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Foto do escritorThallys Rodrigo

"Zona de Interesse": Não há segredo além dos muros

Novo filme indicado a 5 Oscars choca com representação forte do Holocausto



Imagine que você está se lembrando de sua casa na infância. 


Não era uma casa como qualquer outra, mas uma residência espaçosa e bem construída, onde você e seus irmãos brincavam de todas as formas possíveis. Na mesa, fartura, e nos quartos, conforto. 


E, olha só, esse nem era o maior destaque do lugar! Esse título pertencia ao jardim. Enorme e com as mais belas flores, era de uma beleza estonteante, cuidadosamente planejado pela sua mãe. Belos canteiros, uma estufa e até mesmo uma piscina com escorregador! 


Esse grande espaço florido, porém, tinha um limite. Um muro alto e cinzento, além do qual quase nada se via. Só se ouvia. Tiros, gritos assustadores e uma fornalha que trabalhava noite e dia. 


Essa provavelmente é a lembrança dos filhos do oficial nazista Rudolf Höss, comandante do campo de concentração de Auschwitz durante a Segunda Guerra Mundial, cuja vida doméstica às beiras do local é o foco de “Zona de Interesse” (“The Zone of Interest”, 2023, EUA e Polônia), novo filme de Jonathan Glazer, indicado a 5 Oscars.


O longa é uma experiência aterradora focada na perspectiva dos adultos, que, ao contrário das crianças, sabem muito bem o que acontece além dos muros, e, ao invés de escolher ignorar essa realidade, a abraçam com muita consciência e conveniência.



O todo e as partes



Em “Zona de Interesse”, somos apresentados a diversos cenários do dia a dia de Rudolf (Christian Friedel), sua esposa Hedwig (Sandra Hüller) e os vários filhos do casal. Cenas idílicas, como uma ida no rio ou um dia na piscina, são contrastadas com o horror que está sendo ignorado pelo casal em prol de viver a vida dos sonhos. 


Hedwig comanda a casa sempre acompanhada de diversas empregadas que atuam na cozinha e no cuidado com os filhos. Em aparições rápidas e discretas, completam a mão de obra pessoas que vestem roupas listradas com uma numeração impressa e a cabeça raspada. Em outras palavras: prisioneiros de Auschwitz.


A presença do campo de concentração, seus horrores e sua relação com a família é sempre retratada de forma crua e pontual. O filme, em sua maioria, adota planos abertos. Com isso elementos visuais que remetem aos horrores, como a presença dos prisioneiros no jardim da casa, são vistos como parte de um cenário maior, pacífico e sadio, seja ele a casa da família ou os arredores verdejantes da casa. Isso acentua o contraste entre a vida doméstica da família Hoss e a barbárie, e se caracteriza como um grande acerto do diretor.


Diversos são os recursos narrativos utilizados no longa para dar um “tapa sem mão” na audiência, pegando a todos desprevenidos com o modo como a banalização da violência em Auschwitz é abraçada pela família. Eles vão desde o orgulho de Hedwig em usar um casaco fino roubado de uma prisioneira até um momento em que uma das crianças da família brinca com o que parecem ser dentes humanos antes de dormir. 


Porém, o impacto buscado pelo longa não reside apenas no visual. O som é um personagem a parte em “Zona de Interesse”, afinal, nunca enxergamos de forma nítida na obra o que acontece dentro do campo. É como se o diretor soubesse que essa história já foi contada à exaustão, seja de maneira correta ou exploratória, e quisesse focar, dessa vez, em expor os algozes ao invés das vítimas. 


O som no longa é usado tanto como forma de “ambientação” quanto numa tentativa mais direta de estímulos sensoriais. O primeiro uso se caracteriza nos barulhos de tiros, gritos e maquinário ouvido ao fundo das cenas que se passam na casa da família Hoss. 


Esse uso parece buscar, assim como os planos abertos, situar os ruídos terríveis de Auschwitz como parte de um todo maior, acentuando a sensação de contraste com o cotidiano dos oficiais nazistas e a nossa percepção sobre o horror do Holocausto.


O segundo está presente em sequências onde as imagens param de ser exibidas na tela e a trilha sonora ou efeitos sonoros se tornam, por um tempo, o único estímulo. Esses momentos também obtêm uma grande efetividade em destacar o horror presente além dos muros do campo. Uma cena em específico, focada nos gritos de um prisioneiro sobre uma tela vermelho-sangue, é bastante perturbadora. 



