curtas-metragens, games e HQs. Algumas histórias contadas nesses produtos exploravam eventos e personagens que não aparecem na trilogia original, enquanto outras complementavam a narrativa “principal”.
O desenvolvimento do MCU aos poucos foi desenhando uma situação “transmídia”. Além da interligação dos filmes uns com os outros, houve o lançamento de curtas e séries de TV. Muitos foram os exemplos desse último formato, como as séries “Agentes da S.H.I.E.L.D.” (2013-2020), e “Demolidor” (2015-2018). Entretanto, “WandaVision” representa um passo a mais do que todas essas antecessoras no quesito conexão.
Por questões administrativas e criativas, as séries de TV vendidas como parte desse universo que estrearam antes de 2021 tinham pouquíssimas conexões com os filmes. Na prática, elas eram independentes demais da história principal, e pouquíssimos personagens e histórias de um meio eram relevantes para o outro. Isso tornava a conexão artificial e incompleta.
Em “WandaVision”, as coisas são bem diferentes. A história é uma sequência direta de “Vingadores: Ultimato” (2019), o clímax do MCU nos cinemas até o momento, além de lidar de forma mais direta com questões apresentadas nos filmes. Além dos protagonistas, personagens apresentados anteriormente têm participações importantes, como Monica Rambeau, que já apareceu no filme “Capitã Marvel” (2019). As conexões também se estendem para o futuro, pois a série está ligada ao filme “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura”, marcado para estrear nos cinemas em 2022.
Será que dá pra entender?
"De onde vocês dois se mudaram? O que trouxe vocês aqui? Há quanto tempo vocês estão casados?”
- WandaVision, episódio 1
Através desse nível de conexão com os filmes, a série fornece mais tempo para explorar personagens antes coadjuvantes nas telonas, como a protagonista Wanda Maximoff. Entretanto, adotar esse nível de interligações em meio à atmosfera já misteriosa da série pode causar confusão a pessoas não familiarizadas com os filmes. O roteiro não entra em detalhes, por exemplo, sobre qual a conexão entre Monica e a Capitã Marvel e até mesmo a relação entre Wanda e Visão antes da série não é explicada de início.
Essa sensação de algo “incompleto” é um dos maiores riscos corridos ao se fazer uma narrativa transmídia. Ao mesmo tempo que novos produtos de um mesmo universo são um prato cheio para quem já é fã, parece ser um pouco mais difícil fisgar novos espectadores dessa forma.
A expansão da Marvel para um formato como o de “WandaVision” só foi possível com a ascensão do streaming. Os principais serviços do tipo, como a Netflix, têm lançado uma quantidade cada vez maior de filmes e séries originais, com o objetivo de monopolizar o máximo possível a atenção do espectador.
Para isso, produzem obras dos mais variados formatos e se voltam para propriedades intelectuais que já são populares para atrair assinantes mais facilmente. É por essa razão que a Disney já anunciou mais de 20 séries no universo da Marvel ou de “Star Wars” para os próximos anos. Para quem já gosta das franquias, é fácil se interessar por quase todas, mas a estratégia também tenta fisgar o resto do público.
Viu “WandaVision” e não entendeu bem? Por que você não investe mais um pouco do seu tempo aqui no nosso serviço de streaming assistindo os filmes dos Vingadores para ficar mais familiarizado com o universo? Nada disso é uma ciência exata e nem todo mundo terá interesse, mas todos os conglomerados de mídia parecem dispostos a tentar. Não há nada que represente mais a nova realidade das séries do que isso.
A TV de ontem, de hoje e de amanhã
“Wanda decide o que passa na série dela e o que não passa”
- WandaVision, episódio 5
Uma das coisas mais interessantes de se notar é que mesmo que represente os novos passos da TV, “WandaVision” também se presta, e muito, a referenciar o passado. (SPOILER A SEGUIR! SE VOCÊ AINDA NÃO ASSISTIU A SÉRIE ATÉ O EPISÓDIO 8, PARE DE LER. OU LEIA POR SUA CONTA EM RISCO!) A série se passa em uma realidade paralela aparentemente controlada por Wanda, onde tudo parece ocorrer como nas sitcoms.
Durante os 8 episódios já exibidos, a série passeou pela história das séries de comédia com clima de celebração. Algumas delas foram:
“The Dick Van Dyke Show”, “I Love Lucy” e “A Feiticeira” (Anos 50 e 60)
“A Família Sol-Lá-Si-Dó” (Anos 70)
“Caras & Caretas”, “Três é Demais” e “Tudo em Família” (Anos 80 e 90)
“Malcolm”, “Modern Family” e “The Office” (Anos 2000-2010)
“WandaVision" buscou referências no visual, histórias, personagens e características dessas séries. O primeiro episódio, ambientado na década de 50, foi filmado em frente a uma plateia que o acompanhava ao vivo, e a filmagem só passou a ser em cores em cenas ambientadas nos anos 70, época em que a transmissão colorida se tornou mais comum. Já nas cenas inspiradas em sitcoms mais atuais, os atores frequentemente “quebraram a quarta parede”, como ocorre nessas séries.
A metalinguagem também está presente em outras escolhas da produção. Os atores Kat Dennings e Randall Park, veteranos do MCU, foram escolhidos para o elenco justamente por já terem estrelado ou outras sitcoms, como “2 Broke Girls” e “Fresh Off the Boat”, respectivamente. A presença dos dois na tela se torna, assim, um easter egg por si só.
Além disso, a série também brinca com situações clichês de sitcoms antigas. Alguns exemplos são:
A troca do ator que interpreta determinado personagem sem aviso prévio (algo que ocorreu com o personagem Pietro);
A tentativa cômica de esconder uma gravidez de formas absurdas e o fato de crianças envelhecerem muito rápido sem qualquer lógica (Wanda, sua gravidez e seus filhos gêmeos indo de bebês a crianças de 10 anos no mesmo episódio);
Os “Very Especial Episodes”: episódios comuns em sitcoms do século passado que tratavam de temas pesados, como diversas formas de violência e abuso. (O 5º episódio é intitulado “A Very Special Episode…” e apresenta Wanda e seus filhos tentando lidar com o luto).
Tudo isso é feito misturando-se elementos de humor com momentos de ação e suspense, criando um tom que, junto com a temática adotado pela série, leva a uma reflexão que também diz respeito às sitcoms. Muitos desses programas apresentavam episódios curtos, onde os problemas dos personagens se resolviam rapidamente e nunca mais eram citados.
Através de uma característica básica das séries de comédia, está sendo explorada a dificuldade de lidar com o luto e com o sofrimento, e o contraste frequente da realidade televisiva com o mundo real. Dessa forma, é possível celebrar a o refúgio que a televisão nos representa, mas também questionar o modo idealizado com que a ela retrata a vida. Afinal, todo mundo já desejou um dia que sua vida fosse “como na novela”.
Ao divulgar os episódios semanalmente, a série também relembra outros tempos da TV, quando séries eram consumidas pedacinho por pedacinho, sem maratona. Houve muitas críticas por parte do público, já acostumado a devorar 10 episódios de uma só vez, mas a estratégia combina com o ar misterioso da série e também serve como mais uma forma de celebrar o passado.
O mesmo de sempre/o nunca antes visto
“Nós somos um casal peculiar, sabia?”
- WandaVision, episódio 1
Como podemos perceber, talvez a característica mais firme de “WandaVision” é a recusa em caber em caixinhas. A produção é várias coisas em uma só: uma história de super-herói, uma obra cultural moderna e uma grande homenagem à TV. Ela se estabelece em um lugar próprio, entre cinema e TV, saudosismo e futurismo, cult e popular.
É bastante interessante que uma série baseada em filmes e exibida em um meio moderno (o streaming) abrace a metalinguagem e celebre o formato televisivo tradicional, e que um meio como a televisão se aproxime, em narrativa e prestígio, do cinema. São definições que mostram um cenário midiático cada vez mais complexo, mas também disposto a romper certas barreiras.
Mesmo que agora, perto do final, a série comece a apresentar elementos já característicos da Marvel - como as ameaças à segurança global e as tão famosas explosões - a simples iniciativa de temperar o arroz com feijão com sabores menos óbvios já é digna de nota. O simples exercício do novo (e do velho) já valeu a experiência.
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