Exploração, empatia e o muro entre elas



“Zona de Interesse” é um filme sobre crueldade e também sobre exploração. Não se trata de mostrar como Rudolf e Hedwig tem uma vida boa apesar dos horrores que acontecem do outro lado do muro, ou de como são felizes apesar de todo o cenário terrível. Existe uma relação direta de causa e consequência entre o Holocausto e os bens e felicidade da família. 


Não há qualquer sugestão de que ambos se importam minimamente com o que está acontecendo e com as pessoas sendo terrivelmente mortas, ou que estejam ignorando a situação em prol de sua boa vida. Eles realmente creem na sua superioridade e enxergam a crueldade não como um “mal necessário”, mas simplesmente como “algo natural e necessário” para estarem onde estão, ricos e felizes. 


Essa naturalização do mal está presente em quase todos os personagens alemãos, e se sobressai em determinados momentos. Um exemplo é o modo pragmático com que Rudolf Höss encara o projeto de uma máquina de cremação mais eficiente para matar prisioneiros. Ou no modo como um plano de captura de judeus é discutido de modo totalmente banal em uma reunião de oficiais nazistas, quase como se fosse apenas uma reunião corporativa comum em uma empresa atual.


A forma como os personagens abraçam a violência e a opressão e, e o modo como elas se tornaram sistêmicas, também está presente em outros momentos, como quando um dos filhos da família Hoss resolve encarcerar o outro por puro divertimento, ou na incapacidade de Hoss de aproveitar um baile em Berlim. Tudo o que o comandante conseguia pensar era em quanto gás seria preciso para matar as pessoas no recinto.


Além disso, o filme também parece fazer um comentário sobre exploração ainda mais amplo que o exemplo do Holocausto. As várias empregadas da casa de Hedwig - e o modo como são exploradas, e, em dado momento, até maltratadas pela empregadora - demonstram como ter poder está diretamente ligado à dominação de outras pessoas, seja por meio da força ou da necessidade de subsistência no capitalismo. Esse viés também está presente no modo como está implícito no filme que Rudolf abusa sexualmente de uma das prisioneiras do campo. 


Em meio a tantas atitudes cruéis e da “vida perfeita” dos Hoss, a empatia em relação aos aprisionados no campo de concentração fica a cargo de outros personagens. Sempre escondida e tratada como uma inconveniência dentro de um universo desumano. 


No filme, assim como foi na vida real, a consideração pelas vidas judias, ciganas e de outros grupos aprisionados em Auschwitz tem que ser feita nas sombras, disfarçada, e nunca confessada abertamente. Assim como a violência e o horror do campo, ela aparece no filme apenas de forma pontual, ocupando um pequeno espaço num todo bastante opressivo.


Tal elemento está presente, por exemplo, em cenas paralelas, à noite, quando uma menina - que nunca recebe nome no filme - entra escondida em Auschwitz de bicicleta para deixar maçãs para os prisioneiros. Ela e sua família, inclusive, são baseadas em pessoas reais que ajudaram os aprisionados do campo. 


Todas as suas cenas são apresentadas em imagem de negativo, uma escolha estética que, propositalmente, causa estranhamento, mas que é coerente. Afinal, há um grande contraste entre os dias ensolarados e floridos na residência Hoss, ausentes de qualquer empatia, e as perigosas saídas noturnas de amparo às vítimas. 



O Interesse


“Zona de Interesse” cumpre com louvor o interesse de retratar o Holocausto e os horrores dos campos de concentração sob uma nova ótica. Não como uma simples tragédia ou como algo feito por “monstros”, mas sim como obra de mãos bastante humanas. Mãos de pessoas que sabiam muito bem o que estavam fazendo e viam na derrocada dos grupos perseguidos sua possibilidade de ascensão, tanto material quanto como sujeitos. 


Os recursos visuais e sonoros empregados no filme não permitem que o espectador observe uma dramatização dos terrores dos campos, mas sim, que sinta toda a sua gravidade e também sua naturalização por parte dos nazistas. Jonathan Glazer considera, de forma certeira, que o horror por si só é suficiente para sensibilizar e nos fazer entender o que realmente aconteceu, sem necessidade de narrativas mais tradicionais. 


É fato que o filme pode se mostrar desafiador em alguns momentos para boa parte do público não ter uma história bem-definida - sendo focado mais no cotidiano dos Hoss - e também por algumas repetições no modo como tenta passar seu ponto. Porém, trata-se de um filme que atinge o objetivo proposto: levar o horror até nós e mostrar o triunfo que quem o criou extraia dele. 


Veredito: 4.5/5


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